Andrômaca escrita por Emmy Tott


Capítulo 2
Dez anos de espera




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Andrômaca tinha conseguido se reerguer depois de muita luta e sacrifício. As casas estavam todas de pé, como se não tivesse ocorrido guerra nenhuma. Paládio tinha desenvolvido seu trabalho com grande maestria. As famílias sobreviventes tinham refeito suas vidas e o povo de Andrômaca estava aparentemente feliz. Mas isso era apenas na aparência, porque interiormente, todos eram consumidos pelo medo. Tudo piorava quando as pessoas iam até o Templo de Vênus e viam o altar vazio, o que aumentava ainda mais o sentimento de insegurança do povo.

No palácio, Paládio acostumara-se com os lamentos e questionamentos de seus súditos. O Rei sempre fora muito querido por todos, mas a falta de respostas e de explicações havia abalado um pouco a sua imagem.

Reuniões intermináveis e inúteis já tinham se tornado parte de sua rotina de estadista. Agora, ele estava em mais uma delas, dessa vez com Dônaco, seu principal colaborador.

A sala de reuniões especiais estava trancada. Paládio e Dônaco já estavam há horas ali, em mais uma discussão. Do lado de fora, havia uma jovem parada como se fosse uma estátua. Mika sabia muito bem que o pai ficaria uma fera se a descobrisse ouvindo os assuntos reais, mas ela precisava saber o que estava acontecendo em Andrômaca. E o mais importante de tudo, precisava saber se Paládio já tinha alguma pista do paradeiro do Pomo ou de Tarumã. Por isso, ela colou seu ouvido à pesada porta de madeira, e ficou escutando as vozes abafadas dos dois:

-Dez anos se passaram desde que o Pomo sumiu! Não podemos mais viver de fantasmas! – dizia Dônaco, com a sua voz carregada e autoritária.

-O Pomo é a única esperança para Andrômaca, Dônaco – Paládio se mantinha firme.

-Andrômaca sobreviveu muito bem sem ele até hoje. E depois, eu não financiei a reconstrução dessa cidade para vê-la afundar novamente em falsas esperanças. 

-Eu lhe agradeço muito pela ajuda que tem me dado, mas não se esqueça de que eu ainda sou o Rei dessa cidade e mereço um pouco mais de respeito.

-Ora, não me venha com essa de respeito! Nós dois sabemos muito bem que eu sou tão poderoso em Andrômaca quanto você.

-Dinheiro nada tem a ver com respeito, você devia saber disso. Mas guarde suas ofensas para você, Dônaco, o que está  em jogo aqui é o destino de Andrômaca.

-Sabe qual é o seu problema? Você dá ouvidos demais a Dinânius. Ele já está velho e caduco, não sabe o que diz. Esqueça essa história de Pomo e vamos dar continuidade às construções públicas.

-Você continua sendo o único andromacano que não acredita nos poderes do Pomo de Dontono.

-Sou um homem prático. Não perco tempo com essas lendas, para mim elas não passam de tolices!

-Às vezes você me espanta!

-Sabe... fico imaginando o que teria acontecido se minha mulher tivesse assumido o trono no seu lugar.

-Acaso acha que as coisas seriam diferentes se Narcila fosse a Rainha? Acha mesmo que Tarumã não teria invadido Andrômaca se você estivesse no poder?

Dônaco deu um sorriso presunçoso.

-Foi apenas uma suposição... mas essa conversa não vai nos levar a lugar nenhum – Dônaco se levantou, preparando-se para ir embora – Se você quiser, continue esperando indefinidamente por um milagre, não vou mais tentar lhe convencer do contrário, embora continue achando isso tudo uma grande perda de tempo.

Dizendo isso, ele foi se afastando de Paládio, sem sequer olhar para trás. O Rei ainda tentou convencê-lo pela última vez:

-Não espero por um milagre, mas por uma nova chance de voltarmos a viver em paz.

Dônaco deu de ombros e apenas disse, antes de sair da sala:

-Tanto faz!

