Pimenta nos olhos dos outros é refresco escrita por Déh


Capítulo 3
O Seguro Morreu de Velhice




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Ana estava a um passo de enlouquecer. Sim, este era um sinal que Lake estava melhorando, mostrando interesse no mundo ao seu redor, estava finalmente tentando desenvolver sua fala, mas já era a décima vez consecutiva que ela tinha que recomeçar o filme O Rei Leão, o que tinha nesse filme que o menino não queria assistir mais nada além disso?

Rose, a psicóloga responsável pelo caso de seu filho tentou explicar que ele é neurodivergente, primeiro ela pensou que ele era autista, mas quando ele começou a reagir ao mundo ao seu redor novamente começou a mostrar sinais fortes de TDAH, e que ele teria “interesses especiais” por certas coisas e era importante incentivar a criança, mas ela estava chegando ao limite.

A única coisa a impedindo de ficar genuinamente brava era observar seu doce menino sentado de cabeça para baixo no sofá de Simone tentando copiar as falas do filme, soava mais com o resmungo de um bebê muito mais jovem, mas Rose já a alertara para o atraso da fala e ver ele se esforçando a copiar os sons era uma grande vitória comparado ao estado quase catatônico que ele se encontrava a menos de oito meses atrás.

O incessante “Hakuna Matata” só parecia divertir Simone, felizmente. Eles estão hospedados com ela até que consigam a condenação de seu em breve ex-marido e ela consiga acesso às contas e outros bens no nome dele, sorte que ele não pensou em pedir a ela para assinar um acordo pré-nupcial. Ele pode não ser rico mas possui algum dinheiro herdado dos avós, a casa de 3 quartos onde moravam em um bairro bom e um carro, ela gostaria de usar o dinheiro para começar um fundo de faculdade para Lake, mas os custos do hospital, da ambulância que os levou até o hospital e os gastos que ainda estava tendo com a psicóloga para Lake estavam criando dívidas cada vez maiores que ela precisaria quitar primeiro. Ela sempre poderia vender a casa e comprar algo menor e mais barato para economizar, e teria que decidir se manter o carro para não precisar caminhar e pegar ônibus para ir trabalhar seria mais vantajoso do que vender para começar sua nova vida completamente sem dívidas.

Ana suspirou e voltou a prestar atenção à louça que estava lavando, precisaria terminar logo para não se atrasar para se encontrar com sua advogada, Maria Guadalupe era uma mulher feroz que estava movendo céus e terra para apressar seu divórcio enquanto aguardavam a data do julgamento, ela só precisava se manter forte um pouco mais, ela poderia formular um plano assim que os problemas imediatos fossem resolvidos, mas a preocupação e ansiedade estavam sempre presentes. Como ela poderia sustenta seu filho sozinha e oferecer o tipo de cuidado especial que ele precisava? Continuar usufruindo da generosidade da família de Simone não seria uma opção para sempre, ela precisava se tornar independente, ela quase conseguiu no Brasil mas isso foi antes de se tornar mãe, e não haveria colegas de quarto para dividir as contas agora, ela não poderia se sentir segura com estranhos morando na mesma casa que seu filho, ela precisaria estabelecer bem suas prioridades. Sacrificar uma boa e espaçosa casa por um lugar menor para ter dinheiro para continuar cobrindo as despesas da psicóloga, procurar uma escola pública em vez de tentar uma educação particular para poder arranjar alguma atividade esportiva que Rose recomendou para Lake, começar a comprar mais comida enlatada em vez de tentar preparar refeições mais saborosas como fazia no Brasil para economizar algum dinheiro para emergências.

E ela ainda queria repagar a gentileza que a família Lopez estava dando a ela e seu filho de forma tão generosa. A recuperação dos ferimentos causados por seu em breve ex-marido não teria sido tão rápida se não fosse pela vigia e cuidado constante de Daniel, a família de Simone foi realmente uma luz no meio da escuridão mas não significa que ela não deveria valorizar o que lhe foi dado de boa vontade.

Sua nova vida não era tão ruim quanto parecia quando recuperou a consciência pela primeira vez. Depois de processar seu luto por tudo que perdeu ela (ou ele? Ela não tinha certeza como se sentia a respeito de seu gênero biológico, e não queria descobrir isso agora, a boa e velha procrastinação trabalhando a seu favor, iria manter os pronomes femininos por enquanto e descobrir como contar a sua mãe mais tarde) pôde focar em sua nova realidade, e passou por uma constante avalanche de sentimentos diferentes, algo que não tinha sentido falta de sua primeira infância.

Para ser justa, existiam muitos aspectos positivos em sua vida para celebrar e ficar empolgada a respeito. Ela ainda era brasileira (ainda que só por parte de mãe), aparentemente ela tinha uma avó latina que adorava lhe dar doces deliciosos quando ficava de babá (ainda não tinha certeza de onde ela veio, seu pai definitivamente era um americano branco, e sua mãe não parecia ser fluente em espanhol, só falava com a vovó em inglês), tinha um tio engraçado que sempre estava cuidando das duas e dando exercícios divertidos para ajudar com sua mobilidade, uma tia engraçada de um jeito que criança nenhuma entenderia mas que tentava ser gentil de uma forma um tanto desajeitada nas poucas vezes que a viu, e lhe apresentou seu maior consolo emocional atualmente: O Rei Leão! Por algum tempo ela temeu ter renascido em algum universo alternativo por conta da tecnologia claramente atrasada, mas Disney existe aqui também, então ela só deve ter renascido um pouco no passado, ela poderia lidar com isso.

