In Between escrita por dearcamzie


Capítulo 3
Chapter I


Notas iniciais do capítulo

Como mencionado no capítulo explicativo, todas as vezes que julgarmos necessária uma intervenção para melhor compreensão, haverá uma nota inicial.

Este capítulo retratará o episódio "A Casa de L", entretanto, há mudanças no decorrer da narrativa que serão devidamente explicadas. A título de informação, para este e demais capítulos, todas as vezes que a fala estiver entre aspas, - "desta maneira" - significa que ela está sendo dita em russo. Conversamos a este respeito, e para fins de dinamismo, preferimos desta maneira ao invés de colocar a fala na língua citada e ter de traduzir sempre em seguida.

No mais, boa leitura!



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Kaznia  

Branco. Era tudo que havia, em todo lugar. A mente confusa e o corpo despido não ajudavam a formular nada coerente para explicar o motivo pelo qual ela estava naquele local. A incapacidade de articular pensamentos coerentes apenas aprofundava o mistério que a mantinha ali. Afinal de contas, onde era ali? Nada parecia fazer sentido, sua própria existência estava incluída naquela equação. 

Janeiro costumava ser o mês mais frio naquele país, as temperaturas iam num disparate desde a máxima de 9 graus negativos, até a mínima que beirava incríveis 42 graus negativos. Sob essas condições brutais, a neve sobrepunha as paisagens gerais, e o frio abalava até mesmo as grossas camadas de roupas térmicas e casacos de pele. Ventos cortantes, atingindo velocidades de até 25 km/h, assumiam a tarefa de congelar, literalmente, qualquer superfície de pele exposta, transformando o ambiente em um reino gelado e desafiador. 

Isso não parecia abalar a mulher cuja única proteção contra o frio extremo se dava por um pequeno cobertor fino de fibra sintética. Sua caminhada errática a levava a lugar nenhum, a floresta que a rodeava parecia ser suficientemente densa, e grandiosa. Os pés marcavam a neve acumulada no solo, gerando uma trilha de pegadas por onde ela passava. Seus dedos mantinham o tecido preso a seu corpo, impedindo-o de cair conforme andava. 

Apesar do mover rítmico de seu corpo, sua mente permanecia empenhada em decifrar o enigma que a envolvia, cada floco de neve caído parecia carregar consigo mais perguntas do que respostas. Os pensamentos vagueavam em meio à brancura infinita, buscando pistas que pudessem dar um significado à sua presença naquele lugar desconhecido. O próprio silêncio que permeava a paisagem contribuía para a atmosfera surreal, ampliando o mistério que a circundava como um manto gelado. 

As luzes chamaram sua atenção, estavam distantes, mas devido a amplitude da escuridão fornecida pelos galhos altos e retorcidos, a mínima luminosidade se equiparava a um farol. 

Seus passos titubeantes mal geraram uma linha reta, quando a floresta por fim virou algo passado. A sua frente erguia-se uma enorme estrutura, chamativa o suficiente para cativar sua curiosidade, as paredes de concreto se diferiam do tom esbranquiçado que ofuscava sua visão. O silêncio era incômodo, a força do vento proporcionava um choque contra as superfícies incoerentes dos muros, o que gerava um alto, e até assustador, uivo. Mal pôde compreender que não estava mais sozinha até que inúmeros homens se materializaram à sua frente, apontando coisas em sua direção e gritando palavras que não lhe chegavam ao entendimento. Uma luz forte posta sobre seus olhos fez com que ela se encolhesse, as pálpebras se apertando sobre as orbes azuis enquanto as pupilas tentavam se adequar ao excesso de exposição. 

Quando os homens agarraram seus braços e a levaram para dentro, com sua permissão inconsciente, tudo ainda era um borrão. Uma sequência de eventos consecutivos que não eram processados por seu córtex cerebral. Eles a levaram a uma sala, onde lhe deram objetos de vestir, um enorme que ia até seus tornozelos e ponta dos braços, e até mesmo um de enfeitar a cabeça. Tudo que ela precisava era descanso, mas isso não parecia que lhe seria cedido nem tão cedo. Em meio a falas e ações, ela se viu sentada em frente a um grupo de homens que a olhavam com as mais variadas expressões. Havia algo em suas mãos, o cheiro era bom e não custava se aventurar a provar. Levando o objeto à boca, ela experimentou o líquido, os olhos demonstrando sua surpresa pelo sabor agradável. 

