Todolist escrita por AnaBorguin


Capítulo 2
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

42 é um número cabalístico.xD~ 



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1° Capítulo

Cheguei do trabalho bem tarde naquela noite, como de costume. A casa estava bem silenciosa e o quarto de Mamãe e Julian estava fechado e quieto. Deveriam estar dormindo já há algum tempo. Adentrei meu dormitório tentando fazer o mínimo de barulho possível. Kath estava deitada e levantou a cabeça quando me viu entrar.

- Boa noite, amor. – disse muito sonolenta.

- Boa noite – cumprimentei enquanto começava a desabotoar a camisa – Tudo bem no trabalho?

- O de sempre. – grunhiu – Cansativo.

Operadora de Telemarketing. Que emprego infeliz! A culpa era minha, naturalmente. Kath abandonara a escola e foi só completar dezesseis anos para que nos casássemos. Precoce. Hoje escrava de um telefone, cobrando pessoas que não queria cobrar, dizendo coisas que não queria dizer.

- E lá no médico? – A voz saiu abafada pelo travesseiro – tudo bem?

O dia havia sido cheio, o que impediu, felizmente, que eu refletisse sobre o assunto. Mas não dava para fugirpara sempre, não é? Seria realmente certo esconder? Ah, sim, seria.

- Tudo bem. – me deitei ao seu lado – Eu lhe disse, era apenas uma enxaqueca sem importância.

- Que bom... – ela desligou o abajur.

Fitei a escuridão por algum tempo. Nunca gostei do escuro e da solidão que ela proporcionava aos meus olhos. Gostava de abri-los e esperar que se acostumassem, para só então dormir. Eu deveria perder estes tiques infantis...

- Sabe, Kath...

- Hum...

- Se algo me acontecesse... Você cuidaria do Julian, certo?

- Claro... – ouvia sua voz saíndo sem emoção.

- E... – havia uma coisa entalada na garganta que me asfixiava - ...Não faça ele ser como nós.

Ficou em silêncio por um tempo mais longo que o habitual.

- Katherin?

- Sim, claro – e virou de posição – Obrigada pela atenção, Smart Bank agradece.

E calou-se de vez.

 Acordei às oito horas. Ao meu lado o espaço vazio avisava que Kath já saíra para trabalhar levando Julian para a creche.

- Bom dia, filho – me assustei com a presença de minha mãe, fazendo o café logo cedo.

- Bom dia, mãe – caminhei até ela e dei um beijo em seu rosto. Quantas vezes mais eu faria aquilo? – Você não deveria estar no curso de crochê?

Quebrou ovos dentro de uma frigideira.

- Ah! Aquelas mulheres só sabem falar de suas vidas! – mexeu os ovos até que as claras se desmanchassem. Odiava ovos assim, ela sabia. – Só falam sobre seus maridos, seus filhos...

- Hum... – preferi comer a última maçã que encontrei na geladeira.

- E também... – me alertei – Acho que Gerard vai passar aqui hoje! – Seus olhos brilharam. – Tenho que preparar o café!

É, eu estava certo, tinha algo de estranho. Minha mãe sabia que eu odiava ovos mexidos tanto quanto eu sabia que Gerard não apareceria. Pelo menos não para comer café da manhã.

- Certo... – continuei roendo minha maçã.

   Eu não era uma pessoa insensível, mas havia aprendido a ignorar alguns hábitos de minha mãe. Não importa o que eu dissesse, Gerard seria sempre seu filho querido. Eu não, é claro. Afinal eu engravidei a garota! Ter um filho era uma ofensa maior do que vender metade dos bens para comprar drogas, na concepção de minha mãe. Não a culpava. Após a morte do meu pai e da “fuga” do meu irmão ela nunca mais fora a mesma. E em seis meses perderia mais um... Deixei que falsse sozinha e saí. Doía um pouco a indiferença dela. Era assim no passado também, até mesmo meu pai nunca prestou muita atenção em mim. Um preço a se pagar por não trazer problemas. Mas eu engravidei a garota! Eles não esqueceriam, nem eu.

