Os Sem Nome escrita por Trashcan Bin


Capítulo 4
Yoshiko




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Tóquio, Japão - 1975

 

Por algum motivo, ela sempre se surpreendia como nenhum barulho chegava àquele quarto naquela noite. Depois de almoçar, a senhorita Kido simplesmente capotava em seu berço, então não tinha muito para fazer ali além de ficar de olho no bebê.

 

Por causa do cochilo da menina, o quarto estava escuro, mas a claridade que entrava ainda deixava claro que o dia mal tinha passado da metade.

 

De repente, a porta se abriu. 

 

— Yoshiko, tá precisando de alguma ajuda aí?

 

— Ah, Junko, não. Quando ela dorme, não dá muito trabalho. E vocês, tão correndo muito?

 

— É sempre um caos quando ele faz esses almoços. Eu queria dar uma respirada…

 

— Aconteceu alguma coisa?

 

— Ah, o de sempre, né?

 

Todas elas sabiam o que era “o de sempre”.

 

— Não tem jeito. Por mais que ele tenha mudado nesses quase dois anos, não dá para mudar o resto da alta sociedade. Mas teve algo grave?

 

— Não, não. Só os olhares. Mas daqui a pouco vão estar bêbados, e vão ficar um pouco mais barulhento.

 

— Bom, pelo menos, geralmente são só gracejos. Um comentário aqui, uma passada de mão ali. Já foi pior nessa casa. Não que seja um grande consolo.

 

— Nem me fale. Quem não viu, nunca acreditaria na mudança. Mas, é… melhorou, mas ainda tem esses poréns nessas datas.

 

— Ainda bem que meu turno ficou aqui. Hoje é tá boazinha. Acho que o vômito ontem à noite foi alguma coisa que não caiu bem.

 

— Tomara. Se alguma coisa acontecer com essa menina, ai de nós. O homem vai querer consolo.

 

— Vira essa boca pra lá! Oxe, mulher, toda criança pode passar mal de vez em quando.

 

— Verdade, verdade. Bom, então tá tudo bem né?

 

— Sim. Mas se precisarem de algo, ou de fazer uma pausa, pode chamar.

 

— Aliás, acho que o senhor Kido vem aqui mostrar a neta pra algum dos convidados depois. Cuidado pra ele não te pegar dormindo, heim, hehe.

 

— Pode deixar.

 

 

*-*-*-*

 

O senhor Kido realmente veio depois, acompanhado de um homem que não parecia nada japonês… o que não significava tanta coisa, já que a própria bebê ali não parecia nada japonesa também.

 

Saori já tava acordada, explorando os brinquedos que tinha no quarto, e a empregada brincava com ela. Quando Mitsumasa entrou com o convidado, Yoshiko se levantou e fez uma breve reverência. Já Saori foi logo em direção ao homem, dizendo “vovô!”.

 

— Philippo, essa é a minha netinha Saori.

 

— Ah, ela é adorável. Espero poder um dia apresentá-la ao meu filho.

 

— Tenho certeza que ela e Julian serão ótimos amigos! Como ele está?

 

— Ele está bem. Agora está aprendendo a ler, é uma fase muito interessante. Mas ele gosta mesmo é de brincar com barco, compramos um de controle remoto, não larga mais.

 

— Com certeza, é filho do pai, hahaha!

 

Yoshiko permanecia ali, em pé, naquilo que entendia como um silencioso pacto mútuo desconsideração: eles conversavam como se ela não estivesse lá, e ela ficava lá como se não estivesse ouvindo conversa nenhuma. Um pacto que se encerrava ou quando uma das partes ia embora ou quando uma ordem era dada para ela. Talvez pacto não fosse o melhor termo para definir o que acontecia ali de verdade, mas ela não gostava de pensar em algumas verdades.

 

— Yoshiko - apesar dos dois últimos anos, ainda era difícil não sentir certa ansiedade ao ouvir o homem a chamando pelo nome.

 

— Sim?

 

— Eu vou ficar um tempo com a Saori, você está liberada por enquanto. Veja se estão precisando de algo na festa.

 

— Claro. Com licença. - fez uma segunda reverência e saiu - Espero poder ajudar na cozinha e não lidando com os convidados.

 

 

*-*-*

 

— A gente pode trocar um pouquinho, Kumiko? Tem um homem lá que parece que quer me comer viva, até a Ryoko disse pra eu ficar um pouco na cozinha. Acho que nem o Tokumaru conseguia fingir que não viu.

 

— Ih, já até consigo imaginar quem é, o tal do “velho babão”. Tudo bem, vamos trocar. Mas, olha, não pára de vir prato sujo. Eu e a Ayumi estamos revezando quem lava e quem seca.

