Sete Vidas escrita por SWD


Capítulo 163
sete vidas epílogo vida 5 capítulo 32




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ZETES

Jasão, ainda abraçado a Medeia, olha para o exíguo espaço entre seus corpos agora unidos pela espada flamejante do arcanjo Gabriel. Seu corpo fora transpassado pela espada numa trajetória que passava por onde seria esperado haver um coração. Ele se lembra das palavras de Idmon, mas ainda não sabe o que esperar. Ele não sente dor, mas a dúvida e o medo o paralisam.

O medo que tudo acabe ali. O medo de morrer no Inferno. O medo de ter falhado.

Jasão olha Medeia nos olhos e os olhos de Medeia mostram surpresa, em seguida compreensão e, finalmente, ódio. Mas ódio não é tudo que ela sente.

O corpo espiritual de Medeia começa a se incendiar de dentro para fora. Ela tenta passar para a forma sombria, mas isso não detém o processo. A forma sombria se liberta da espada, mas o fogo se espalha em seu interior, alcançando sua alma. Em agonia, a sombra se expande e estende a mão na direção de Gabriel. Não podia acabar assim. Não quando finalmente reencontrara Jasão.

Seus sentimentos por Jasão não estavam claros, nem mesmo para ela. Não sabia se o ódio de milênios podia voltar a ser o amor dos tempos da Cólquida, quando existiam apenas eles dois. Não sabia nem mesmo se ainda era capaz de amar. Mas, sabia o quão profundo podia odiar. E sabia que Gabriel seria eternamente objeto de seu ódio. Gabriel, que tentava privá-la de descobrir a resposta sobre seu amor por Jasão, quando estava tão próximo de obtê-la. Queria alcançar o maldito arcanjo, envolvê-lo, levar a ele a dor que estava sentindo. Mas, o fogo que a consome é mais rápido. Toda ela queima de forma intensa e, então, extingue-se.

Jasão gira o corpo com a espada ainda atravessada no peito até ficar de frente para Gabriel. Seu rosto sereno não reflete o turbilhão de emoções em seu peito. Ele volta a olhar para a espada em seu peito e esboça um sorriso quando vê as chamas da espada apagarem-se. Hesitante, segura a lâmina que sai do seu peito com ambas as mãos. Imaginou que estaria incandescente, mas estava fria ao toque. Puxa, então, a espada, até retirá-la completamente.

Gabriel observa aquilo sem acreditar no que está vendo. Já seria difícil de acreditar se Jasão tivesse tirado a espada pelo lado que a lâmina entrou. Mas, não. Jasão fizera a empunhadura da espada atravessá-lo, e, ao final, era como se ele nunca tivesse sido perfurado. Não estavam no plano material, mas, mesmo assim, aquilo não fazia qualquer sentido. Nenhum oponente jamais sobrevivera à lâmina de sua espada. Ele invocara a chama celestial para Jasão e Medeia. Jasão não podia ter escapado.

Segurando a espada pela empunhadura, Jasão se aproxima da jaula e encara Gabriel.

– Sou ou não sou um grande ator?

No instante seguinte, Jasão desvanece. A espada, sem uma mão sólida para segurá-la, cai no solo rochoso e ali fica. E Gabriel finalmente entende o que aconteceu.

– Zetes?

Uma voz incorpórea responde.

– Volto o mais rápido que puder.

.

GABRIEL

Nenhum som além dos seus involuntários gemidos de dor. Já fazia algum tempo desde que Zetes se fora. Parecia ter sido séculos atrás. Sua realidade agora resumia-se àquela jaula e dor, como nunca sentira antes.

O tempo parece acelerar quando desejamos que se arraste. Gabriel sente que o pouco espaço livre da jaula está encolhendo em ritmo cada vez mais rápido. Ele já não tem mais qualquer liberdade de movimento. Não pode mais sequer mudar de posição. Uma perna e um braço começam a ser esmagados. Ele escuta o barulho do fêmur direito partindo e chega a achar aquilo engraçado. A capacidade do Inferno de fazê-lo sentir dor por um osso quebrado que não tem uma existência real.

