Andrômaca escrita por Emmy Tott


Capítulo 4
Sólon


Notas iniciais do capítulo

Desculpem pela demora! Eu estava sem tempo para atualizar... espero que gostem do terceiro capítulo ^^



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O dia amanhecera cinzento e nublado. Há muito que o céu de Andrômaca não era mais o mesmo. Não tinha mais a vida e a beleza de antes. Os pássaros se escondiam e as nuvens se estendiam em grande parte do ar, tapando o azul forte e bonito do céu. Mas não era apenas o céu que havia se modificado. Desde o sumiço do Pomo de Dontono, muitas outras coisas haviam mudado em Andrômaca. A colheita se tornara rara e cara, obrigando os habitantes a irem abastecer suas casas há muitas léguas dali, em alguma cidade vizinha. O rio já não apresentava a mesma abundância de outrora. Em determinadas épocas do ano, ele chegava a secar completamente. A cada dia que se passava, a vida em Andrômaca se tornava mais difícil e a esperança de tempos melhores diminuía.

Tudo isso fazia com que os Cavaleiros do Tempo se empenhassem cada vez mais na sua missão, muito embora ainda não soubessem, de fato, o que precisariam fazer para que todo aquele esforço não fosse em vão. Miguelos acordou com esses pensamentos em sua mente, quando foi se juntar aos tios à mesa do café da manhã. Bolofrenha era uma exímia cozinheira. Apesar da comida ter se tornado um artigo raro em Andrômaca, suas tortas e bolos ainda deixavam qualquer um com água na boca.

Rechonchuda e espalhafatosa, ela tinha um coração do tamanho do mundo, e amava e cuidava do sobrinho como se fosse seu próprio filho. Já Picolorius, seu marido, era magro e vivia distraído. A toda hora, Bolofrenha tinha que traze-lo de volta à realidade. Quando Miguelos alcançou a cozinha, a mesa já estava posta. Bolofrenha cantarolava, animada, enquanto o marido observava com muita atenção uma formiga que se movia rapidamente, carregando um farelo de pão.

-Ah, bom dia, Miguelos! Dormiu bem, querido? – disse Bolofrenha, assim que o avistou, distribuindo beijinhos barulhentos pela sua face. Ele odiava quando ela fazia isso. Decerto, ainda achava que ele fosse um bebê.

-Ãh... sim! Tudo bem, agora já chega – ele falou, tentando se desvencilhar dos mimos da tia.

-Eu fiz aquela torta de amoras que você gosta! Sente-se aí que já vou servi-lo – ordenou, indo buscar a forma.

Miguelos se sentou ao lado de Picolorius, que ainda observava insistentemente a formiga. Aparentemente, ele ainda não tinha se dado conta da chegada do sobrinho. Bolofrenha colocou a frente de Miguelos um pedaço generoso da torta, enquanto perguntava ao marido:

-Você vai querer o seu leite agora? – mas como não obteve resposta alguma, gritou – PICOLORIUS! Eu estou falando com você!

O homem se assustou tanto que saltou da cadeira, derramando todo o leite do chão.

-Olha só o que você fez! Eu não sei aonde você anda com a cabeça... francamente – censurou-o, indo buscar um pano para limpar o chão sujo.

-Ora, ela devia aprender a chamar os outros de uma maneira mais educada! Um dia ela ainda vai acabar me matando do coração, escute o que te digo, filho – ele resmungou para Miguelos, que apenas sacudiu a cabeça, reprovando a atitude dos tios.

-O que você estava fazendo, afinal? – ele perguntou.

-Essas formigas... andam cada vez mais atrevidas – disse Picolorius, num tom muito indignado – agora elas nem se importam mais em roubar os farelos às nossas vistas!

-Ora, e quem é que se importa com os farelos? – argumentou Miguelos.

-Você não se importa, não é? Pois deveria! As formigas são servas de Júpiter, se elas estão agindo dessa forma, é porque ele deve estar insatisfeito com a gente!

