Pimenta nos olhos dos outros é refresco escrita por Déh


Capítulo 2
Nem tudo que brilha é ouro


Notas iniciais do capítulo

Tentei escrever esse capítulo de forma um tanto apressada para terminar de falar do relacionamento abusivo dos pais de meu personagem pois não gosto de escrever sobre relacionamentos abusivos, no futuro só farei menções onde for necessário, deixando claro que está acontecendo mas não escreverei muitos detalhes..



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Me envergonho de admitir que me ajustar à nova realidade levou mais tempo do que pensei que levaria, aceitar a perda de uma vida inteira, de minha autonomia, de todas as minhas conquistas que tive tanta dificuldade para alcançar me levou a um estado estranho de dormência novamente e minha consciência da realidade ficou comprometida e foi como assistir a um filme estrangeiro sem legendas.

Lembro de passar algum tempo em um local que fedia a desinfetante e gente velha, lembro de sentir mãos que trocavam minhas roupas, limpavam ferimentos que não sabia que tinha e que definitivamente deveriam doer, escutei vozes dirigidas a mim mas estava cansada demais para tentar entender ou responder, então meus movimentos pareciam mais restringidos e notei que tinha um gesso no braço esquerdo e o que parecia algum tipo de bota rígida no meu pé direito, acho que fui levada para muitos lugares diferentes, muitas pessoas diferentes tentaram falar comigo, mas não voltei a casa de onde fui resgatada.

Entrei em luto profundo não apenas pela minha vida perdida mas também pela minha identidade como mulher. Todo o trabalho que fiz para escapar da armadilha de detestar minha feminilidade, aprender a me amar e como me defender e defender os direitos das mulheres, todas as manifestações e projetos feministas dos quais fiz parte e que me trouxeram um grande sentido de pertencimento já não poderiam mais fazer parte da minha identidade, não importa como eu avalie as poucas e novas memórias em minha mente, eu renasci em um corpo masculino e minha pele é mais branca que papel, sinto como se o destino tivesse me arrancado de um lugar seguro e acolhedor e colocado uma tranca para a qual eu não tenho mais a chave ou o direito de abrir, me deixando tão sozinha e perdida que me despertou um medo profundo de nunca mais pertencer a lugar algum. E esse medo só cresce quanto mais percebo quão diferente este lugar é do meu país.

Não sei quanto tempo se passou, mas a névoa em minha mente está lentamente se dissipando, posso escutar as palavras que os outros dizem, e não apenas os sons de suas vozes. Inglês não foi minha primeira língua, nem sequer foi a segunda, mas entendo o suficiente para não estar tão perdida quanto antes. Ao que parece minha falta de resposta e estado quase catatônico foi atribuído ao trauma, estou constantemente sendo levada a consultas com uma psicóloga que compartilha com minha mãe suas preocupações de que o trauma pode me levar a um atraso de desenvolvimento e um atraso na fala, o que pode ser útil para mim, não sei se serei capaz de agir como outras crianças e falar sem meu sotaque. A comida é estranha, os cheiros são estranhos e até as ruas são estranhas, e ter que traduzir tudo em minha mente sempre me deixa perdida quando tento entender as conversas ao meu redor e me deixa tão cansada.

E então escutei “meu bem?” dirigido a mim. Minha mãe ao meu lado, tentando me convencer a pegar os biscoitos em sua mão sem a menor ideia de como essa simples frase fez meu coração disparar.

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Nos dias ruins, aqueles em que a má sorte vinha sem avisar, sua avó sempre dizia “a única certeza que temos na vida, é a morte”. Quando criança o significado da frase se perdia em seu raciocínio infantil, quando adolescente a frase lhe enchia de tristeza e desânimo mas como uma mulher adulta Ana sabia que a avó estava errada. As únicas certezas na vida são a morte, a fuga e a expectativa escondida dentro do silêncio.

Nunca existiu paz no silêncio durante as refeições quando ela tinha dificuldade de engolir a comida com o medo devorando suas forças. Não havia paz no silêncio da volta da escola quando ela se escondia em seu quarto sem trancas na porta esperando o momento em que seu pai chegasse do trabalho. Não havia paz no silêncio entre sermões na igreja com os pais ficando cada vez mais frustrados com a mistura do calor, do tédio e dos olhares indiscretos das beatas que sabiam que as crianças não usavam as blusas de manga comprida por gostarem do estilo. Não havia paz no silêncio toda vez que se aproximava da mãe para pedir ajuda, e não houve um momento de paz no silêncio dos becos onde se escondeu para dormir à noite quando finalmente fugiu aos dezessete anos.

Foram anos vagando de rua em rua o dia inteiro tentando sobreviver ao clima, à fome e pessoas ansiosas para predar em mais uma mulher vulnerável, até mesmo aqueles que compartilhavam da mesma miséria que ela.

A constante série de infortúnios a deixou alerta para quando chegava o momento de se esconder e quando chegava o momento de arriscar, então quando conseguiu seu primeiro emprego com a ajuda de uma funcionária de um abrigo para mulheres, juntou o suficiente para alugar um pequeno apartamento com duas outras mulheres e pela primeira vez em sua vida conseguiu juntar algum dinheiro para se divertir e aprender a se cuidar melhor ela baixou a guarda.

Um verdadeiro cavalheiro a abordou na loja em que ela trabalhava, ele era alto, bonito e tinha o charme estrangeiro cheio de promessas de uma vida melhor em seu país, ele sabia como dizer todas as coisas certas e foi a primeira pessoa que a tratou como prioridade, sempre queria saber onde ela estava, passando cada momento livre com ela, queria conhecer todos os seus amigos e até com quantos clientes falou durante seu turno, era como um sonho, suas fantasias românticos de adolescente virando realidade com um namorado tão carinhoso e afetuoso.

