Andrômaca escrita por Emmy Tott


Capítulo 3
Os escolhidos




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O Vale da Lua era a porção da floresta de Andrômaca que ficava mais escondida. Era rodeada por montes e árvores de grande porte, o que dificultava a sua localização. As folhagens tampavam grande parte do céu, impedindo a penetração dos raios solares, e dando-lhe um aspecto místico. Sua beleza ficava por conta de um lago de águas muito cristalinas e superfície espelhada. Havia recebido esse nome por causa do incrível reflexo da Lua em determinadas épocas do ano. Em noites de Lua Cheia, quando não havia estrelas e o lago se tornava negro como o ônix, o charmoso astro iluminava a floresta com uma representação perfeita do seu original. Tudo o que se podia ver era os dois círculos gigantes que se comunicavam silenciosamente, um de frente para o outro. Era um fenômeno único, quase mágico, que atraia muitas criaturas fantásticas habitantes da floresta, como os unicórnios, os centauros, as ninfas e os duendes.

Por causa disso, aquele tinha sido o local escolhido para os encontros secretos dos Cavaleiros do Tempo. Ali, eles poderiam treinar e se preparar para a missão mais importante e perigosa de suas vidas sem que ninguém os perturbasse. Lûnia era a encarregada de orienta-los, além de sacerdotisa do Templo de Vênus. Seus cabelos eram negros e desciam pelos seus ombros como uma elegante cortina para o seu rosto fino e branco como a Lua. Seus olhos eram acinzentados, assim como os de sua irmã, Narcila. Mas as semelhanças das duas terminavam ai. Lûnia, ao contrário de Narcila, era doce e meiga. Sempre compreensiva e reservada, ela carregava em sua face marcas de uma vida dura e cruel. Ninguém sabia ao certo o que tinha acontecido àquela pobre criatura, sabia-se apenas que ela havia passado por um desgosto muito grande, o que a tornou uma pessoa calada e de pouco convívio social.

Ela observava atentamente o lago de águas profundas e misteriosas, como se fosse capaz de enxergar algo invisível a qualquer outro mortal, quando foi despertada por uma confusão de vozes, que pareciam alteradas:

-...você não podia ter perguntado aquilo para Artêmia! Alguém podia desconfiar de alguma coisa, o que você tem na cabeça?

-Não fale assim com Mika! Ela não fez por mal!

-Parem com isso, vocês dois! Eu não preciso que ninguém me defenda, Ollan! E você, Miguelos, deveria pensar melhor antes de falar alguma coisa!

-Ora, só porque você é a filha do Rei, pensa que pode me dar ordens?

Mika estava prestes a dar uma resposta mal criada, quando todos se sobressaltaram com a voz de Lûnia:

-Já chega! Vocês não devem brigar, têm que permanecer unidos, não se esqueçam disso!

-Foi ele quem começou! – disse Mika, apontando para Miguelos.

-Mas é claro! Imagine que Mika queria discutir sobre o sumiço do Pomo com Artêmia. Foi você mesma quem disse que deveríamos ser discretos para que ninguém descobrisse o que estamos fazendo – argumentou Miguelos.

-Eu disse sim, e é verdade!

-Ora, isso é uma maluquice! Se nós estamos tentando localizar o Pomo, quanto mais pessoas souberem será melhor, não é? Elas poderiam nos ajudar a encontra-lo! Não entendo qual é o propósito de nos escondermos – disse Ergon, se manifestando pela primeira vez.

-Por que vocês são os escolhidos e devem acha-lo sozinhos – disse Lûnia - E além do mais, seria perigoso se as pessoas descobrissem. Ninguém sabe onde Tarumã se esconde e ele poderia fazer algo contra vocês para impedi-los de se apoderarem do Pomo.

-Viu? Você não devia ter falado aquelas coisas no Liceu – reprovou Muiguelos.

-Eu só estava tentando entender – desculpou-se Mika. E, virando-se para Lûnia – você não acha possível que o sumiço do Pomo tenha sido arquitetado por algum deus em decorrência da sua reprova às atitudes de Júpiter?

-Pode ser... mas acho pouco provável que um deles tenha vindo até a Terra para isso.

-Mas ele poderia ter usado alguém para pegá-lo em seu lugar, como Marte fez com Tarumã.