-Ou talvez porque esse seja o único horário em que elas conseguem encontrar um pouco de açúcar! Desde de que o Pomo sumiu, a comida tem se tornado cada dia mais rara, você sabe disso – ele falou, tentando colocar um pouco de sensatez à conversa.

-Mas é exatamente isso que eu estou falando! A culpa de tudo o que vem acontecendo é do sumiço do Pomo... e quem foi que o pegou, hein?

-Vai me dizer agora que sabe quem pegou o Pomo? – duvidou Miguelos. Ele sabia que a seguir, o tio viria com mais uma de suas teorias malucas.

-Mas é claro que eu sei! Foi Júpiter! O próprio Júpiter!

-Sei... e como foi que você chegou a essa brilhante conclusão?

-É só olhar a sua volta! O que você vê? Desilusão, secas, fome, miséria, violência... Andrômaca já não era mais a mesma quando o Pomo sumiu. As pessoas se tornaram egoístas, Miguelos! Todos se julgavam especiais demais por espetarem sob a proteção do grande Deus dos deuses. Se achavam invencíveis, inigualáveis. A mesquinhez e a ambição se incrustaram sob o povo andromacano de uma maneira tão intensa, tão presente, que as pessoas não conseguiam mais enxergar o seu próximo. Você acha que Júpiter ficou satisfeito com isso? Acha que foi para isso que ele presenteou Dontono com o Pomo? Não, Miguelos! Não! Ele se decepcionou com nós, os descendentes do guerreiro Dontono e resolveu nos castigar, tomando-nos o Pomo, tirando-nos a sua proteção e nos entregando a própria sorte! Viu? Percebe agora como as formigas têm tudo a ver com isso? – ele terminou apontando de forma dramática para as formigas que passeavam tranqüilamente pela mesa.

Miguelos apenas o olhou, incrédulo. O tio era capaz de criar as histórias mais absurdas para justificar suas manias e esquisitices. Vendo que não obtinha resposta, Picolorius abriu a boca, para recomeçar o seu discurso, porém, foi impedido de continuar por Bolofrenha, que reapareceu na cozinha com uma expressão de profunda revolta em seu rosto.

-Já chega, Picolorius! Pare de aborrecer o menino com essas maluquices – disse, apontando ameaçadoramente o indicador para o marido. E, voltando-se para Miguelos com um sorriso carinhoso – você precisa se apressar, querido! Já está na hora do Liceu.

Aproveitando-se da deixa, Miguelos se levantou, apressado, saindo para a rua a passos largos, para que não fosse bombardeado novamente com beijinhos melosos.

***

Já no Liceu, Miguelos se posicionou em seu lugar, sem dar vestígios de que conhecia os demais Cavaleiros do Tempo. Tinham que ser discretos para que ninguém desconfiasse da ligação que os unia.

Naquele dia, eles teriam aulas com Sólon, um professor nem um pouco convencional. Ele era seguidor de Marte, e apenas esse fato já servia para que as pessoas o olhassem com uma certa desconfiança. Muitos chegavam a afirmar, inclusive, que ele tinha sido um dos amigos íntimos de Tarumã há muito tempo atrás, quando ele ainda freqüentava Andrômaca. Dono de uma personalidade forte e intempestiva, ele metia medo na maioria dos alunos. Ele era do tipo que seguia as regras a risca, tornando-se extremamente rígido e exigente. Não aceitava falhas e as punia com severidade. Por tudo isso, aquela era a aula mais odiada pelos alunos. Muitos não entendiam o porque de terem contratado um professor como aquele, mas Paládio sempre de esquivava de tais perguntas, dizendo que Sólon era apenas uma pessoa a quem a vida fora severa demais.