   Sem perceber eu cumpria o mesmo papel na vida de meu filho. Não costumava passar muito tempo com Julian, os horários nunca batiam. O único momento do dia em que podia vê-lo – acordado – era no período em que o buscava na escola. Diariamente, as duas horas, ao sair da escolinha infantil, eu o levava para passear de carro. Ele se divertia, eu acho. Ria com as historinhas bobas que eu contava. Por um curto instante, aquele era o nosso momento. Mas era curto mesmo, literalmente. Às 4h o deixava aos cuidados de minha mãe e me dirigia ao trabalho.

   Era garçom em um restaurante francês. E não, isso não era motivo para orgulho, mas foi o único trabalho que consegui e também aquele que sustentava a família. No caminho para o “Le Samedi”, que ao contrário do que o nome dizia, é aberto todos os dias, tive uma estranha certeza: Eu não estava triste. Morreria em seis meses, mas isto não me tocava como deveria tocar. Minha vida fora tão desgraçada e sem emoções que não sentiria falta. Não deixaria legados. Nunca havia realizado algo que pudesse me orgulhar, pelo ao contrário, restaria apenas uma negra mancha na vida daqueles que eu não pude nunca ajudar: minha própria família.

  Só após limpar o chão do restaurante, arrumar as cadeiras e vestir meu uniforme engomado, foi que uma louca idéia me ocorreu. Em minha cabeça era uma vontade que parecia fazer todo o sentido do mundo, mas quanto mais a considerava, mais transformava-se em ilógica. E também necessária. Já no finalzinho do movimento, onde restavam apenas algumas horas para acabar o expediente, a coloquei em prática.

  “Lista a Fazer”, escrevi no verso de um papel qualquer encontrado na cozinha. Havia apenas seis meses para recuperar o tempo perdido. Como prioridade máxima, o primeiro tópico não podia ser outro:

 1- Encontrar um pai para Julian;

Não esperava alguém como eu. Tinha que ser alguém melhor. Com o tempo que eu não tinha, a paciência que eu perdi e a capacidade que eu nunca teria. Meus pensamentos não se assustaram com a visão de ver meu filho chamar um outro alguém de “pai”, nem de prever as noites em que esse homem dormiria com minha esposa. Devia isso à eles. Era vital.

Como em um complemento para isto, o segundo tópico surgiu imediatamente.

2 - Tornar minha mãe feliz;

Mantive-me omisso durante tanto tempo neste assunto. A cada dia assisti sua lenta tortura sem fazer nada. Não me importo de não ser o filho que ela mais gosta, afinal, a culpa daquilo também era minha. Nunca tentei conversar com ela. Bom, nem com ningupem. O que esperar de um garoto que até a 4ª série era considerado mudo pelos colegas? Sim, minha insignificância era gritante. Agora tinha a chance de reparar meu erro, de encontrar algo que a fizesse ser plenamente feliz. Como eu desejei isto!

O próximo item era um tanto controverso. Queria de todo o meu coração, mas entendia que não dependia exclusivamente de mim.

3 - Reaproximar-me de meu irmão;

  Houve uma época em que Gerard possuía um cargo especial para mim: o herói. Era tudo aquilo que alguém desejava ser: ainda pequeno demonstrava ser mais inteligente que a média, mais simpático, bonito e talentoso. Meu avesso completo. Tinha um dom fascinante para o desenho e para a música, e não duvido nada que pudesse representar, sapatear, desfilar... Um Showman! Orgulho da família, óbvio!

  Quando meu pai perdeu o emprego nos colocou em uma escola pública. Acho que foi mais ou menos nessa época que as coisas começaram a mudar. De uma hora para a outra, meu pai e Gerard começaram a se tratar de maneira hostil.

Sem maiores explicações, presenciei brigas feias, que terminavam, vez ou outra, com ataques físicos. Não me recordo com precisão, só tinha dez anos!

  Quanto mais crescíamos, mais a situação se complicava. De qualquer forma, meu irmão ainda tinha papel fundamental em minha vida, apesar de estarmos nos afastando gradativamente. Com vinte e um anos, não era segredo para ninguém – com exceção de minha mãe, que procurava não saber – meu irmão já não era mais o mesmo. Envolveu-se com uma “corja” de viciados e saiu de casa. Ironia, mas em uma das ultimas vezes que saímos juntos,  me levou em uma festinha. Foi lá que conheci uma garota que ele apresentou como sendo “a chata que não largava de seu pé". A bela Katherin nunca imaginou que naquele dia conheceria o cara que destruiria sua vida. Dois meses depois daquela noite já sabíamos da gravidez...