Um deles se aproximava, era incômodo, sua leitura corporal indicava o quão irritante ele poderia ser, sua atenção se dividia entre ele, que ostentava um sorriso provocativo no rosto, e o outro que parecia repreendê-lo. Sem movimentos, sem falas, apenas olhar. Quando ele se moveu perto o suficiente para erguer sua mão a seu ombro, ela apenas a tirou dali com um aperto. Não entendia por qual motivo o homem agora gritava e se afastava com expressões de dor. Não teve tempo de buscar respostas, na verdade, não vinha tendo tempo para nada nos minutos desde que chegara aqui. Onde quer que fosse aqui. Outro homem surgiu à sala, mais inteligente que o antecessor, não a tocou, sentando-se em sua frente enquanto falava. A expressão dela era imparcial porque não era capaz de compreender, tudo que vinha a sua mente era um nome. Talvez fosse um, ela também não tinha certeza.

     — Alex.

Ele não parecia ter compreendido, e buscava dela uma resposta, contudo, ela também não a tinha, por esse motivo, o líquido em sua mão foi mais uma vez mais interessante. O monólogo teve uma continuação, e ela se perguntou se ele era realmente um ser de plena capacidade mental.

     — Alex.

Repetindo com um aceno enfático, ela esperou que desta vez fosse clara o suficiente. Por sorte, a conversa terminou. Num óbvio impasse, posto que nenhuma das partes parecia ter a mínima noção do que a outra expressava. Ao menos, eles a deixaram em um lugar em paz. O baque ensurdecedor a incomodou mais uma vez, porém, ao menos estava só. Seu olhar correu ao redor, estudando o ambiente e concordando em sua mente que não era amplo. Estava exausta, e apenas se acomodou sobre uma superfície semi dura que ali havia, antes de adormecer.

A compreensão do tempo, como revelam estudos, está intrinsicamente ligada as batidas do coração. Quanto mais rápido esse órgão trabalha, maior o ruído emitido ao cérebro, o que dificulta o processo de assimilação do mundo ao seu redor. Livros. Haviam vários deles, coloridos e pequenos, repletos de desenhos, como um microcosmo de conhecimento. O homem que lhe falara no primeiro dia também estava lá. Observando-a meticulosamente, como se cada movimento fosse alvo de sua análise crítica.

 Seu coração, uma orquestra pulsante, registrava uma sinfonia variada, batendo: uma, duas, três, ..., cento e vinte vezes por minuto. Havia um mapa, há pouco ela entendera o nome e dera forma ao significado daquilo. Seu aprendizado evoluindo para que soubesse onde estava, e como localizar. Kaznia. Mais uma sequência de cento e trinta batimentos por minuto. O livro com desenhos e cores a ensinava palavras básicas naquela língua peculiar. Mãe. Pai. Coração acelerado, cento e quinze batimentos por minuto. Obedeça. Escute. Instruções rígidas, impregnadas nas entrelinhas. As batidas pareciam se elevar a ponto de senti-las em sua garganta, cento e cinquenta batimentos por minuto. 

Ele andava de um lado a outro, seu olhar, inicialmente crítico, aos poucos se transformando em um de admiração. Dois dias, ou menos? Ela não tinha certeza, mas era capaz de entendê-los agora, e não apenas no que ela descobriu ser sua língua materna, o russo, mas também em inglês. Em um gesto intrigante, o homem lhe ofertava: "conhecer o mundo", uma expressão que, apesar de entender a linguagem, permanecia envolta em mistério para ela, desencadeando uma pulsação acelerada de incerteza, como se seu coração tentasse decifrar o significado oculto por trás daquela proposta. 

• • • 

O branco de sua memória agora tinha nome: neve, uma presença que desaparecera, deixando de adornar o alcance de sua visão. As árvores não possuíam mais o revestimento opaco, e seus galhos pareciam vazios e assustadores, todas as folhas jaziam no chão, secas e escuras. O coturno que comportava seus pés pisoteavam o acúmulo de matéria vegetal no chão, gerando pequenos estalos. A solidão não mais a envolvia; não desde que chegara àquela base. A presença constante dos homens, com suas armas prontas e olhares atentos, insinuava uma sensação de que ela era um ameaça, escapando de sua compreensão tal situação. No entanto, esse desconcerto não era relevante diante da vivacidade do ambiente que agora podia ser nomeado por ela. Esticando a mão, os raios solares lhe clarearam os dedos, como se os acariciasse, e um pequeno sorriso desenhava-se nos cantos de seus lábios, iluminando sua expressão diante da descoberta de uma nova clareza no cenário que a circundava.