Os dois nunca tinham sido grandes amigos, mas os acontecimentos da última década contribuíram, e muito, para que o clima pesasse ainda mais entre eles.

Ao sair da sala de reuniões, Paládio percebeu que Mika se afastava, rumo às escadas e a chamou:

-Mika? O que faz aqui?

-Eu... nada, só estava passando quando vi Dônaco sair do palácio.

-Estávamos em uma reunião... – Paládio suspirou, cansado – Mas há essa hora você não deveria estar no Liceu com Ollan?

-Pois é, deveria... é que eu me esqueci de pegar a minha harpa. Hoje teremos aula de música, então eu voltei para apanha-la – disse, sorrindo para o pai, com um ar inocente.

-Pois então ande logo, não vá perder aulas!

-Sim, papai!

Paládio se despediu da filha dando-lhe um beijo em sua testa. 

***

Mika ia andando pensativa pelas ruas de Andrômaca quando foi surpreendida por um rapaz que acabara de sair por detrás de uma árvore.

-Que...? Ah, é você... que susto! Por que ainda está aqui?

-Fiquei preocupado com você e... por que trouxe isso? – perguntou percebendo que a garota levava consigo uma harpa.

-Ah, eu tive que traze-la para disfarçar!

-Hum... acho melhor irmos andando então, já estamos atrasados!

-Claro, vamos!

E eles foram se afastando, rumo ao Liceu, uma espécie de escola, onde se ensinava sobre os costumes e as crenças de Andrômaca. Era lá que se formavam todos os cidadãos andramacanos.

Não era muito grande. Tratava-se de um recinto circular e aberto, sendo sustentado por grossas e lisas colunas de pedra. Mas o local não era muito utilizado, pois a maioria das aulas eram ministradas ao ar livre, nos arredores de Andrômaca, onde havia muitas árvores e animais selvagens. A educação na cidade não se dava de acordo com a idade, e sim com o nível de conhecimento dos alunos. Por isso, em uma mesma turma podiam existir alunos de faixas etárias variadas.

Quando Mika e Ollan enfim chegaram ao Liceu, todos olharam para eles, curiosos. Não era comum um aluno se atrasar para as aulas.

-Por que vocês se atrasaram? E... por que trouxe isso com você, Mika? – Perguntou Artêmia, a professora responsável por grande parte da educação dos andromacanos.

-Me desculpe, tivemos um imprevisto no palácio e eu acabei confundindo os dias das aulas, achei que hoje fosse dia de música.

-Sei... – tornou Artêmia, com as sobrancelhas levantadas.

-Imprevisto no palácio, Mika? Não me diga que Tarumã voltou? Ou que encontraram uma pista do Pomo? – disse, sarcástico, um garoto alto, de cabelos longos e negros, olhos cinzentos e um rosto pálido malicioso.

-Nem uma coisa, nem outra! Mas você não acha que eu falaria sobre os assuntos reais com você, não é, Brassan? Se você ainda não sabe, Andrômaca tem outras coisas importantes para se preocupar – respondeu Mika, firmemente.

-Ah, é claro que tem! Como a saúde mental do Rei, que não anda lá muito boa – retrucou Brassan, arrancando risadas de muitas pessoas.

-Já chega, Sr Brassan! A aula já vai começar, e eu exijo o mínimo de respeito com Paládio, que já fez tanto por nós e por Andrômaca! E quanto a vocês dois, tratem de se postar em seus lugares, acho que essa aula já foi interrompida mais do que deveria – falou Artêmia duramente para seus alunos, impondo-lhes ordem.

-Desculpe, professora! – disse Mika, sinceramente, com um fio de voz.

Eles se sentaram no chão, com as pernas dobradas uma sobre a outra, fechando o círculo de alunos do Liceu. Mika pôde sentir o olhar frio de Brassan fuzilando-a. Ela nunca tivera um pingo de simpatia por ele e nem por sua família. Brassan era filho de Dônaco e Narcila, todos arrogantes e metidos, agiam como se fossem a única família de bem em Andrômaca. Faziam de tudo para desmoralizar Paládio e suas ações. Mas, felizmente, a antipatia deles afetava também grande parte dos andromacanos, restando-lhes pouca credibilidade na cidade.

