Sete Vidas escrita por SWD


Capítulo 142
sete vidas epílogo vida 5 capítulo 11




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SANTA MONICA


Sam estava parado ao lado da cama, a mão que empunhava a faca de Ruby oculta nas costas, decidindo se cravava ou não a faca no peito do monstro adormecido, quando o merman se espreguiçou e abriu os olhos.

– Bom dia, Sam. Está tudo bem? Saiu para correr?

A naturalidade com que pronunciou aquela frase, tão fora de qualquer contexto associado a um monstro maligno, terminou por destroçar a determinação com que Sam entrara no quarto minutos antes.

– Ahn? Ah! Bom dia. Bom dia, Necker. Eu saí, sim. Saí e dei uma corrida. Eu ia .. acordar você para tomarmos café.

– Sam, estava pensando em passarmos o domingo em Beverly Hills. A gente vai cedo, almoça por lá e volta só à noitinha. Vai ser legal. Você está mesmo precisando se divertir.

– Não sei se é isso que eu quero, Necker. Acho que precisamos ter uma conversa séria.

– Conversamos durante o café. Agora, vou tomar um banho para terminar de acordar.

Sam vê o outro entrar no banheiro da suíte e fechar a porta. Senta então na borda da cama e olha para a faca em sua mão. Não lhe parecera certo atacar Necker enquanto ele estava indefeso, dormindo. E agora, com ele acordado, é que não tinha mais certeza de nada. Apesar de tudo, ele não parecia maligno. Forçou pela memória. Queria lembrar de cada comando hipnótico que Necker lhe dera desde que acordara na cama do quarto de hóspedes alguns dias antes.

Precisava saber mais sobre as verdadeiras intenções do merman. Talvez ele o tivesse acolhido apenas para usá-lo como objeto sexual. Era uma hipótese plausível, mas sua pele não mostrava nenhuma marca suspeita e não sentia dor ou desconforto nos lugares que seriam os mais óbvios. E, mesmo agora, com a memória restaurada, não lembrava de nenhum avanço indevido da parte de Necker.

O quê, então? Pelo que lembrava, nenhum dos comandos que recebera tivera a intenção clara de prejudicá-lo. A maioria das intervenções mentais visava ou fazê-lo dormir profundamente, livrando-o de pesadelos, ou afastá-lo de pensamentos depressivos. Lembrou, então, da forma como Necker alterou as suas memórias relacionadas à morte de Adam. A lembrança veio acompanhada de raiva. Ele não tinha esse direito. Por outro lado, se tivesse essa habilidade e visse um amigo afundando num processo autodestrutivo, será que ele próprio não faria a mesma coisa?

Afundando. Necker o atraíra para o mar. Com que intenção? Nem se conheciam. Os fatos mostravam que a intenção não era matá-lo, embora o risco de que viesse a morrer fosse real. O próprio Necker dissera que fora difícil reanimá-lo. Será que Necker armara tudo aquilo somente para aproximar-se dele? Com que intenção? O que poderia querer dele, Sam? Não conseguia chegar a nenhuma conclusão.

Interesse financeiro estava fora de questão. De uma forma ou de outra, já teria descoberto que não tinha nada de seu. Se tivesse negociado sua vida ou sua liberdade com alguém, não lhe daria nem mesmo a ilusão de liberdade. Não o deixaria sair sozinho para correr de manhã ou para fazer compras no supermercado.

Interesse romântico? Nunca conseguiria seduzi-lo. Para tê-lo para si, somente usando seus poderes de persuasão, coisa que aparentemente não fizera. Tivera uma amostra do quanto aqueles poderes eram formidáveis quando Necker o obrigara a tirar suas coisas do hotel e a se instalar no seu apartamento. Um apartamento imenso onde tinha todo o conforto e liberdade para entrar e sair. Isso era algo ruim?

Não tinha dados suficientes para tomar uma atitude mais drástica. Não podia matá-lo somente por ser o que era. Por não ser humano. Adam talvez o fizesse, mas, neste ponto, não pensava igual ao irmão. Talvez por também ser visto por muitos como uma aberração.

Caminhou em direção à cozinha e começou a arrumar a mesa para tomarem o café da manhã, como faziam todos os dias desde que chegara. Uma nova desconfiança lhe bateu. Examinou cuidadosamente todo o conteúdo da geladeira e da dispensa. Nada de suspeito. Pelo menos, nada que indicasse que o merman se alimentava de pessoas. Lembrou que Necker encomendara duas vezes sashimi, mas fora isso comia alimentos cozidos ou processados. Comiam da mesma comida.