     — "O sol lhe dá habilidades, pássaro da neve." - Ele mantinha seus braços escondidos em suas costas ao falar. Habilidades? Como habilidades? — "Agora... Escute."

A orientação imposta deslocou sua confusão para segundo plano, e, instintivamente, ela optou por acatar. Suas pálpebras cerraram-se sobre as esferas oculares, enquanto sua atenção se voltava para a audição. O vento, agora ruidoso, trazia consigo um encantador canto - pássaros, seres alados que regozijavam em harmonia -. Mais um sonido a envolveu, lhe capturando a devoção, e ela sabia de onde vinha, precisando de segundos para identificar que era o tinido do crescimento das plantas, associando-o ao renascimento da natureza. Apesar disso, o canto dos pássaros continuava a ser seu predileto, conferindo-lhe um sensação de leveza e admiração. 

De repente, um estrondo reverberou pelo ambiente. Todos os pássaros ouviram e se assustaram tanto quanto ela, alçando voo de seus lugares nos galhos em um frenesi repentino. Seus olhos se abriram com rapidez, seus músculos reagindo com um sobressalto involuntário. 

Um sobrecarga sensorial veio a seguir, tornando tudo excessivamente alto, incontrolável, e o encanto inicial rapidamente cedeu lugar à dor. Um zunido agonizante ecoou em seu cérebro, debilitando suas forças e levando seu corpo a um impacto abrupto contra o solo. Nem sequer havia se dado conta de quando se elevara do nível do chão, mas não havia tempo para refletir a este respeito,  especialmente quando sua cabeça parecia prestes a explodir, envolta em uma tempestade de sensações avassaladoras e sufocantes. 

Quando suas lumes buscavam algo para se fixar, uma nova onda de surpresa a atingiu, deixando-a perplexa diante do mistério de sua visão aprimorada. As perguntas que ecoavam em sua mente: por que ela conseguia enxergar dessa forma única? O que estava acontecendo? O desespero parecia atingir níveis tais quais um gráfico exponencial, e o calor se alastrou, difundido pelos arredores de seus olhos. Não havia controle, não havia lógica, apenas havia dor e calor. Irradiando, emanando, fluindo de seu olhar. A agonia se tornava palpável, emanando das profundezas de sua visão. Suas mãos instintivamente alcançaram a cabeça em um grito de dor e desespero, numa tentativa de conter e controlar algo que escapava totalmente de sua compreensão. O mundo ao seu redor transformou-se em um borrão, uma mistura de formas indistintas que escapavam de seu discernimento. Cada detalhe era obscurecido pela dor e pela perplexidade diante do que parecia ser uma transformação incontrolável de seus sentidos.

     — "Contenham-na! Contenham-na!"

Suas palmas tentaram conter a energia térmica que fluía, mas não pôde. A nova dor na altura de sua costela começou como um incômodo, como um cutucar forte, e sua reação imediata foi afastar. Com o braço, força imensurável, ela jogou mais um soldado a quilômetros de distância. Os incômodos voltaram, em maior número, e agora eram mais do que isso. Seus músculos se contraiam em resposta, e seu corpo caiu trêmulo no chão. A respiração irregular combinava com os batimentos cardíacos, os espasmos de seu corpo eram uma resposta de sua função neural complexa.

     — Alex...

Não passara de um sussurro, mas talvez, se ela pudesse encontrar uma resposta para isso, não haveria mais aquele excesso de dor, encolhendo-se contra si, a mulher ansiou.

Seu "quarto" parecia menor agora. Os passos agitados a guiavam de uma extremidade a outra, tentando processar o que acontecera horas atrás. Mais um daqueles ruídos altos a fizeram deter seus movimentos e ela se pôs a escutar com curiosidade. Uma criança gritava algo, mas aquela palavra ainda não lhe havia sido ensinada. Apressada, ela sentou-se à cama, as mãos afoitas alcançando o livro que explicava o sentido das palavras, onde ela buscou o significado.

     — "Socorro."