-Bem, hoje falaremos um pouco sobre o Círculo Divino e sua grande influência na Terra – começou Artêmia, brandamente.

-O Círculo Divino é a morada dos deuses. É lá que se encontram as nove divindades que nos regem e protegem: Júpiter, Marte, Vênus, Urano, Netuno, Plutão, Atenéia, Mercúrio e Saturno. Bem, imagino que muitos de vocês já tenham ouvido falar de boa parte deles, isso é natural, mas é necessário um conhecimento mais profundo para se entender a influência que eles exercem sobre nossas vidas.

 “Júpiter é o deus dos deuses, mas não pode controlar os outros. Todos os deuses têm as suas características próprias e agem segundo os seus princípios. Segundo a lenda que explica a formação de Andrômaca, Júpiter teria dado um presente muito especial para Dontono, o fundador da cidade. O ‘Pomo de Dontono’ foi fabricado por Urano, o deus ferreiro, a pedido de Júpiter. Sua intenção inicial era a de presentear um deus com o objeto. O escolhido de Júpiter seria o mais merecedor de todos. Mas Júpiter se aborreceu com os deuses, por estarem muito preocupados com suas causas particulares. Por isso, ele resolveu presentear um mortal ao invés de um deus. E escolheu Dontono, pois era um guerreiro muito nobre e estava prestes a fundar uma cidade às margens de um pequeno rio que cortava a Península Balcânica. Acontece que o Pomo era dotado de poderes especiais. Poderes esses que seriam capazes de equilibrar as forças do mundo e trazer a paz e a harmonia para o local onde estivesse subjugado”.

“Quando os outros deuses ficaram sabendo disso, se revoltaram contra Júpiter. Eles não aceitavam o fato de ele ter dado um presente tão especial como aquele a um simples mortal. Acharam que ele estava desonrando o Círculo Divino, que não se podia presentear mortais com objetos divinos. Mas Júpiter se manteu firme quanto à sua decisão e o Pomo permaneceu em Andrômaca, mesmo contra a vontade dos deuses, até o dia em que Tarumã invadiu a Cidade, como todos devem saber”.

-Se os deuses não se conformaram com a atitude de Júpiter, a senhora não acha possível que tenha sido um deles o responsável pelo sumiço do Pomo? – perguntou Mika.

-Bem, hipoteticamente falando, tudo é possível! Eu, particularmente, acho muito difícil algum deus ter tido a ousadia de desafiar as ordens de Júpiter, pois ele lhe lançaria um castigo muito grande. Mas, por outro lado, eles poderiam ter influenciado outras pessoas a pegarem o Pomo, ao invés de agirem diretamente. Mas é claro que isso tudo são apenas hipóteses, não podemos saber ao certo o que aconteceu realmente...

-Tarumã é seguidor de Marte. Dizem que ele foi influenciado pelo deus da guerra quando invadiu Andrômaca para pegar o Pomo – disse Mika, mais para si mesma do que para a professora.

-Por favor, Mika, nós não estamos aqui para discutir sobre o desaparecimento do Pomo de Dontono! Afinal, dez anos se passaram desde a invasão de Tarumã, muito se especulou, e até hoje, nada foi concluído acerca disso. Agora, vamos voltar para a aula – concluiu a professora, rígida.

Artêmia voltou a discursar sobre os deuses e suas particularidades, mas Mika não a ouvia mais. Sua mente estava longe do Liceu, buscando, mais uma vez, encontrar alguma resposta para as suas perguntas. O mistério do Pomo de Dontono atormentava a garota desde o início do ano passado, quando uma reunião maluca mudou o rumo de sua vida. No começo havia sido difícil se acostumar com aquilo, mas agora ela mal podia esperar para discutir com Lûnia suas recentes suspeitas acerca do Pomo.   

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