 Mas voltando ao Gee...

 Quando meu pai foi internado, Gerard não foi vê-lo. Enquanto me dividia em cuidar de um bebê recém nascido, tolerar uma mãe entrando em crise, sutentar um casamento entre adolescentes, trabalhar, velar pelo pai enfermo, meu irmão aparecia às vezes para surrupiar algum item de valor da família. O relógio idêntico ao do consultório do Dr. Brooke foi apenas o começo.   Chegou a vender o carro de minha mãe, que ficou sem ter como ir ao hospital.

   Inevitavelmente, meu pai morreu. No enterro pude vê-lo de longe. Estava com aquele Bart, Burt, um nome que eu não fazia questão de lembrar. Daquele dia em diante, foram raros e curtos nossos encontros.

  Mas o que antes me esforçava para evitar hoje era de extrema urgência. Não morreria sem falar com ele. Sem poder entender o que fez o meu herói abandonar tudo aquilo que fora um dia. Precisava saber.

   Olhei para lista por um momento. Parecia que havia escrito milhões de coisas, mas havia apenas três. Esperei um efeito analgésico depois que terminasse aquilo. Mas não ocorreu. Faltava algo, um elemento essencial que desconhecia. Imediatamente a voz grossa do Dr. Brooke voltou a minha cabeça, em uma das poucas coisas inteligentes que me disse:

“Divirta-se”.

  Diversão. O que isso representa na vida de um cara de dezenove anos? E de um cara de dezenove, pai, casado desde os dezesseis anos com a única mulher com quem transou?  Nunca tomei um porre, não usei nenhum tipo de narcótico e até mesmo o cigarro fui obrigado a largar assim que o bebe nasceu. Trabalho de fim de semana, não pratico esporte, odeio televisão. Okay, isto não era diversão! Acho que mal dá para chamar de vida!

Isto me deixou frustrado, com um gosto ruim na boca, e, sendo inconseqüente – e gostando disso – escrevi mais uma frase abaixo das outras.

4 - Me divertir;

 Eu sabia que poderia ser bem egoísta desejar algo assim. Mas, veja bem, até mesmo Kath já vivera mais que eu. Antes que nos conhecêssemos, bem sabia de sua obsessão pelo Gee. Participava de sua “turma”. Apesar de mais nova, era bem mais experiente. Hoje repudiava meu irmão, como se enxergasse nele um passado que gostaria de esquecer.

  Engraçado... Lembrando naquele momento, percebi que não houve uma “conquista”. Nos apaixonamos depois da gravidez confirmada, casamento marcado. Aprendemos a nos gostar...

Sem que percebesse o que fazia, já estava no papel.

5 - Conquistar alguém.

Fitei a lista mais uma vez. Minha alforria. Nem todos têm o privilégio de poder planejar a vida da maneira que eu estava fazendo. Não me preocuparia com o ano seguinte, nunca chegaria a vê-lo. Estranhamente, fiquei feliz.

 - Mikey! Mikey!

É... não havia me livrado dos coelhinhos como pensei.

- Preciso de você! – A voz de Bob me acordou – Terá que atender uma mesa no lugar de Johnny. Ele disse estar estressado, e se recusa à ir lá...

  Acho que eu tenho que dar uma pequena pausa para falar de Bob. Se algum dia pude chamar alguém de amigo, este, com certeza, seria ele.

  Nos conhecemos em um dia muito complicado para ambos. Sentado em um banco de hospital, eu me calava arrasado, o médico acabara de dar a terrível notícia da morte de meu pai. Um cara próximo possuía uma aparência tão derrotada quanto a minha. Havia poucas horas, a mãe falecera. Meio que por acaso, ofereceu-me um comprimido calmante. E assim começou nossa amizade.

  E o que seria de mim sem ele? Aquele que me arranjara este emprego, no restaurante onde trabalhava de aprendiz de cozinheiro. Grande companheiro nas horas de xingar tudo daquela droga de lugar. Fazia ótimas imitações do desagradável Chef Louis, único francês de um restaurante... Francês! Até mesmo o dono era um misterioso chinês que conhecíamos apenas de nome: Jun-Chou Li. Pelo menos era essa  assinatura que vinha em nossos cheques.