Não houve muito no que pensar, sua resposta involuntário foi agir. Abrindo com facilidade a porta de metal maciço, ela se impulsionou na direção, deixando que seus sentidos a guiassem. Pairando no ar, nem sequer tinha noção de que era capaz disto no início daquele dia, ela voltou a escutar os gritos desesperados da criança, e estes a levaram diretamente a uma pequena casinha de madeira. Não havia muita explicação, ela salvou o garoto daqueles três homens maus. Contudo, ela não sabia a quantidade de força que possuía. Mantendo o menino encolhido contra seu corpo, ela voltou a protegê-lo quando ouviu os carros blindados se aproximarem.

     — "Três homens morreram. Meus homens têm medo de entrar."

Aquele timbre era conhecido, o general que sempre estava em seu encalço. Mesmo tendo declarado aquilo, ela sabia que eles se aproximavam, o que a fez segurar o menino contra si e escondê-lo com seu corpo mais uma vez quando a porta se abriu. Um desconhecido foi o primeiro a adentrar o cenário, seguido de perto por aquele mesmo homem do primeiro dia, ela ainda não gostava dele, da maneira como ele a encarava, por este motivo, ela tirou o garotinho de seu campo de visão.

     — Olá. - Ela sentiu o garoto se esticando, e manteve suas mãos nos braços dele, mesmo que sua cabeça agora estivesse aparente. — Ele não tem nada a temer, nem você. Meu nome é Lex.

Suas sobrancelhas se uniram suavemente, a expressão tensa suavizando e sendo substituída por uma que mesclava esperança à curiosidade.

     — Alex?

     — Claro. Alex.

O desenho de um sorriso se apossou, seus anseios sendo supridos com vigor. Alex. Agora ela teria respostas e uma ajuda verdadeira. Ele poderia dizê-la quem era, de onde viera e porquês. Muitos deles. Confiando no homem, ela permitiu que os soldados mantivessem a segurança do garoto, e despediu-se, voltando para a base. Eles a levaram de volta ao seu cômodo, e ela aguardou sentada sobre a cama, por ele.

     — Vivi em um lugar como este por muito tempo. - Ele estava parado em frente a porta que ainda não havia sido consertada. — Você gosta daqui?

     — Não sei do que gosto. - Sua sinceridade foi finalmente verbalizada após seu breve estudo do local.

     — Te ensinaram inglês?

O sotaque era diferente do que os demais naquela base possuíam, e foram necessários alguns segundos para compreensão, produção de resposta e verbalização.

     — Muito pouco. - Confessou, suas feições contorcidas em uma pequena careta. — Você está... com raiva de mim?

     — Por ter salvado uma criança? Não. Fez o que era correto.

Desviando o olhar para o chão, sua cabeça concordou em um aceno breve. O correto. O que era correto? Ou errado?

     — Eu ouvi dor. Não sabia da minha força. - Seu estômago ainda revirava pela realização de que havia matado aqueles homens.

     — Você gostaria de saber?

Encarando-o por alguns segundos, houve ponderação. Gostaria? Bem, talvez. Assim evitaria outras... mortes. Após sua concordância, ele se ofereceu para levá-la a um lugar, havia um mecanismo estranho, e ele a explicou em russo como funcionava. Posicionando-a, eles iniciaram o teste, suas palmas sustentavam um peso absurdo, e isso lhe exigia, gerando alguns poucos tremores nas pernas e um arfar.

     — Alex, seu nome é a única coisa de que me lembro.

Cansada de suportar aquela pressão, ela se projetou para frente, e o metal pressionou o chão em um baque irritante, que ainda fazia seu ouvido protestar. Parando em frente ao homem, ela esperou por respostas, mesmo que soubesse que seu inglês era péssimo.

     — Digamos que éramos melhores amigos.

A última expressão não lhe era conhecida, sua cabeça tombando suavemente para o lado, juntamente com a junção de suas sobrancelhas que gerou um vinco em sua testa, fizeram o homem entender isso.

     — "Amigos." - Tentou desta vez em russo. — "Bons amigos."

     —"De onde eu venho? Sou diferente. Por que?"

     — "Logo explicarei." - Declarou após o despertar de seu relógio, voltando ao inglês. — O tempo acabou, tenho que ir. - Entregou-lhe um pacote do que pareciam ser biscoitos. — Vá em frente. Precisa ver o mundo como eles veem.  - Estudando a embalagem, seu interesse cresceu. — "Mandarei livros. Materiais para estudar. Quando eu voltar... Inglês!" - O russo retornou enquanto ele caminhava para trás.

