Pimenta nos olhos dos outros é refresco escrita por Déh


Capítulo 1
Deus escreve certo por linhas tortas


Notas iniciais do capítulo

Não tem tags o suficiente, então vou colocar o que acho que merece ser mencionado aqui, se faltar alguma coisa no futuro vou apenas acrescentar nas notas do capítulo.
Esta fanfic contém personagens assexuais, gays, lésbicas, personagens com TDAH, dislexia, personagem gênero fluído, morte de personagens originais, menções de relacionamentos abusivos, menção de pedofilia (é um fato canônico, eu irei apenas mencionar/reconhecer isso pois muita gente ignora que aconteceu na série), e crianças sobrevivendo no apocalipse.



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Nunca pensamos que isso poderia ter acontecido conosco. Uma árvore caiu sobre um pedestre? Que triste, mas esse tipo de coisa não acontece comigo. Um ônibus foi assaltado durante a semana? Absurdo, sinto muito pelos passageiros mas esse tipo de coisa não acontece comigo. Um novo viaduto desabou causando enormes danos, matando e ferindo diversas pessoas? Que tragédia, mas esse tipo de coisa não acontece comigo.

25 anos de vida tendo a sorte de nunca quebrar um osso, presenciar ou sofrer um assalto, cujo maior transtorno vivido no trânsito foi embarcar em um ônibus que quebrou no meio do caminho para a faculdade acabou me dando uma falsa noção de realidade, uma falsa sensação de segurança que, apesar de ser percebida pela minha mente, não foi sentida em meus instintos, afinal é ridículo esperar que o mundo seja um lugar seguro quando se tem acesso a veículos de informação 24 horas por dia, mas também é ridículo pensar que quem nunca viveu uma tragédia sabe ver os sinais a tempo de evitar o perigo.

Bastou um momento de distração. Coloquei meus fones de ouvido só para ouvir um áudio no WhatsApp ao mesmo tempo em que um idiota sacou a arma e anunciou o assalto na cafeteria, entre todos os lugares, e eu não ouvi a ordem clichê de “todos no chão” e então fui baleada para servir de exemplo. Uma situação de assalto à mão armada que evoluiu para um assalto com reféns com duração de cerca de três horas que culminou posteriormente com troca de tiros com a polícia e os jornalistas anunciavam a morte do assaltante no local e uma refém morta a caminho do hospital.

É o que acontece quando você presta mais atenção às fofocas do que à própria vida.

Demorei muito para processar minha morte, como uma mulher com TDAH eu já tenho dificuldade em processar meus sentimentos, muito menos uma situação tão traumática quanto sangrar até a morte, entre outros danos ao meu corpo que não consegui compreender. Fiz faculdade de moda, não de medicina.

Nem senti dor, imagino que tenha sido o último golpe de sorte que me acompanhou durante duas décadas e meia trabalhando para me confortar no final da minha vida ou simplesmente a adrenalina me proporcionando uma anestesia muito apreciada, seja lá o que for, permitiu que eu me concentrasse nos batimentos do meu coração, batendo forte nos meus ouvidos no início e enfraquecendo lentamente, de modo que só notei a diferença quando a minha visão seguiu o exemplo e começou a falhar também.

Não me lembro do que comi, não me lembro com quem dividia a conta no café, nem me lembro sobre o que era a fofoca que me deixou tão distraída do mundo e não lembro-me do momento exato em que senti meu coração bater novamente, ou quando pude ouvir sons de novo e não me lembro quando minha visão voltou a clarear.

O som de vidro quebrando foi o que trouxe foco à minha mente entorpecida, o som alto de gritos e móveis caindo me fez pensar que estava de volta à cafeteria e continuei encolhida esperando por tiros que nunca vieram, o som alto da luta fora do meu esconderijo apertado e escuro, onde não me lembro de ter entrado, parece ter durado uma vida inteira e, eventualmente, os sons das sirenes se juntaram ao aparente inferno lá fora e os sons aumentaram de volume por alguns momentos antes de morrer e tudo o que restou foram gritos que soavam masculinos se afastando cada vez mais e um choro doloroso ainda próximo, com mais vozes soando em um tom mais suave, e passos pesados se aproximando cada vez mais.

Uma mulher de uniforme azul abriu a porta do meu esconderijo e seus braços gentis me puxaram para um abraço tão necessário, murmurando em tom calmo e gentil palavras que eu não conhecia. Mas nem toda a calma, paciência e gentileza do mundo conseguiram afastar o pânico que tomou conta de mim quando ela passou os braços em volta de mim e me levantou sem dificuldade.

Como essa mulher pôde ser tão grande e tão forte e, o mais importante, como eu pude ser tão pequena e tão leve? Ninguém me carregava há anos e ela fez isso com tanta facilidade, carregando meu corpo soluçante (e quando foi que comecei a chorar?) para fora do meu esconderijo, que agora vejo ser um armário, para o outro lado da casa revirada para cozinha destruída onde estavam mais pessoas uniformizadas, presumo que fossem algum tipo de paramédicos e policiais que cuidavam de uma mulher ferida no chão, a origem do choro e que gritava uma palavra sem parar até que ela a voltou seus olhos para mim e uma estranha mistura de medo e alívio apareceu em seu rosto.

Minha mãe. Essa mulher não se parece em nada com a mulher que me criou, mas as lembranças dessa mulher continuavam surgindo em minha mente, fui colocada ao lado dela para que pudéssemos nos acalmar e receber cuidados dos paramédicos, e eu só sei que esta é minha mãe, e não sou mais a filha da minha mãe, não sou mais a orgulhosa dona do meu diploma universitário, não sou mais dona de um pequeno negócio lutando para tornar minha marca de roupas conhecida e popular, posso nem ser mais brasileira , o que me leva a uma conclusão absolutamente aterrorizante.

Não bastasse eu ter morrido, eu renasci como um bebê de 2 anos. E eu sou um homem branco.


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Notas finais do capítulo

A versão em inglês dessa fanfic está um pouco mais adiantada (4 capítulos até o presente momento, dia 1 de maio), mas irei postando com mais regularidade aqui até que esteja acompanhando a versão em inglês. Não tenho muito tempo para escrever, eu estou tentando passar em concurso público então meu ritmo de escrita/postagem é um tanto lento. Este primeiro capítulo é um tanto curto mas tenho tentado criar capítulos maiores para o futuro.