Frutos e Flores escrita por Hinalle


Capítulo 1
Capítulo único




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Capítulo único

Ela cruzou os braços em frente aos seios pequenos e fez uma careta.

– Não quero.

– Mas, querida, todos estão lendo. Você precisa praticar sua leitura também - a mais velha falou, carinhosa e preocupada.

– Pra que vou usar isso na minha vida?! - perguntou a garota, indignada.

Ela calou-se.

– Viu?! - exclamou, com um ar vitorioso, - Nem você sabe! - e, levantando-se, saiu da sala de aula.

Talvez, se ela tivesse visto o olhar triste e pesaroso de sua professora, não teria falado com tanta amargura.

Mas ela não enxergava. Nunca enxergara.

Atravessou o pátio que tanto conhecia e, ignorando as exclamações de surpresa ao seu redor, foi sentar-se debaixo de uma árvore que, infelizmente, nunca pudera contemplar-lhe a beleza. Mas sentia, envolvendo-lhe todo o corpo, o leve e adocicado aroma que das macias pétalas emanava; a madeira lisa e grossa afagando-lhe a ponta dos dedos, quando os deslizava sobre o tronco; o silêncio guiado e trazido pela tranquilidade da alma, funda e completa.

Mas quem, em meio às correrias rotineiras, gostaria de saber aquelas coisas? Quem se importava com cheiros, sons, toques?

A jovem dobrou os joelhos, abraçando-os junto ao peito. O breu que sempre a perseguira, desde seu nascimento, agora lhe incomodava. Seus olhos sentiam falta de algo que nunca tiveram; a luz.

Ouviu um galho estalar perto de si, à altura do chão, e, assustada, voltou sua atenção para o barulho. Passos silenciosos e calmos aproximavam-se dela. Desejou, com ardor e medo, que a pessoa desviasse o caminho. Queria manter-se afastada de quem a queria longe, imaginar, por alguns instantes, que não era envolvida por aquele amargo véu de preconceito e dor.

– Está sozinha, menininha? - uma voz grave e masculina indagou.

– Sim.

A pessoa sentou-se a seu lado. Pela voz, parecia mais velho.

– Posso ficar aqui?

– Sim - disse, demonstrando não estar com ânimo para conversar.

Porém o homem insistiu:

– Qual seu nome?

– Luisa.

– Lindo nome. Seus olhos também são lindos.

Luisa deixou que um sorriso sarcástico desenhasse em seus lábios.

– Do que adianta eles serem lindos, se não servem pra nada?

Ela pensou que aquela revelação o fizesse hesitar, desculpar-se e logo ir embora, como já acontecera quando era menor. Mas, surpreendendo-a, ele disse, com naturalidade:

– São verdes.

Ela franziu o cenho, estranhando a observação.

– É, minha mãe vive dizendo isso pra mim.

– Sabia que olhos claros, como os seus, são difíceis de encontrar? Principalmente se a pessoa tem cabelo escuro.

Ela, ao ouvir a última curiosidade, mostrou-se interessada:

– É?

– Sim, da sua classe, só você tem olhos claros e cabelos escuros.

A menina soltou uma exclamação, sinceramente surpresa.

– Você sabe em qual classe eu estudo?

Ele riu, leve e solto:

– Sim, porque sempre admirei muito você.

– Por quê?

E o interesse crescente da jovem fazia-o alargar o sorriso.

– Você é muito esperta, Luisa.

Ela riu, não acreditando no que ouvia:

– Acho que está me confundindo com outra pessoa.

– Pelo que eu sei, você é a única menina cega desta escola, não é?

A garota cessou o riso, impressionada. Ele fora a primeira pessoa a chamá-la de cega, sem culpa e pesar na voz. Quando alguém tocava no assunto de sua deficiência, chamavam-na de "ceguinha", com uma certa hesitação, como se tivessem medo de provocar sua ira ou machucá-la, cheios de uma compaixão que rasgava seus ouvidos.

– É, eu sou a única.

Os dois calaram-se. Luisa sentiu o vento acariciar-lhe o rosto, então levantou-o, suspirando deliciada.

Ele, observando-a, acompanhou o gesto e admirou-se com a sensação de alívio e calma com a qual se deparara.