Ele era, sempre fora, um ser espiritual. Nunca tivera um esqueleto. Mas, viver aquela experiência nada tinha de engraçado. Se pergunta se algum ato, por mais cruel que seja, justifica alguém ser condenado ao Inferno por toda a eternidade. Ele já pensou diferente, mas, naquele momento, sua certeza é que não. A existência do Inferno é pura e simplesmente uma aberração. Ele sente piedade de seus irmãos caídos.

Até mesmo de Lúcifer.

À medida que as pontas crescem, outras pontas surgem transversalmente a elas, como espinhos num caule. Gabriel começa a sentir a presença desses espinhos em toda a extensão do seu corpo. Furando e rasgando. Trazendo novas dores. Era um guerreiro, sofrera ferimentos em batalha, mas nunca algo assim. Contínuo e sistemático. E não era somente a dor física. O medo de fracassar era o que mais o oprimia. Não podia fracassar. Não tinha esse direito. Outro mundo pagaria o preço pelo seu fracasso. Outro mundo morreria.

Talvez, todos os mundos.

.

JASÃO

– Gabriel, olhe para mim!

– Jasão?

Jasão usara a própria espada para desenhar símbolos místicos em toda extensão de seu peito, braços e rosto. Seu corpo espiritual sangra. Gabriel reconhece o padrão. Sabe que o vai acontecer se Jasão completar o desenho.

– Não, Jasão. Não faça isso. Eu não posso partir. Somente eu posso tirar Adam do Inferno. Não f..

O corpo espiritual de Gabriel desaparece numa explosão de luz.

Jasão olha a jaula vazia. Sabia que fizera o certo. Mesmo que eles falhassem, Gabriel ainda poderia recomeçar do zero. Tantas vezes quantas fossem necessárias. Sabia que o arcanjo não desistiria enquanto lhe restasse uma centelha de vida.

– Agora somos só eu e você, comandante.

– E o que estamos esperando? Creio que é naquela direção.

.

IDMON

Idmon seguia caminhando na mais completa escuridão, guiado apenas por sua visão profética. A região que agora atravessava era infestada de criaturas infernais; e as esferas de fogo eram como faróis que atrairiam as feras em sua direção.

Para se proteger, conjurara um feitiço duplo. Um feitiço de camuflagem, que impedia que as criaturas o percebessem como realmente era. Ou percebiam-no como um igual ou como algo que podia ser ignorado. E um feitiço de dispersão de atenção, que fazia que se esquecessem dele pouco depois de o terem visto.

De início, a perspectiva de seguir sozinho na escuridão o assustara. A escuridão traz à tona medos ancestrais. O medo do escuro - e dos seres que caminham no escuro - está profundamente arraigado na mente humana. E o semideus era humano o suficiente para compartilhar deste medo ancestral. Um dos muitos mecanismos que permitiu que sobrevivêssemos como espécie. E, ali, no Inferno, ele se mostrava mais do que justificado.

Os sons a sua volta lembravam-no, a todo o momento, que existia ali uma frenética cadeia alimentar e que imperava a lei do mais forte. Era inquietante que tantas vezes o som de algo sendo dilacerado e avidamente disputado viesse de perto. Perto até demais.

A forma como a visão profética trabalhava integrada aos seus outros sentidos sempre o assombrava. Ela mais do que compensava a ausência da luz. Descobria agora que não precisava de luz para ver o caminho. Na verdade, via melhor sem ela.

Pareceu levar dias, e, neste tempo todo, ele não comeu, bebeu ou dormiu. Tentou lembrar quando fora a última vez que fizera qualquer destas coisas. No Inferno, nenhuma. A fome, a sede e o cansaço existiam e incomodavam, mas não pareciam exigir saciedade imediata.

Parecia ser sempre possível deixar para depois.

.

Finalmente, deixara o planalto rochoso onde enfrentara Medeia. Chegara numa área vulcânica onde gêiseres irrompiam inesperadamente, lançando água fervente e vapor a mais de 10 metros de altura. A chance de ser cozinhado vivo na travessia da vasta planície era muitas vezes maior do que a de alguém escapar ileso. E, também ali existiam criaturas. O Inferno não era para amadores.

