Os Sem Nome escrita por Trashcan Bin


Capítulo 2
Karen Ayumi




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Tóquio, Japão - 1973

 

As empregadas da casa podiam usar os ingredientes da cozinha à vontade, então era normal que fizessem comida para várias e comessem juntas, em grupos. Se as paredes daquela cozinha eram incapazes de ouvir e falar, seriam sem dúvidas o cômodo mais fofoqueiro da mansão inteira.

 

Desde a chegada da tal neta do Kido, a menina dominava os assuntos entre os funcionários.

 

— Vocês viram? Parece que vão mandar a gente assinar um documento de confidencialidade. Umas meninas ouviram a Ryoko e o Tokumaru conversando algo assim.

 

— Por causa da senhorita Saori?

 

— Assim, eu não sei bem, mas falaram que uns jornalistas tentaram contato com ex-funcionárias, aquelas ex-funcionárias, para entender a história.

 

— Ninguém engoliu, né? Do nada ele tem uma neta herdeira. O público nem sabia sobre filhos.

 

— Estou falando que tem alguma coisa errada.

 

— Já disse, pra mim é filha de alguma prostituta que está subornando ele.

 

— Será que não pode ser um amor antigo?

 

— Para de ser besta, Keiko. Se fosse um amor antigo, por que ele nunca trouxe a mulher aqui? Você gosta de sonhar com romance, pois já saiba que homem não presta, ainda mais homem endinheirado. Parece que nunca viu o que aconteceu com as outras. Harumi, Natsuki, Meiko, só ano passado já foram três. Esse ano você também estava na lista, né, Ayumi?

 

— Depois que ela veio, ele mudou.

 

— Eu percebi também. Não tem mexido mais com a Aisha, nem com a Yoshiko. Parece também que ele ficou distante…

 

— Outro dia parece que estava falando qualquer coisa de não saber se iria pro inferno depois da morte. E sei lá mais o que sobre deuses.

 

— Ué, ele virou crente depois dessa viagem? Que loucura.

 

— Vai ver está percebendo que está ficando velho e teve um surto de consciência.

 

— Mas nada explica essa menina. Da onde ela veio? Por que não trouxe os outros filhos? Neta, mas filha de quem? Se nem a gente sabe…

 

— E aquela urna dourada também. É um parto quando pede pra limpar, o Tokumaru fica olhando.

 

— É esquisito demais. Mas acho que nunca vamos saber. Pelo menos se ela já é oficialmente a herdeira, não deve aprontar nada…

 

— Vira essa boca pra lá. O senhor Kido é um sem vergonha, mas não é pedófilo.

 

— Vai saber, você nunca leu Genjimonogatari? Aquilo da madrasta se apaixona por ele, ele por ela… se fosse nos dias hoje seria aliciamento de menor.

 

— Credo, nem o senhor Mitsumasa seria doente assim de criar uma menina pra fazer isso com ela… eu espero.

 

— Ai, gente, que bobagem. Ele só vai atrás de gente como a gente: que não importa. Empregada, prostituta, qualquer uma sem relevância, que não faz diferença no mundo. Além do mais, do jeito que ele tá sendo protetor com essa menina. Quando ela chegou era visita de médico toda semana, no mínimo.

 

— A verdade é que desde que ela veio pra cá, o homem parece que se endireitou. Eu concordo que é estranho, e acho que tem alguma coisa nessa história, mas eu que não vou reclamar, hehe. Seja o que tenha atingido a cabeça dele, bom pra nós.

 

— É. Bom, pessoal, acho que eu preciso voltar…

 

— O Hideki não tem achado ruim você ficar tanto tempo cuidado da menina, Ayumi? Criança na idade dele às vezes fica meio incomodada com falta de atenção.

 

— O Hideki já é grandinho e todo mundo tem ajudado quando não estou lá. Às vezes, ele fica comigo, mas não gosta muito. Quatro anos já dá pra entender algumas coisas. Acho que o Takeshi sofre um pouco mais sem a Aisha. É ruim que com essa segredaiada toda, não podemos nem deixar eles numa creche. Sorte da Kumiko que não tem como a filha ficar sem ir pra escola. Bom, com licença.

 

Karen se levantou e foi ao quarto que agora pertencia a Saori Kido. Ela estava dormindo no berço, mas se conhecia bem a menina, logo deveria começar a pedir mamar, e depois era hora de brincar.

 

 *-/-/-/-/-*

 

Um menino com pele escura, olhos castanhos claros um pouco puxados, mas não tanto quanto os dela, aparece.

 

— Mãe, quando é que você sai daí hoje?

 

— Daqui a umas horas, filho. Ainda vou provavelmente dar de mamar e brincar com ela antes da Aisha chegar.

 

— Por que é que essa menina pode brincar com você e eu não?

 

— Fernando, por favor. Esse é meu trabalho. Adoraria brincar com você o dia inteira se pudesse, mas minha função agora é cuidar da senhorita Saori.

 

— Por que é que o velho não cuida dele? Ele não é o pai, ou avô?