Por outro lado, tudo era uma luta. Aprender a sentar, andar, comer sozinha, falar, tudo era difícil. Quando a psicóloga apontou o atraso em seu desenvolvimento ela imaginou que poderia usar isso a seu favor para descobrir como falar inglês sem sotaque e como se comportar como outros de sua idade quando estivesse na presença de outras pessoas, não lhe ocorreu que teria que literalmente aprender tudo de novo quando tinha todas as memórias de como fazer tudo isso em outra vida. Acontece que memória muscular é muito importante para garantir que possamos existir como humanos funcionais e seu pequeno corpo não tinha quase nenhuma prática de movimento devido ao estado de constante medo que seu pai a deixou no passado.

Falando em pai, ela não teve nenhuma interação consciente com ele, o dia em que ela e sua mãe foram resgatadas pela polícia não contava já que ele foi levado pra fora da casa antes que ela fosse retirada de seu esconderijo, e se tudo desse certo ela nunca precisaria encontra-lo novamente, mas tinha uma pequena dúvida que continuava voltando a sua mente de vez em quando.

Que tipo de nome é Lake? Se ela tiver entendido certo a palavra literalmente traduz para Lago em português, desde quando isso é um nome? E o cara era extremamente abusivo, esse tipo de gente normalmente é conservador também, era de se esperar que ele quisesse nomear seu primeiro filho com um nome mais tradicional, como ela acabou com Lake na sua certidão de nascimento?

Não que ela esteja reclamando, Lake parece um nome incomum e ela meio que gostava de ter um nome inspirado na natureza, parece algo que teria encantado sua versão mais jovem em sua primeira vida que sofria por ter o mesmo nome que ao menos quatro outras meninas em sua sala durante toda sua carreira como estudante.

O filme já estava acabando de novo e ela nem percebeu o tempo passando, tão focada nas próprias reflexões que perdeu até a ausência de sua mãe, ela começou a se agitar até vovó colocar um copo de suco na sua frente e apontar novamente para a televisão a tempo de ver a luta final de Simba contra Scar. Isso era outra coisa que ela não estava ansiosa para enfrentar novamente: sua péssima percepção de tempo. Ela poderia jurar que não se passou tempo algum quando começou a se perder em pensamentos logo no início do filme, isso não era um problema agora que só tinha que se preocupar em ser criança, mas logo teria que ir para escola, focar em estudar, se lembrar de datas de entrega de trabalhos escolares, reaprender a se aprontar a tempo para sair de casa para escola ou qualquer outro lugar, ser capaz de se lembrar a quanto tempo falou com alguém pela última vez, quanto tempo esqueceu comida dentro da geladeira, quanto tempo ainda tinha para entregar algum documento dentro do prazo, só de pensar toda ansiedade e frustração voltavam com força para ela, e ela não tinha realmente nenhum mecanismo para enfrentar seus sentimentos agora.

Ela realmente não queria cair no buraco de minhoca que era sonhar acordada novamente, mas imaginar as possibilidades para o futuro era uma boa distração e a afastava do redemoinho de raiva que costuma acompanhar sua frustração. Ela poderia tentar bancar a criança gênio mas ela nunca gostou muito de estudar, o ambiente de uma sala de aula não foi projetado para alguém com suas necessidades, era muito restrito e intimidante para deixa-la confortável para aprender alguma coisa.

Ela poderia fingir apenas ter facilidade com algumas aulas e usar o tempo livre para praticar algum hobbie e realmente aproveitar sua infância desta vez, ela pode reaprender crochê e tricô, ela poderia aprender a subir em árvores, ela poderia aprender algum esporte, ela era muito boa no voleibol na primeira vida, ela poderia tentar um esporte diferente, talvez algo que ela não precise lidar com um time inteiro de outras crianças com quem não conseguia se relacionar, ela sempre quis aprender artes marciais na primeira vida, ou aprender a andar de skate mas sua mãe proibia por não ser uma “atividade feminina”, ela não teria esse problema agora, sua infeliz situação poderia servir para algo útil.

Ela precisaria decidir como prosseguir com cuidado, não queria causar mais problemas para a mãe, e não queria ser vista como mais estranha do que já era (mascarar seus sintomas nunca foi fácil), e ela teria que planejar como queria ser vista por adultos e como queria ser percebida por outras crianças, adultos poderiam ser úteis para facilitar seu aprendizado e o nível de aceitação de outras crianças garantiria sua sobrevivência (coisinhas cruéis, todos eles, ela se lembrava).

Talvez ela finalmente pudesse cantar, sua antiga voz ela dolorosa de escutar, mas este era um novo corpo, assim que dominasse a habilidade de falar ela poderia começar a tentar, poderia até tentar pedir por aulas de música, talvez ela conseguisse desenvolver coordenação suficiente para tocar algum instrumento.

Com planejamento suficiente, o céu é o limite!


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Notas finais do capítulo

Explicarei o porquê do nome de Lake ser esse mais tarde, não é um grande segredo, só algo que achei que seria engraçado para a história.
A filha de Simone foi nomeada Maria Guadalupe porque acho fofo o apelido Lupe.
Lake não estava tentando copiar as falas do filme, ela apenas adquiriu o novo hábito de pensar em voz alta e não percebeu, e ninguém entende o que ela está resmungando por que ela ainda não desenvolveu bem a fala.



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