O freezer estava cheio de postas de peixe e bandejas de frutos do mar. Também carne, mas a etiqueta do supermercado garantia a procedência. Na geladeira, além do que sobrara do jantar do dia anterior, tinha frios, queijo, frutas e massas. Também leite e verduras. Claro, lembrava ter sido ele próprio quem comprara muitos daqueles itens.

Por ora não faria nada. Livre do comando hipnótico, tentaria descobrir quem era realmente Lars Necker, o monstro com quem dividia o teto.

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INFERNO


– Onde ele está, Crowley? Por favor, me diga onde está o Sam.

– Como eu poderia me negar a atender um pedido tão educado? O Sam está entretendo alguns amigos meus. Gente muito importante. Bem, não exatamente GENTE. Mas IMPORTANTES eles são, sem dúvida alguma. Seu irmão está sendo muito requisitado. Isso não me surpreende. Eu próprio tive uma pequena amostra destas .. deliciosas habilidades dele. Parece que ele nasceu com o dom. Ele sabe agradar um homem. E outros tipos de criaturas também.

– Crowley, eu fico no lugar dele. Liberte o Sam.

– Adam, se você faz questão eu posso providenciar para que você também entretenha meus amigos, mas libertar o Sam está fora de propósito. Seria um desperdício de talento. Ele é realmente fora de série. Além do mais, é fácil ver que ele gosta do que está fazendo. Ninguém fingiria tão bem. Se duvida de mim, pode ver com seus próprios olhos. É isso. Assim você fica mais tranqüilo. Vou levar você para ver o Sam .. em ação.

– Não. Por favor, não.

– Agora sou eu quem faz questão, Adam. Você vem comigo. Vocês dois, tragam ele.

Adam é arrastado por intermináveis corredores cheios de portas de onde escapam sons que ele decididamente não gostaria de saber quem está produzindo e por qual motivo.

– Ali. Está vendo? Veja como ele está gostando. Ele está em êxtase.

A cena deixa Adam paralisado. O horror impede qualquer reação. Sua mente se esvazia. Ele fica ali imóvel, as lágrimas escorrendo sem que se dê conta. Como se a negação dos fatos pudesse mudar a realidade. A realidade de que quem está ali na sua frente, totalmente entregue a algo que .. que ..

– Não, Sam. NÃO. NãÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃão.

Adam não consegue evitar que seu estômago se revire à visão daquela cena repugnante e expulse um conteúdo que ele tinha certeza não ter ingerido.

Todo o seu sacrifício fora em vão. Não pudera proteger Sam. Entendia agora que nunca tivera nenhuma chance de salvá-lo. Nem a si próprio.

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HADES


– A Argo é um barco. E onde estamos não há água.

– É um birreme grego e não simplesmente um barco. Uma obra-prima da técnica antiga de navegação em mar aberto. Rápida e fácil de manobrar. E não precisamos de água. Não escutou a explicação de Kälï. Não estamos no plano físico. Aqui tudo é moldado pela força de vontade e pela imaginação. E nisto, eu, Palemon, vou imbatível. Quem você acha que foi o responsável por colocar o primeiro homem na Lua e trazê-lo em segurança?

– Sendo assim, só nos resta embarcar. Eufemo é mesmo capaz de nos conduzir ao Adam?

– Recebi de meu pai, Poseidon, o dom de caminhar sobre as águas e o de conduzir qualquer barco a seu porto de destino. Não saberia dizer se funcionaria se estivéssemos no tanque de guerra, mas uma vez que eu acredite que estamos num barco, e acredito que estou, eu posso. Posso conduzir a Argo até o homem Adam Winchester não importa aonde ele esteja.

– Então, amigos, baixem a vela e deixem o vento por minha conta.

A grande vela é insuflada pelo sopro de Zetes e a nave alça vôo. Em poucos minutos já avistam, ao longe, o Estige, o primeiro dos rios que marcam o limite entre o reino dos vivos e o dos mortos.

Desde que seu espectro ainda não tenha cruzado o Estige, um homem morto pode ser trazido de volta à vida. Não chega a ser incomum que um afogado, tecnicamente morto, seja reanimado após uma respiração boca a boca ou uma massagem cardíaca. Mesmo que já esteja no barco de Caronte e já tenha pago um óbulo ao barqueiro pela travessia, este não pode impedir o espectro de desembarcar.