Compenetrada no objeto em suas mãos, ela abriu o pacote, alcançando a comida em seu interior e levando a boca. Uma mordida foi o suficiente para ganhar sua afeição e devoção. Aquilo tinha um sabor divino! Como uma forma mais consistente da bebida experimentada no primeiro dia.

Os dias se passaram, e como dito, os livros chegaram. Bastante conteúdo sobre o próprio Alex também estavam contidos nas entregas, e ela aprendeu o que lhe era passado com facilidade. Quando o homem retornou, eles tentaram xadrez, um jogo complexo, e ela percebeu o quão perspicaz ele poderia ser. Seu inglês ainda era raso, carregado de sotaque, o que mais lhe interessara de qualquer forma havia sido a vida dele, buscando em sua mente algo a se apegar, alguma mísera memória que fosse. O nome Lena chamara sua atenção, era a irmã mais nova de Alex, mas ela não conseguia saber o motivo. Para além dos livros, Alex a ajudava com suas habilidades, testando-as e catalogando-as. Nem todas as atividades lhe eram agradáveis, como quando ele a levava a uma espécie de câmara com luzes vermelhas que emitia gases e vapores de cheiro ruim. Eles também saíam ao ar livre com mais frequência, e seu voo era analisado e corrigido, agora era muito mais fácil do que sua primeira tentativa com o garotinho, que descobriu se chamar Mikhail, embora sua aterrisagem ainda fosse um verdadeiro desastre. Sua jornada terminara mais cedo que o habitual, Alex a chamava com pressa, e ela havia ouvido quando seu relógio apitou, como da primeira vez.

     — Eu não entendo o porquê de estarmos com tanta pressa. - O sotaque russo ainda era aparente em sua fala, ela estava pousando, com dificuldade óbvia devido seus tropeços, quando ouviu uma explosão atrás de si.

Virando-se, seus olhos se estreitaram em uma busca do que significava aquilo. O céu parecia agora enfeitado de pequenas partículas esverdeadas, que flutuavam pelo ar em abundância.

     — O que é aquilo? - Sua voz se perdeu em uma onda de dor.

Era como sentir que sua pele derretia e talvez, se ela tivesse sorte, seria logo arrancada de seus ossos. Como se pregos estivessem em sua corrente sanguínea.

     — Temos que fazê-la entrar.

A voz do homem reverberou, sua mente em uma névoa de angústia, e suas forças mal serviam para lhe ajudar a se erguer do chão onde seu corpo jazia. A dor era tanta que ela sentiu que poderia vomitar a qualquer momento. Os soldados tentavam erguê-la, mas pareciam incapazes de tal feito, sendo necessária sua própria vontade para que eles conseguissem arrasta-lá para o interior da base.

     — O que está acontecendo comigo? - Sua voz era como um espelho da aflição incutida a seu corpo.

     —  A única coisa na Terra que pode te machucar, e os americanos a espalharam no ar.

     — "Dói!" - Sua mente não funcionava corretamente e a palavra em russo parecia mais acessível naquele momento. Seu corpo fora sentado em uma cadeira, e a dor não parecia que desapareceria tão cedo.

     — Nunca mais se sentirá assim. Eu a protegerei. Mas tem algo que devemos fazer antes. - Sua mão continha uma pequena caixinha de veludo. — Sua carne é fraca. É o único momento em que podemos fazer isso.

Ela não sabia o que era "isso", ou por quê era necessário, não quando tudo que ela sentia era dor. Até que algo pinicou em sua orelha, conforme Alex pressionava ali, como um empilhamento de flagelos.

     — Um dia, terá que estar à altura dela.

     — Quem?

A resposta não veio de uma verbalização, apenas um aceno de cabeça. Uma espécie de parede se ergueu ao seu redor, e havia telas por toda a altura de sua visão. Quando aquele protótipo de cápsula por fim se vedou, a dor se extinguiu, e ela pôde voltar a respirar tranquila.

     — É hora de saber toda a verdade. Você é forte. Você é Kaznia. Mas também é algo a mais, minha querida Filha Vermelha. O flash verde que você viu é veneno para sua espécie. Feito de fragmentos do seu planeta natal. Você é uma das últimas filhas de Krypton.

     — Krypton?

    — Você trará uma nova era de paz, igualdade...

O discurso foi interrompido pelo soar de um alarme, alto e imponente, daqueles que emitiam emergência apenas ao ser escutado.

     — A base está sendo invadida. - Um dos soldados gritou.