.

Uma coisa o inquietava. Sua visão profética estava forte como nunca, mas ele ainda não conseguia ver quem do grupo de sete não deixaria o Inferno. Quem, nas palavras de Hécate, o Inferno reclamaria.

Fizera todos pensarem que Zetes era o condenado. Não podia negar para si mesmo que, ao dizê-lo, sentira um prazer maldoso de assustar o garoto-vento daquela maneira. Na Argo original, ambos ainda muito jovens, Zetes e o irmão não passavam um único dia sem atormentá-lo com brincadeiras idiotas. Bullying não é um fenômeno novo. É velho como o mundo.

Desejo de vingança, também.

Mas, não agira movido por vingança. Isso fora, no máximo, um bônus. Muito tempo se passara. Zetes mudara. Ele mudara. Junto do prazer infantil pela brincadeira maldosa, veio a admiração pela dignidade com que Zetes enfrentara a possibilidade real de morrer. A morte apresentada não como uma possibilidade, mas como uma certeza, pode abalar até o mais forte dos homens.

Os jovens não têm medo da morte. Agem como se a morte viesse apenas para os velhos. Eternamente jovens, os seus camaradas semideuses não acreditam verdadeiramente que um dia possam morrer. Ao contrário dele próprio, Idmon, que, cada dia mais envelhecido, duvidava diariamente da própria previsão de uma segunda juventude antes da morte definitiva. Embora eles enfrentem seguidamente a morte com a coragem do guerreiro, não estão preparados para aceitá-la como um destino inevitável. Um jovem confrontado com a morte tem todo direito de se revoltar e assumir uma atitude de negação. Todo jovem se acha imortal.

A morte anunciada de Zetes fora o início de uma elaborada farsa.

Mas, o fizera por um bom motivo: proteger Jasão e trazer a morte definitiva à bruxa dos Infernos com quem ele casou um dia. Como gostaria de ter visto a bruxa queimando, principalmente depois dela quase tê-lo incinerado. Quer dizer, visto pessoalmente.

Tivera flashes da bruxa queimando após ser transpassada pela espada do arcanjo. Mas, não apenas ela. Também Jasão se incendiava. A morte de Jasão encadearia eventos que afetariam a todos. Sem Jasão, nenhum deles escaparia do Inferno. Nem mesmo o arcanjo.

Era preciso mudar esse futuro.

E ele conseguira, com a ajuda de Zetes. Era um plano arriscado, principalmente para Zetes, que precisaria colocar sua vida em jogo. Sua visão profética já mostrara o que precisava ser mudado. Não mostraria mais nada até que houvesse um desfecho para o que fora mostrado. Zetes aceitara levar o plano em frente, sem qualquer garantia de que sobreviveria. Só de saber que a história de estar condenado era parte da farsa, já o fizera recuperar o otimismo. Zetes era otimista por natureza.  

Forjar a morte de Zetes era necessário para tirá-lo de cena e permitir que ele voltasse personificando Jasão. Ele devia usar sua capacidade de condensar-se na aparência que escolhesse e seu talento nato de ator para confundir Medeia com juras de amor, deixando-a vulnerável ao ataque do arcanjo.

.

Idmon sabia que suas visões proféticas traziam dentro de si um paradoxo. Eram visões de fatos ainda por acontecer, mas NÃO ERAM VISÕES DO FUTURO. Não do VERDADEIRO futuro, aquele que se consolidaria e ele viveria tempos depois. As visões lhe revelavam futuros não consolidados, que podiam ser mudados se ele agisse para promover a mudança. Futuros que podiam nunca vir a acontecer.

Sua experiência com a presciência lhe ensinara que tudo que podia ser previsto, podia ser mudado. Talvez fosse por isso que não podia ver quem não deixaria o Inferno.

Era algo que ele não poderia mudar.


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Notas finais do capítulo

02.09.2012