Quando ele chegou ao Liceu, todas as conversas se cessaram imediatamente, todos assumindo uma postura exageradamente séria. Só a sua presença já mostrava a sua imponência. Seus cabelos eram loiros e desciam até o comprimento dos ombros, formando uma cortina que, por vezes, escondia o seu rosto sério e inexpressivo. Os olhos eram de um verde intenso e profundo, o contrastava com o seu nariz anormalmente grande. Tinha um andar duro, como se estivesse sempre marchando. Foi dessa forma que ele adentrou o local, anunciou, com sua voz grave e rouca:

-Hoje as aulas serão ministradas ao ar livre. Queiram me acompanhar – pediu, mas seu tom de voz revelava que aquilo não era um pedido, mas sim uma ordem.

Os alunos se levantaram em silêncio e seguiram o professor em uma fila única e comprida. Brassan, ao notar que seguiam rumo a floresta, perguntou, indignado:

-Você não espera que eu entre aí, não é?

-Senhor Brassan, o senhor não foi autorizado a se pronunciar! E se está com tanto medo assim, não deveria ter saído de casa, afinal, pode ser atacado a qualquer instante por um animal selvagem – ironizou, arrancando risadas tímidas dos alunos.

Porém, bastou apenas um olhar inquisidor para trás para que todos voltassem a se calar. Revoltado com aquela atitude, Brassan sussurrou, com raiva:

-Meu pai vai saber disso!

Mas Sólon tinha uma audição apurada demais para deixar de ouvir um comentário tão ameaçador. Dessa vez, ele virou-se para Brassan com violência, lhe dizendo:

-Se acha que eu tenho medo do seu “querido” pai, saiba que está muito enganado! Dônaco precisaria de muito mais do que boas influências para me amedrontar! E já que você insiste em ser tão inoportuno, senhor Brassan, vai ganhar a chance de iniciar a aula com uma demonstração.

-Demonstração? Que tipo de demonstração? – quis saber Brassan, assumindo uma expressão preocupada em sua face.

-Não se preocupe, não é nada que comprometerá o valioso filho de nosso querido Dônaco – satirizou Sólon mais uma vez.

Parando em uma clareira, ele orientou os alunos que se posicionassem em um semicírculo, enquanto ele foi postar ao centro, com Brassan ao seu lado.

-Paládio me pediu que os ensinasse a se defender, para o caso de tempos mais perigosos...

Mika e Ollan se entreolharam em silêncio. Mas o significava aquilo? Será que Paládio temia uma nova invasão? Ele teria que explicar direito aquela história quando a filha retornasse ao palácio.

-Não há nenhum perigo evidente, é claro – explicou, tentando acalmar os ânimos – Acontece que, sem o Pomo, o Rei teme que Andrômaca seja pega desprevenida. Por isso, ele quer que todos aprendam a se defender – ele fez uma pequena pausa, antes de continuar – Primeiro, eu gostaria de iniciar esse treinamento os ensinando a manejar uma arma aparentemente frágil, mas muito útil e precisa: a flecha.

-Flecha? Você quer que a gente se defenda com uma flecha? – perguntou Brassan, incrédulo.

-Exatamente, senhor Brassan! Uma flecha pode não ser muito forte, mas, se atirada com o máximo de cuidado e precisão sobre membros estratégicos, pode matar o inimigo com um único golpe – explicou Sólon.

O professor pegou uma das flechas que estavam amarradas às suas costas e, mirando com o arco, a atirou contra uma macieira carregada. A flecha, porém, atravessou as folhagens da árvore, parando em algum ponto que os alunos não podiam ver. Se divertindo com o erro do mestre, Brassan denunciou:

-Você errou!

-Olhe com mais atenção, senhor Brassan – disse Sólon.

Brassan se aproximou da flecha, seguido de perto pelos demais alunos. Assim que chegaram ao local, todos puderam ver, com espanto, que o verdadeiro alvo de Sólon era uma única e pequena amora que havia na árvore logo atrás à macieira. Brassan ficou desconcertado. Como era possível ele ter acertado um alvo tão pequeno, que mal se via àquela distância?