Ela, quando o silêncio se mostrou longo, perguntou, entregue à curiosidade:

– Qual seu nome?

– Fernando.

– Lindo nome.

– Assim como seus olhos?

Ela sorriu, lisonjeada, aconchegando-se no carinho que ele demonstrava.

– Sabe por que me chamo assim? - ele indagou.

Luisa negou com um balançar de cabeça, esperando que respondesse sua própria pergunta.

– Por causa do grande escritor, Fernando Pessoa. Meus pais eram apaixonados pelo que ele escrevia.

– Que legal! E que honra, né?

– Sim, pena que não sou tão genial quanto ele.

Os dois riram.

– E seu nome, tem algum significado?

– Acho que não... meus pais nunca me falaram nada.

– Achei que fosse por causa de Louis Braille. Já ouviu falar nele?

Luisa fez um movimento negativo com a cabeça, intrigada.

– Foi ele que inventou a Escrita Braille.

Ao ouvir quem era o desconhecido, fez uma careta. Uma parecida com a qual fizera quando tentaram-na obrigar a ler aquele livro, minutos atrás.

– Então foi um tal de "Louis Braille"? - falou ela, com certa repulsa.

– Você não gosta dele?

A garota deu de ombros, e ele continuou:

– Sabia que não foi ele que inventou, inicialmente, a Escrita Braille?

– O quê? - inquiriu ela, demonstrando sutil interesse.

– Sim! Na verdade, foi um capitão do exército do rei Luís XVIII, na França, que deu início a essa simbologia!

– Então por que a escrita se chama "Braille"? E por que um capitão do exército francês inventaria uma escrita pra cegos?

– Porque esse capitão, chamado Charles Barbier, criou um sistema de leitura tátil, parecido com o alfabeto Braille de hoje, para que os soldados franceses se comunicassem secretamente, como um código. Assim que Barbier viu uma demonstração de leitura das crianças cegas de uma escola especial parisiense, ele resolveu ajustar os símbolos para que os deficientes visuais pudessem lê-los com a ponta dos dedos.

– E o que o Louis tem a ver com tudo isso?

Ao notar o entusiasmo cativante e crescente da mais nova, ele continuou, ainda mais animado:

– O Louis estudava nessa escola, especializada em ensinar deficientes visuais, e não concordou com o alfabeto que o capitão tinha criado. Com a nova escrita, não se podia soletrar, nem indicar os acentos das palavras, e nem usar pontuação. Pois cada símbolo correspondia a um som.

– Mas por que os cegos se interessariam em saber escrever e ler como as pessoas que enxergam?

– Foi isso que Charles Barbier pensou quando criou a escrita que foi batizada, primeiramente, de Escrita Noturna. Mas o Louis Braille queria que os cegos escrevessem como qualquer outra pessoa, e, aos quinze anos, ele já tinha terminado de montar outra simbologia tátil, se baseando na Escrita Noturna.

Luisa cruzou as pernas, pensativa. Sempre imaginara que a Escrita Braille houvesse a mesma idade do alfabeto para quem enxergava.

Certamente, porque tinha apenas doze anos.

Agora, sentia-se como um bebê que acabara de nascer e estava sendo introduzido ao mundo. Como aquele homem sabia mais que ela, sobre algo que utilizava muito menos que a garota ou que ao menos o fazia?

– Legal, não é?

Ela não respondeu, e o rapaz ficou em dúvida se ela estava ouvindo o que ele dizia, então insistiu:

– Imagina você não poder ler. A literatura é uma arte muito bonita, não acha?

A menina não respondeu novamente. Estava mergulhada em seus próprios pensamentos, arrependidos e culpados.

Lembrou-se de sua professora pedindo-lhe que lesse, como todos os outros alunos. Como ela queria ser igual, se não se tratava assim?

Lembrou-se de tantas outras vezes, que passava a mão sobre uma placa, e amargurava-se por não poder saber o que nela havia. Mas quando recebia livros em Braille, recusava-se a lê-los.

– Está tudo bem? - inquiriu ele, pousando a mão em seu ombro.

– Está. Só estou pensando.

– Quer dividir seus pensamentos comigo? - indagou, com uma voz branda e meiga, levemente preocupada.