Uma vez que o barco se afaste da margem, a volta não é mais possível.

Para garantir que espíritos desorientados de vivos não entrem, mas, principalmente, que os espectros de mortos nunca saiam do Hades, o Estige é guardado por Cérbero, o cão infernal de três cabeças, grande com um mastodonte. Quem tentar passar despercebido pelo guardião do submundo acaba surpreendido por não saber que Cérbero dorme com os olhos abertos e os mantêm fechados quando acordado. O fato de serem espectros ou espíritos não oferece proteção. Cérbero pode destroçar seus corpos espirituais e trazer-lhes a extinção final, a morte dentro da morte.

A Argo seguia veloz na direção do Estige quando se vê obrigada a enfrentar o seu primeiro desafio. Cérbero avança, tentando forçar a nave a mudar sua direção. Ele passa a perseguir a nave como um cachorro costuma perseguir automóveis. Com uma agilidade e uma velocidade inacreditáveis, ele facilmente emparelha com a nave e dá seguidos saltos, tentando destroçá-la a dentadas.

Naquele trecho, ainda próximo ao portal de entrada, não havia como a Argo subir para uma cota acima da que já se encontrava. A crença generalizada de que o Hades existia abaixo da superfície do planeta, no interior da Terra, moldava a dimensão espiritual habitada pelos espectros dos mortos como uma gigantesca caverna. Ali, o teto da câmara era relativamente baixo.

Cérbero salta e sua cabeça central se choca com violência contra o casco da Argo. A nave inteira estremece sob o terrível impacto e perde o prumo, com a proa sendo projetada para baixo e para a direita. O casco não chega a partir-se, mas todos que estavam a bordo são lançados bruscamente para cima. Nem todos, no entanto, têm a sorte de se manter dentro da nave. Jasão e Autólico são projetados para fora.

Zetes assume o encargo de salvar a Argo e os companheiros que permaneceram a bordo de um catastrófico choque contra o solo rochoso. Sua forma etérea luta para reerguer a proa e para estabilizar a trajetória da nave.

Cérbero se apressa a se posicionar de forma a interceptar a trajetória de Jasão que, ao ver que segue em queda livre na direção da boca aberta da cabeça central do monstro, empunha sua espada com ambas as mãos, sobre a própria cabeça. Podia não sobreviver mas não ia deixar barato. Estava determinado a causar o máximo de danos ao guardião do submundo.

Autólico manobra sua trajetória de queda de forma a cair nas águas profundas do Estige. O choque contra a superfície do rio é violento, já que o ângulo de queda não foi o mais adequado. Apesar da sensação de ter se chocado contra uma parede de concreto, ele comemora não estar realmente ferido. Ao tentar alcançar a superfície turbulenta do rio, no entanto, é agarrado por dezenas de mãos que o puxam para baixo.

São os espectros dos mortos que chegaram ao Estige sem que seus corpos tenham recebido ritos fúnebres apropriados ou que acreditam que assim será. Quando o próprio morto acredita que ninguém colocará uma moeda sob sua língua na preparação de seu corpo para sua viagem definitiva, seu espectro não tem como pagar a travessia na barca de Caronte. Os que tentam atravessar a nado, submergem e vagam eternamente desorientados no fundo do leito do rio.

Autólico luta desesperadamente para se libertar, mas percebe que, pela força, jamais sairá dali.

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IDAION ANTRON


O sol poente projetou a sombra da mulher no interior da caverna. Em seguida, havia somente a sombra e não mais a mulher a quem a sombra pertencia. Uma sombra que existia por si só e que serpenteia despercebida pelo chão da caverna até um canto escuro. É neste canto escuro, onde a luz não era suficiente para gerar sombras, que voltamos a encontrar a mulher. Ou assim pareceria a quem a visse.

A mulher tinha a pele muito clara e longos cabelos negros, que usava presos em um gracioso rabo-de-cavalo trançado ao estilo grego. Negra também era a comprida e pesada capa com capuz que cobria seu corpo nu e ocultava seus pés descalços. Negros eram seus pensamentos e o seu coração.

Ela sorriu ao pensar que teria finalmente a sua vingança. Sua implacável e definitiva vingança.


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Notas finais do capítulo

04.03.2012