 

— Tudo bem! Ayumi, você quer continuar secando?

 

— Pode ser.

 

Yoshiko então começou a lavar os pratos, talheres e o que mais estivesse por lá para ser lavado. A cozinha da mansão era enorme, e tinha mais de uma pia, mas mesmo com muitas empregadas trabalhando, era muita louça o tempo todo nesse tipo de ocasião.

 

— Eu também estava com os convidados mais cedo. Só que, no meu caso, vim porque precisavam de ajuda com as louças.

 

— É a pior parte desse tipo de evento.

 

— Mas tem umas coisas divertidas. É até um pouco absurdo. Um lado da festa é fofoca, outro lado é negócios.

 

— Alguma fofoca boa?

 

 - É aquilo né, fulano de tal traindo não sei quem com o marido da outra. Sinceramente, hoje me surpreendeu mais uns caras trocando contato de venda de jatinho particular…

 

— É uma loucura né?

 

— Quando começou o problema petróleo há um tempo(1), eu fiquei desesperada, com medo de que afetaria muito os negócios e poderiam ter demissões até pra gente. Mas parece que de lá pra cá, só falam em mais, mais, mais. Um monte de parente sem emprego, na escola do Hideki também, tem um monte de gente desesperada. Parece um mundo paralelo, tem mais festa, mais negócios.

 

— Ah, Ayumi, não parece, é outro mundo. Crise só existe pra pobre, pra gente como a gente. Pra esses aí, crise é investimento, é negócio. Olha só o próprio senhor Kido, tá gastando os tubos também.

 

— Isso que me dá uma coisa. Não existe limite pra esse povo. E a gente aqui, passando o inferno pra não perder o sustento.

 

— É…

 

— Bom, deixa pra lá. E a senhorita Saori? Ficou boazinha?

 

— Foi tudo bem. O senhor Kido está com ela agora.

 

— Ele mima demais essa menina. Daqui uns anos…

 

— Perto do que já vimos, acho que não tem como ficar pior.

 

— Ah! Isso é.

 

*-*-*-*-*-*-*

 

— E aí, como foi com a menina?

 

— Foi tudo bem. Ela estava bem. Depois, o Kido ficou com ela e eu acabei ajudando as meninas com a festa. Ai, você sabe como são esses convidados… - os dois estavam sentados na cama no quarto dela.

 

— Alguém fez algo?

 

— Nada de mais. Só que as esposas devem fingir que não percebem os olhares.

 

— Ou nem ligam. Não é como se a maioria delas de fato gostasse do marido.

 

— Ai, Keisuke, às vezes me pergunto se algum desses se salva. Será que tem lugar pior do que aqui?

 

— Do que aqui agora ou do que aqui de algum tempo atrás?

 

— É… acho que o agora é o melhor que dá pra ter.

 

— O melhor que dá pra ter é o que vamos ter agora.

 

— Ah, deixa de ser bobo, homem! Você tá quase um deles, só pensa nisso.

 

— Poxa, era brincadeira.

 

— Eu sei. Mas hoje não. Eu tô exausta.

 

— Tudo bem.

 

— E, olha, vai ser difícil. Daqui umas semanas, ainda tem a festa de aniversário da menina… ai, que inferno.

 

— Ah, é verdade. E vai ser daquelas, né?

 

— Tudo festão de sair no jornal. Tudo lindo, as fotos maravilhosas. Quem pode aproveitar, que aproveite. Mas a gente lá, ralando.

 

— É sempre assim, né, e todo mundo tem que ajudar.

 

— Ai, ai. Bom, é melhor eu dormir. Estou cansada, melhor ir dormir. Tudo bem por você?

 

— Tudo sim. Boa noite. — Keisuke deixou o quarto.

 

Yoshiko deitou na cama, parou um pouco para pensar. Odiava dias assim, mas a verdade é que eles eram minoria no seu dia-a-dia. Ela sabia, de dois anos para cá, sua vida melhorou muito, se perguntava até se teria algum problema assumir o relacionado com Keisuke.

 

Tinha sentimentos mistos com seu emprego, mas sentia que cada vez mais que começava a gostar dele. No começo, aceitava apenas pela necessidade depois de ser expulsa de casa. Lembrou do rosto da menina Saori dormindo mais cedo, não sabia bem o motivo, mas sentia que havia algo muito bonito nela. Era como se não pudesse evitar gostar daquele bebê. Fechou os olhos e adormeceu.


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Notas finais do capítulo

(1) A crise petrolífera de 1973, causada pelo aumento dos preços de petróleo praticados pela OPEP.

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