     — Eu posso ajudar!

     — Não, você fica. Ainda há kryptonita no ar, você não poderá ajudar. Não se preocupe, eu resolverei isso.

A voz de Alex ia se afastando, e as imagens à sua frente pareciam sem sentido sem sua narração agora. Ela podia ouvir que havia seis guardas na sala juntamente a ela, e que todos os outros haviam subido os níveis até o epicentro do caos. Seu cenho franzido, e as sobrancelhas unidas quando passou a ouvir os grunhidos e gritos de dor dos soldados, um a um, como se estivessem sendo vencidos em massa. Não parecia ser uma invasão inimiga, não havia tanques ou armas sendo atiradas, não as que não fossem de Kaznia. Ela não havia escutado um linguajar diferente, ou outra língua. O que, ou quem, atacaria uma base militar por conta própria e ainda levaria êxito?

       — Rapazes, vocês deveriam ser mais receptivos com as visitas, não acham? - O timbre era feminino, e desconhecido. Terminantemente desconhecido. O inglês tinha um acento suave, e gerou cinco segundos de silêncio antes que uma sessão de tiros se materializasse. — Eu realmente não queria lutar, mas já que vocês estão com toda essa disposição.

Nível a nível, os soldados eram incapacitados e vencidos, em frações de segundos. A garota se pôs de pé, a cadeira caindo na parede atrás de si, mas sendo impedida de escorregar até o piso por sua própria panturrilha, posto o quão apertada a cápsula era. Suas mãos se fecharam em punhos. 

Os americanos? Alex havia acabado de citá-los, o que eles queriam com ela? Seu coração bombeava o sangue por seu corpo de maneira enérgica. Os soldados da sala pareciam neste mesmo frenesi, os passos se aproximando do ambiente, a tiveram usando sua visão. Agora ela podia controlar, embora apenas a parte que descobriu ser raio-x, quanto aos lasers, estes haviam rendido ondas e mais ondas de choque, ela precisou tentar conter e controlar o mais rápido que podia, mas em nenhuma dessas tentativas, ela havia conseguido. O que viu se parecia com uma pessoa, não uma qualquer, como os soldados ou Alex, mas diferente. A fisiologia e a quantidade de radicação que emitia era apenas... diferente.

      — Vocês não acabam nunca? - A voz da mulher a assustou. Era uma mulher, a segunda que via em todo aquele tempo.

Os soldados também pareciam surpresos com a rapidez com a qual ela chegara ali. Eles ergueram suas armas, contudo, mais uma vez, estavam inconscientes no chão em questão de segundos. Tentando andar para trás, ela se apoiou na parede, esta que agora descia sem permissão, fazendo com que ela tropeçasse na cadeira e ambas fossem ao chão. Erguendo o antebraço, ela cobriu suas vias respiratórias e esperou pela dor da kryptonita, esperou e esperou... e nada. 

Confusa, finalmente se deu conta de que não estava sozinha, o que já era óbvio, mas o medo e o pânico a desviaram deste trajeto. Seu olhar se elevou, ainda no chão, ele tracejou desde as botas vermelhas com detalhes em azul e dourado, passando pela calça em um azul royal que também era adornado por dourado na altura das coxas, cinto vermelho, até chegar ao busto que mesclava todas aquelas cores, numa espécie de macacão, como o que ela mesma vestia, mas de aparência muito mais tecnológica. Quando por fim, o rosto da mulher se fez visível no seu campo de visão, ela pôde dimensionar o quão linda a mulher era. Linda e forte. A energia que emanava dela parecia conversar consigo, de uma maneira inexplicável. Seus cabelos eram loiros, tais quais os seus, porém em um tom muito mais claro, também era deveras mais curto e liso.

     — Oi, Kara! O que está fazendo ainda no chão? Vem, precisamos ir!

Como a mulher sabia como chamá-la? Como ela parecia tão certa de que iria com ela? Sua sobrancelha ergueu-se ao mesmo tempo que os lábios se abriram e ela tentou pensar em algo coerente para responder. Seu raciocínio foi interrompido por mais gritos e um som bastante conhecido: armas de choque. O corpo se retraindo instantaneamente, e ela se ouviu choramingar de forma incoerente quando uma mão se materializou a sua frente.

     — Vamos sair daqui.

A oferta parecia boa se isso significasse não levar mais choques. Talvez ela se arrependesse, mas não é como se soubesse muito sobre suas próprias escolhas.


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