– Vim pra cá porque minha professora queria me obrigar a ler um livro em Braille - falou, enfatizando o "em Braille".

– E você não quis ler?

– Não. Acho que um cego não precisa aprender a ler, já que são raros os lugares que tem adaptação pra deficientes visuais.

– Mas e os livros lindos, como seus olhos, que você vai deixar de ler se não aprender essa escrita? E os ótimos poemas que pode escrever? - apertou levemente o ombro dela. – E Fernando Pessoa?

Ela abaixou a cabeça, tentando escapar da consciência do tempo perdido, da negligência do carinho que ao menos percebia estar recebendo.

– Tente aprender por você. Tire benefício do que te é oferecido. Como nós tiramos benefício dos frutos e das flores que dão nessa árvore.

– Como assim?

Ele inspirou o ar úmido da manhã, antes de começar:

– Não fará diferença para nós, se arrancássemos essa árvore. Mas seria muito mais gostoso se comêssemos as frutas e admirássemos as flores, mesmo se algumas flores ficarem murchas e não alcançarmos todas as frutas.

Luisa soltou uma exclamação, como alguém que termina de resolver uma conta matemática.

Fernando, maravilhado com a expressão da garota, repetiu:

– Aproveite tudo o que te é oferecido. Esqueça as flores que não nasceram e saboreie os frutos que conseguir pegar.

Sem pensar, Luisa levantou-se.

– Aonde vai?

– Pra classe. Tenho um livro pra ler - e, sorrindo e, de vez em quando, saltitando, voltou para sua sala de aula.

Fernando continuou parado, observando-a. Ela parecia estar se deixando guiar pelo vento. Deixando-se ser guiada por algo que não vê, mas que, invariavelmente, sabe que está lá.

Sentia uma pontada de inveja daquela garota, pois ela via coisas que ele não podia ver.

É concedida a visão àqueles que conseguem enxergar.

Foi uma imensa surpresa ver Luisa à porta da classe, com um humor oposto àquele com o qual deixara aquele mesmo lugar, minutos antes. Ou seriam horas?

A professora parou imediatamente o que estava fazendo, para correr até ela e ajudá-la a ir à sua carteira.

O livro jazia imóvel, esperando pacientemente que alguém se perdesse entre suas linhas e relevos. A garota hesitou antes de pousar seus dedos delicados sobre a folha grossa e macia. Lembrava-a a casca da árvore, da qual gostava de se sentar quando estava triste.

E saboreava cada letra, cada palavra. Ler era muito mais fácil e agradável do que pensara. Mal havia tempo de sentir-se triste, ou pensar em outro remédio que não fosse a literatura.

Toda vez que encontrava-se com um livro à sua frente, agradecia, em inaudíveis murmúrios, como uma prece, àquelas pessoas que trouxeram tal arte em suas mãos. E agradecia, especialmente, a Fernando, que cruzara o seu caminho como um acaso, mas se mostrou indispensável à sua história e à sua vida.


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Notas finais do capítulo

Bibliografia:
http://www.nossosaopaulo.com.br/Reg_SP/Educacao/Louis%20Braille.htm

Nota da autora:
Obrigada, muito obrigada, a vocês, leitores, que se embrenharam nessa história e chegaram até aqui! Como amante da literatura e deficiente visual, senti-me na responsabilidade de passar um pouco a vocês, "pessoas que enxergam", um pouco da vida, da dor e da alegria, de uma pessoa cega.

Esse conto foi escrito para um concurso, no ano de 2009, referente ao aniversário de duzentos anos de Louis Braille. Como ganhei em primeiro lugar na minha categoria, estimulei-me a postá-lo aqui (minha amiga, Amanda Catarina, também me estimulou a fazê-lo, como sempre, hehehe). Ajustes foram feitos (em um ano, nós aprendemos e crescemos muito) e, eis aqui a história!

Uma curiosidade: Luisa realmente existiu. Infelizmente, faleceu com pouco mais de dois anos de idade. Filha de uma professora, quando perdi a visão, fui tratada com carinho e atenção semelhantes a que Luisa recebeu pela sua mãe.

Novamente, obrigada por terem lido minha história, e desejo que todos tenham aprendido algo com a Luisa! Uma lição de vida ou uma lição de convivência, uma moral ou um conselho...