Ela não estranhou quando ele ficou cada vez mais exigente de seu tempo, como ficava irritado quando ela tinha planos com amigos que não podia cancelar, e quando suas amigas expressaram preocupação ele explicou que elas tinham inveja de seu relacionamento, como era normal ter o namorado como prioridade, e lhe revelou que elas não tinham sido gentis com ele quando ela se afastava toda vez que saiam todos juntos, e ela não teve escolha a não ser diminuir o contato.

Sua solidão sendo preenchida pela presença sempre amorosa de seu cavalheiro de armadura brilhante, e suas promessas de uma vida feliz e longe das dificuldades e memórias ruins de sua infância ficaram ainda mais tentadoras. Ela finalmente usou o restante de suas economias para conseguir seu passaporte.

Em um ano ela conheceu seu primeiro namorado, noivou e casou já com viagem marcada para passar sua lua de mel no país que seria seu novo lar, onde construiria sua própria família e nunca mais teria que se preocupar com ter o suficiente para pagar as contas novamente, seu marido lhe prometeu que cuidaria de tudo, seus 45 anos de vida lhe garantiam mais maturidade e experiência comparado com seus recém completos 20.

Sua vida de casada foi uma repetição de sua infância, a familiar rotina de ir dormir e acordar com medo todos os dias, o cheiro constante de álcool impregnado nas roupas de seu marido, os longos períodos de gritos e insultos após o trabalho seguidos pelo silêncio sufocante enquanto tentava tratar suas feridas protegida pela porta trancada do banheiro. A mudança abrupta de comportamento não devia ser uma surpresa, ele se justificava.

Ela não se arrumava o suficiente, ela não limpava o suficiente, a sua comida não era saborosa o suficiente, ela não cuidava dele o suficiente, ela não contribuía para o casamento o suficiente, se ela ao menos se esforçasse mais então ela poderia merecer um tratamento melhor.

Seguiram-se então dois anos de trabalho constante. Ana começou a tentar trabalhar como faxineira, não sabia falar o idioma fluentemente no começo e o habitual preconceito com a profissão só foi acentuado pelo seu sotaque forte e claro status de estrangeira, o pesadelo nunca parecia terminar.

O que antes parecia um gesto romântico de seu marido exigindo que mandasse mensagens o tempo todo descrevendo o que estava fazendo, com quem estava falando, e a localização constante a mantinha com a mão tremendo de medo do momento em que saía de casa ao momento em que retornava.

Seu único e secreto momento que lhe dava a oportunidade de realmente respirar durante o dia era Simone, uma idosa mulher cubana que entendia suas dificuldades, que vivenciou a mesma armadilha à qual Ana estava presa em sua juventude, ela sabia que se tentasse forçar Ana a enxergar o abuso e aceitar ajuda com palavras apressadas e mal formuladas só privaria a jovem de seu único sistema de apoio.

Simone sempre era paciente para escutar e teve a sabedoria de preparar um plano para ajudar sua jovem amiga durante as pequenas aulas de inglês que provia quando Ana vinha para limpar sua casa.

Em seus dias de juventude ninguém lhe estendeu a mão e ela preferiria perder os braços do que deixar o mesmo acontecer com outra mulher. A filha mais velha de Simone era advogada, e seu filho mais novo um enfermeiro, e logo ambos foram informados da situação, sem o conhecimento de Ana, e estavam se preparando para ajudar quando Ana estivesse pronta para receber a ajuda.

No ano novo de seu terceiro ano nos Estados Unidos, Ana descobriu sua primeira (e última) gravides. O bebê veio com muitas mudanças, seu marido estava muito satisfeito por finalmente ter seu precioso filho para passar seu nome adiante. O antigo cavalheiro estava de volta, e todo o esforço de Simone para afasta Ana de seu abusador foi momentaneamente esquecido.

A vida era muito melhor agora, sem precisar esconder os braços com blusas muito quentes no verão, e quando o bebê aprendeu a parar de chorar tão alto os gritos do marido diminuíram consideravelmente, e ela pôde até largar o emprego cansativo para cuidar de seu filho em casa, ela não podia mais sair para encontrar Simone ou mandar mensagens pois o telefone de seu marido infelizmente quebrou e ele teve de pegar o dela para levar para o trabalho, mas logo Simone começou a visitar sempre que ele estava no trabalho.

Foi somente quando seu filho tinha 2 anos que o perigo de sua situação pesou em seus ombros quando ela viu uma mãe e seu bebê fazendo compras no supermercado, a criança ria, brincava e chamava por sua mãe de seu lugar no carrinho de bebê. E então Ana voltou seus olhos para seu próprio filho.

Seu filho tão, tão silencioso.

Seu bebê que não falava uma palavra, que não mais chorava no meio da noite e amanhecia com as fraldas sujas, que não chorava quando tinha fome, não chorava quando caía e se machucava.

Ana se lembrou do perigo do silencio, e soube que era hora de lutar a mais difícil das batalhas e deixar o marido, ela não seria como sua própria mãe, ela seria forte e inteligente, não permitiria que seu filho crescesse na mesma casa da sua infância.

Naquele mesmo dia, ela voltou para casa, arrumou uma pequena mala somente com roupas e itens de seu filho e se apressou para sair com a intenção de buscar refúgio na casa de Simone quando seu marido entrou em casa antes que ela tivesse a chance de abrir a porta.


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Notas finais do capítulo

Para sinalizar quando uma palavra está sendo dita em português eu irei colocar em negrito.



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