-Como podem ver, para se tornarem bons arqueiros, vocês precisam de uma visão extremamente aguçada, além de uma pontaria certeira – disse Sólon, tirando os alunos do transe momentâneo que sua pequena façanha havia provocado.

Então todos voltaram aos seus lugares, esperando que Sólon prosseguisse com a aula. Ele, com um sorriso sarcástico no rosto, entregou o pesado arco que usara antes para Brassan, juntamente com uma flecha.

-Agora, quero que mostre aos seus amigos como você maneja o arco e a flecha!

-Mas... mas... – gaguejou Brassan.

-Faça o que eu mando! Quero que aponte para uma daquelas maçãs e tente acerta-la com a flecha. Lembre-se de puxar a flecha com firmeza para que não saia torta.

Mas Brassan tremia demais para fazer uma boa pontaria. Não conseguia manter a flecha em uma única posição, fazendo-se com que ela dançasse sobre o arco. Quando a soltou, ela fez uma curva acentuada, disparando muito acima da macieira e suas maçãs.

-Isso foi... horrível – disse Sólon, antes de se dirigir aos demais – agora quero que se dividam em duplas e treinem com as flechas, tentando acertar as maçãs.

Seguindo as instruções de Sólon, os alunos formaram as duplas, cada uma pegando um arco e algumas flechas. Por meia hora mais ou menos eles se revezaram para atirar as flechas, mas não obtiveram muito progresso. Os mais novos não conseguiam equilibrar os arcos muito bem, o que fazia com que caíssem ao chão quando tentavam mirar alguma maçã. Enquanto isso, os mais velhos também não conseguiam fazer com que a flecha ficasse parada, o que os impedia a acertar os alvos. Por vezes, eles erravam feio, fazendo com que a lança quase acertasse os amigos. Na última tentativa, Mika tropeçou em um galho aos seus pés, quase caindo em cima de Ergon, que estava ao seu lado.

-Você está bem? – perguntou o amigo, a amparando.

-Hã... estou... me desculpe, eu acho que tropecei naquele galho – disse a garota, lhe mostrando o causador daquela pequena confusão.

-Não precisa se desculpar, acidentes acontecem – tornou Ergon, sorrindo.

Ollan se aproximou, preocupado, querendo entender o que havia acontecido, mas, nesse momento, Sólon encerrou os treinos, gritando:

-Já chega por hoje! É melhor pararmos por aqui antes que vocês acabem matando alguém! Estou vendo que precisarão de muito mais aulas para tentar obter algum progresso. De maneira geral, pode-se dizer que a aula de hoje foi péssima, tirando um ou outro lance de sorte – ele finalizou, dispensando os alunos.

-Que simpático – ironizou Mika baixinho, para que ele não ouvisse – ele podia, pelo menos, levar em conta o nosso esforço...

Porém, antes deles tomarem o caminho de volta para a cidade, foram surpreendidos pela repentina aparição de uma mulher. Quando ela se aproximou, todos puderam ver que se tratava de Lûnia.

-Lûnia? O que faz na floresta a uma hora dessas? – perguntou Sólon.

-Não pretendia atrapalhar a sua aula, se assim pensou. Na verdade, nem sabia que estariam aqui. Acontece que costumo vir passear por aqui de vez em quando, afinal, um pouco de ar livre não faz mal a ninguém, não é?

-Tudo bem, me desculpe! Não pretendia ter sido grosseiro – disse Sólon, com um tom de voz que não combinava com ele.

-O que já é um bom começo – tornou Lûnia.

-Bom... vamos indo então! O que estão esperando? – esbravejou o professor, retomando os seus modos habituais.

Os Cavaleiros do Tempo, entretanto, se entreolharam, comunicando-se em silêncio. Sabiam que aquela aparição de Lûnia não era nem um pouco normal e que ela só podia significar que ela precisava falar com eles de alguma maneira. Por isso, eles esperaram os demais se afastarem, tomando o devido cuidado para que eles não notassem a ausência dos cinco. Precisavam descobrir o que estava acontecendo.


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