 

— Shh, respeita o senhor Kido. Vai que o Tokumaru passa aqui, vamos eu e você pra rua.

 

— O Tokumaru só sabe reclamar de tudo. Ficou ainda mais chato depois que esse bebê veio pra cá. Odeio toda vez que ele me chama de “Hideki” com aquela voz enjoada, só pra me dar um sermão de qualquer coisa.

 

— Você também às vezes apronta. Nós temos é sorte que mesmo assim, o senhor Kido me deixa trabalhar e morar aqui, com você.

 

— Claro, pra você cuidar da neta dele por ele.

 

— Ele é um homem ocupado. E olha, apesar de tudo, a minha vida ficou melhor depois que ela veio pra cá. 

 

— Por quê? Você quase não sai mais daqui.

 

— Não é algo que você vá entender.

 

— Hmm.

 

— Olha, por que você não brinca com o Takeshi um pouco? Mais tarde a Hikari volta da escola, também pode brincar com ela. Vamos, amanhã eu fico de folga e aí fazemos alguma coisa juntos.

 

— Tá…

 

Era difícil lidar com o filho às vezes, mas Karen não mentia que a vida estava melhor depois da chegada da neta de Mitsumasa. De vez em quando, sentia que a menina tinha algo especial. Não gostava de ficar imaginando o que teria feito o Kido mudar tanto, mas tinha que admitir que tudo aquilo era estranho.

 

As horas se seguiram normalmente, deu mamar para a menina, brincou com ela, o Tatsumi aparecia várias vezes para supervisionar, e outras empregadas também ajudavam com as brincadeiras. 

 

Como seria de se esperar de um bebê milionário, Saori tinha acompanhamento de uma equipe de profissionais da pediatria, que deixavam instruções de coisas que as empregadas deveriam fazer com menina. Diziam eles que era para estimulá-la, para que ela se desenvolvesse. Por isso, ficar responsável por ela era cansativo. Felizmente, seu turno estava acabando.

 

 *-/-/-/-/-*

 

— Karen, já cheguei - Aisha abriu a porta e já foi entrando - Ela deu trabalho hoje?

 

— Ah, foi normal. Acho que vai ser tranquilo pra você hoje. Espero que amanhã também…

 

— O turno de dia é um pouco pior, à noite como o senhor Kido geralmente pede pra ficar sozinho com ela, ainda temos um folguinha extra, mas fazer plantão é sempre mais cansativo.

 

— Por falar nele… as meninas disseram que ele também parou de, você sabe, com você. Comigo, nas vezes que ele fica aqui, além de mandar a gente embora, ele parece me evitar.

 

— Pois é, menina. Ele até parece meio frio. Eu ainda fico nervosa, olho pra baixo, evito qualquer contato. Mas ele mudou. Ainda bem, não sei o que faria…

 

— Nem eu. Já pensei várias vezes em voltar pro Brasil, mas aqui pagam bem, e ainda posso cuidar do Fernando e tenho onde morar… Se não fosse por ele, já teria ido embora.

 

— Eu também pensei muito, mesmo sendo difícil pensar em qualquer outro lugar pra ir, ainda mais tendo um filho… Não sei se dá para esperar que fique assim pra sempre, mas rezo todos os dias pra ser uma mudança de vez. Ainda é meio complicado, mas está bem melhor. Acho que a Yoshiko também vivia na mesma situação.

 

— Ele faz de propósito. Eu acho pelo menos. Ele sabe que é difícil pra quem tem filho, e ainda mais sendo imigrante, deixar o emprego.

 

— Prefiro não pensar nisso. Quero é pensar que passou. Que a senhorita Saori traz bons ventos pra gente.

 

— É verdade, tomara. Mas, você também não acha esquisito tudo isso?

 

— Ah, eu acho, mas e daí, né? De onde vem, pra onde vai… essa gente rica, vai saber. O povo que vem aqui nas festas também não é inocente. Se significa que não vou mais me preocupar com mão boba de patrão, então que seja, dane-se. Ninguém liga pra gente mesmo, não estou nem aí também. A menina pode ter nascido de uma árvore, não faz diferença.

 

— Tem razão. Ela também não tem culpa de nada, né? Então, melhor deixar pra lá.

— Isso, Karen, melhor ficar quieta no seu canto. Nessa profissão a gente tem é que se fazer de sonso. Não viu, não ouviu, não sabe de nada.

 

— Ai, desculpa, é como você também é de fora, acabo desabafando. Se eu achava ruim algumas coisas da minha família no Brasil, tem coisa aqui muito pior. É tão bom ouvir alguém me chamar pelo primeiro nome…

 

— Haha, a gente precisa se virar, né? Você ainda veio sabendo bem o idioma, mas o quê eu sofri quando cheguei… não desejo pra ninguém. É bom ter alguém pra falar dessas coisas mesmo. Mas, agora vai, bom descanso pra você. Se puder dar uma olhada no Takeshi amanhã…

 

— Claro! Enfim, desculpa, boa noite… e boa sorte — e finalmente saiu para o merecido descanso.


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Notas finais do capítulo

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