- Você pode fazer isso? – perguntou com urgência, preocupado com o refogado que abandonara. – Só precisa perguntar se desejam mais alguma coisa e entregar a conta, rapidinho!

- Bob, não é permitido trocar de garçom durante o atendimento...

- Por favoooor! – pediu veemente. Bom, eu não teria que me preocupar muito com isso mesmo! – Mesa 42!

  Guardei minha lista no bolso com muito cuidado, ajeitei o palitó e fui até tal mesa.

Logo de cara entendi o porquê do estresse de Johnny. Uma pequena discussão parecia acontecer entre os dois homens ali sentados, um cinqüentão e o outro bem mais jovem com roupas informais.

- Você não manda em mim, pai. – apesar de visualmente alterados, não falavam alto. Uma pena, barracos no restaurante era realmente a coisa mais divertida que poderia acontecer, com exceção de quando aqueles luxuosos pratos de porcelana eram quebrados, afinal, NÓS tínhamos que limpar.

- Desejam mais alguma coisa? – me postei ao lado da mesa.

  O velhota me olhou. Terno caro, ar arrogante... Ai, ai agüentei tantos iguais àquele naquela espelunca.

- Mandarão mais outros garçons aqui para me importunar? – soou frio.

- Desculpe? – Fingi não entender.

- São tão incompetentes que ficam se revezando?  - ar arrogante? Digo insuportavelmente arrogante!

- Não seja estúpido, pai. – o jovem bufou.

- Cale a boca! – pensei em sair dali de fininho, mas, para meu horror, dirigiu-se a mim novamente. – Não, infeliz, não desejo mais nada.

Teria quebrado o maxilar dele e teria sido muito gostoso. Mas eu não podia perder o emprego. Ainda não.

- O único infeliz que vejo é você – foi o outro cara que retrucou com o pai – As pessoas não nasceram para fazer aquilo que você quer. Ele não é como suas putas, que você pode esfregar seu dinheiro à vontade.

Um suspiro risonho escapou de meus lábios acidentalmente. O velho notou, a veia de sua testa começou a pulsar nervosamente, uma cena verddeiramente repugnante. Fez uma cara tão desgostosa que pensei que vomitaria em mim, mas não o fez. Sorriu. Sim, aqueles sorrisos que os vilões dão antes de começar a torturar o mocinho. Mas não foi para mim que destilou seu veneno.

- Você e este hábito de proteger os subordinados – bebeu um gole de sua água – Já se esqueceu do Office boy, do operador do xérox...? Agora o novo objeto para minha provocação é um garçom?  Inovador!

Devo ter ficado bem vermelho, porque meu rosto começou a arder. Já bastava. Quando as situações chegavam neste ponto, o correto a se fazer era contatar o gerente e rezar para que não sobrem muitos cacos para se varrer depois. Pois eu tinha certeza que daquela mesa sairia um soco. E o medo era de que eu fosse o alvo. Ah, aquele emprego...  

- É. – ele apenas sorriu – Até que ele é bem bonito, papai. – e pegando uma caneta de seu bolso, anotou algo em um guardanapo. – Aqui está – Me entregou uma seqüência de números – Meu telefone. – o fitei confuso, o guardanapo ainda em mãos. O rosto de seu pai se retorcia de ódio – O dia que precisar de um playboyzinho procurando alguém para gastar seu dinheiro, me ligue. - dobrou o papel e enfiou no bolso de trás de minha calça. Se antes eu estava vermelho, agora era um tom azulado que tomava conta de toda minha pele.

Gaguejei alguma coisa sem sentido, mas fui cortado a seguir.

- Apenas traga essa maldita conta. - o velho disse frio, ignorando toda a cena que ocorrera há alguns segundos. E obedeci.

Ao cruzar a porta do restaurante, o cara acenou, sorrindo irônico.

- Até o motel. - disse alto, constrangendo o pai... e a mim também. - Ah! Sou Frank. - E assim foram.

Coloquei a mão no bolso e retirei o guardanapo. Me permiti rir. Com certeza havia sido uma cena bizarra como em um ano eu nunca havia presenciado naquele lugar. E sem entender o motivo, voltei a guardar o papel, agora no mesmo bolso onde minha "to do list" repousava.

A contagem regressiva começara.

Menos um dia.


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