-Usado é uma palavra muito forte! Os deuses, muitas vezes, influenciam os seus seguidores, mas isso não tira a responsabilidade das pessoas. Nenhum deus, por mais poderoso que seja, pode obrigar seus discípulos a fazer algo contra a sua vontade. Não podemos culpabilizar os deuses pelas atrocidades cometidas pelos humanos. Portanto, se alguém pegou o Pomo, o fez porque assim desejou, e não porque estava “dominado” por um deus.

-Você está certa! Isso seria o mesmo que condenar todos os seguidores de Marte pelas atitudes de Tarumã.

-Fico feliz que tenha percebido isso!

-Mas os seguidores de Marte não são confiáveis. São todos uns traidores, adoradores da guerra e da violência – disse Miguelos, olhando diretamente para Anashon, o menor deles.

-Concordo com Miguelos – apoiou Ollan, também olhando para Anashon de cara fechada.

-Isso não é verdade! Não devemos julgar as pessoas pela sua devoção. Achar que os seguidores de Marte não prestam é um preconceito bobo e muito errado. Existem pessoas boas e ruins de ambos os lados. E se não fosse assim, Anashon não estaria aqui – disse Lûnia.

-Lûnia tem razão – disse uma voz gutural, sobressaltando todos pela sua indiscreta aparição – vocês deveriam ser mais tolerantes uns com os outros.

-Dinânius? De onde foi que você surgiu? – disse Ollan, espantado pela repentina aparição do sábio.

-Meus instintos me diziam que algo não ia bem por aqui, e que Lûnia precisaria de uma “ajudinha”. Vejo que eles estavam certos – ele disse, sorrindo para a aprendiz.

-Obrigada, Mestre – disse Lûnia, se curvando levemente para o velho – parece que Miguelos não anda muito satisfeito com as reuniões.

-É mesmo? Então me diga: o que te perturba, meu jovem?

-Tudo! Será que vocês não percebem que nós não temos condições de realizar essa missão? Olhem para nós: somos fracos e inexperientes. O que nós cinco podemos fazer contra Tarumã?

-Bem, vocês são os escolhidos. Foram escalados para essa missão porque são especiais.

-Especiais? Como podemos ser especiais se não temos nada, não sabemos de nada, enquanto que Tarumã é um grande conhecedor das artes das trevas e tem um exército inteiro à sua disposição?

-Tarumã pode ser poderoso, mas vocês têm uma coisa que ele não tem.

-E... que coisa é essa?

-Amor. Vocês são capazes de experimentar esse sentimento sublime, que enobrece e grandifica as pessoas, coisa que Tarumã não pode.

-Você está brincando, não é?

-Não, não estou!

-Então é só isso? Amor? Mas isso é ridículo! Nós não podemos lutar com “amor”. Precisamos de algo mais que isso! Uma arma talvez...

-É, você tem razão!

-Tenho? – espantou-se Miguelos.

-Mas é claro! Certamente que precisarão de algo a mais para derrotar Tarumã. Algo que vocês terão de descobrir sozinhos.

-Será que você não podia falar claramente pelo menos uma vez? Do que precisamos para derrotar Tarumã, afinal?

-Uma pergunta capciosa, essa sua. Contudo, receio não poder responde-la – Miguelos soltou um bufo de impaciência, mas Dinânius continuou – é claro que antes disso, vocês terão que se disciplinarem e desenvolverem suas habilidades. Mas o mais importante de tudo é que aprendam a conviver com as diferenças uns dos outros. Talvez precisem até de um líder!

-Líder?

-Isso mesmo, um líder! Essa é a melhor forma que vocês têm para se organizarem e centrarem no seu objetivo mais aparente: Encontrar o Pomo de Dontono e traze-lo de volta para Andrômaca.

-Essa é boa! Agora só falta você dizer que o líder será a Mika, porque ela é a mais justa, a mais responsável, e não sei mais o que...

-Ah, não! Eu pensei que o líder poderia ser você!

-Eu? – espantou-se Miguelos novamente.

-Sim, você! Acho que possui um instinto natural de liderança que os ajudará muito.Você é ousado e destemido, mas precisa aprender a controlar os seus anseios. Creio que a liderança lhe ajudará muito nisso.

-Bem, e se eu não quiser ser líder? Não acho que isso tenha muito futuro. Cinco adolescentes enfrentando o maior bruxo das trevas não têm muitas chances de serem bem-sucedidos.

-Você só descobrirá se será bem-sucedido ou não se tentar. Mas não se esqueça de que você foi escolhido para estar aqui pelo Círculo Divino. Se os deuses confiam em você, porque você também não pode confiar em si mesmo? Andrômaca precisa de vocês. De todos vocês! São a esperança para o nosso povo. Agora, se me dão licença, precisarei ir embora neste momento. – finalizou Dinânius, se afastando do grupo.

-Hei! Você não pode ir embora assim! – revoltou-se Miguelos, indo atrás de Dinânius, mas o velho tinha desaparecido da mesma forma como aparecera.

-Tente ser menos rabugento da próxima vez – falou Mika, alfinetando Miguelos.

-Você também seria rabugenta se vivesse em uma casa de malucos como a minha!

-Não fale assim, Miguelos – interveio Lûnia – Picolorius e Bolofrenha são ótimas pessoas e você deveria ser mais agradecido a eles, que fizeram tanto por você desde que seus pais morreram!

-Você não precisa me lembrar disso!

Um silêncio incômodo pairou no ar depois disso. Tarumã havia feito muita gente sofrer quando invadiu a cidade. Famílias inteiras foram destruídas, sonhos desmoronaram, filhos ficaram sem os pais, pais ficaram sem os filhos e uma grande sensação de desilusão invadiu todos os andromacanos.

Dez anos depois, as feridas continuavam abertas e doíam com a mesma intensidade de antes. Muitas pessoas já haviam perdido as esperanças, mas outras ainda esperavam pelo dia em que o Pomo seria reposto ao seu lugar de origem. Elas não sabiam, mas os Cavaleiros do Tempo trabalhavam secretamente para que essa esperança não fosse em vão. A única coisa em que eles conseguiam pensar a muito tempo era em como poderiam devolver o Pomo para a cidade e, assim, restituir a paz e a tranqüilidade para todos, quando nem eles mesmos sabiam se seriam capazes. Tinham medo de decepcionar as pessoas, medo de que tudo desse errado, que Tarumã pudesse invadir a cidade novamente e Andrômaca fosse destruída por causa do seu despreparo.

Eles eram compostos por cinco jovens: Mika, Ollan, Miguelos, Anashon e Ergon. Todos se achavam jovens demais, fracos demais para enfrentarem Tarumã e sua grande fúria. Mika, a filha de Paládio, tinha perdido sua mãe quando ainda era pequena demais para entender certas coisas. Mas isso não impediu que ela crescesse com uma vontade cada vez maior de fazer com que Tarumã pagasse por tudo o que causara. Ollan era filho de Odo. Sozinho no mundo desde a morte do pai, foi criado por Paládio como se fosse seu próprio filho. Miguelos não se lembrava dos pais, mas os gritos de dor e desespero ainda estavam gravados em sua mente. Foi criado pelos tios, Picolorius e Bolofrenha, o casal mais simpático e excêntrico de Andrômaca. Anashon era seguidor de Marte, o que fazia com que muitas pessoas o olhassem torto. Embora Paládio tenha feito um belo discurso contra o preconceito em Andrômaca depois da guerra, muitos ainda culpavam os seguidores de Marte por todo o mal causado por Tarumã, o que tornava a vida deles muito difícil na cidade. Ergon não sabia de onde tinha vindo. Provavelmente, seus pais também tinham sido mortos durante a guerra, deixando-o sem casa e sem ninguém. A única coisa que ele sabia é que fora achado vagando, assustado, pelas ruas desertas de Andrômaca depois da invasão de Tarumã.

Juntos, eles formavam esse grupo não muito convencional chamado por Dinânius de “Cavaleiros do Tempo”, ou os escolhidos. Mas eles não tinham muita certeza de aquela “escolha” estava mesmo certa. Não possuíam nenhum dom especial, nenhuma arma secreta. Nada. Apenas a vontade de fazer justiça e reconstituir o que antes fora o melhor lugar no mundo para se viver. A única certeza que tinham, porém, era de que um caminho longo e tortuoso, cheio de armadilhas e incertezas se estendia a sua frente. Um caminho que poderia não ter volta.

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