Tudo que eu deixei escrita por alegrrdrgs


Capítulo 8
VIII




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Depois daquilo eu voltei pro meu quarto. E o problema é que eu não conseguia parar de pensar no beijo, e eu queria muito beijar ele de novo, mesmo com plena consciência que é errado.

Eu pedi desculpas para Bruna pela manhã, e apesar de toda aquela história sobre como o perdão rola super fácil ela continua com raiva de mim. O que é uma bosta, porque ela é basicamente a minha melhor amiga do apocalipse, e eu não me sinto confortável se ficar com a Ana. Então eu acabo passando quase todo o meu tempo com o José.

Não é que eu não goste das outras pessoas, mas a gente não é necessariamente próxima. A Carol e a Maria são mais fechadas entre si e mais amigas da Ana, então eu acabo me sentindo um pouco desconfortável com elas também. Acho que se a gente fosse uma família eu diria que elas três são as primas amigas e eu sou a prima esquisita que não fala com ninguém. De qualquer jeito, a Bruna não está falando comigo, eu tô evitando o Moisés e a Ana, então não me sobra outra opção para passar o tempo além do José.

Ele não tentou falar comigo de novo, e eu imagino que ou ele perdeu a coragem ou percebeu que não teria uma resposta positiva.

O que quer que fosse, eu agradecia.

Ninguém me disse que a pior parte do apocalipse seria não poder escolher nossos amigos do apocalipse. Quer dizer, a morte, a fome e a falta de conforto são o pior, mas ficar trancada com as pessoas sem ter para onde ir também é o pior.

Queria que a Miranda estivesse aqui... Tudo seria muito melhor se eu pudesse conversar com ela.

É tarde, quase ao pôr-do-sol, e eu e o José estamos conversando sobre livros na laje, um pouco afastados das outras pessoas. Ele fala mais que eu, na verdade, porque eu olho para a porta da laje e me lembro da boca do Moisés na minha e me torno um pouco inútil. Vejo ele do outro lado, conversando com as meninas, e quando ele me olha eu me torno ainda mais inútil. José percebe que eu estou distraída e me pede para contar uma história, e eu decido que preciso parar de pensar besteira e volto minha atenção para ele. Eu invento uma história sem pé nem cabeça, só para passar o tempo. Mas fica bem divertido e eu acabo me animando, e todo mundo se aproxima para escutar. É como eu costumava fazer com Lucas antes de dormir, porque ele não gostava das histórias que já tinha ouvido.

Eu sinto uma falta do caralho de ler.

E então a Bruna, que ainda está puta comigo e é óbvio, fala que eu sou boa mesmo em mentir, em inventar. As meninas pedem para ela parar, mas ela continua. Diz que elas vão ver que eu sou boa mesmo nisso, que eu sou boa em dissimular. O clima fica esquisito e o José segura a minha mão e me puxa mais pra perto dele, e mesmo eu não entendendo se é por apoio ou para vender a história de casal eu fico grata.

Enfim, eu me estresso com a Bruna. Porque eu sei que ela tem razão, porque eu não quero que ela tenha, porque eu tô simplesmente exausta de viver a droga do apocalipse. Porque eu queria poder sair por aquela porta e ir embora para a minha casa, eu queria poder fazer o que eu quisesse e então fugir das consequências.

Eu respiro fundo, me controlo para não mandar ela ir se foder.

Eu queria ficar com ele? Demais. Mas eu tinha escapado e evitado tudo que eu podia, e se não fosse a porra de um único beijo eu não teria culpa nenhuma no cartório, então por que caralhos ela estava querendo me culpar?

Então eu me levanto falando que vou me deitar um pouco, e vou para o meu quarto mesmo porque não quero que ninguém me incomode.

Normalmente tudo ficava escuro nos quartos já que não tinha janela, e só a porta do escritório aberta dava um pouco de luz pro corredor mas não o suficiente para iluminar tudo. Mas eu tinha feito buraquinhos na minha parede para deixar o sol entrar, o que significava que eu podia fechar a porta sem ficar no escuro absoluto. Ainda tinha sol o suficiente para que o quarto ficasse iluminado.

Eu me pergunto por que ninguém tinha feito o mesmo, mas não sei. Eu percebo que os que ainda tinham alguma esperança ficavam cada dia mais deprimidos, enquanto eu que já tinha aceitado tudo conseguia ter mais ação. Mas eu não quero ficar sem fazer nada, e decido abrir os buraquinhos nas paredes dos outros quartos. Então subo de novo para a laje e chamo o José para me ajudar.

Ele está um pouco afastado, conversando com o Moisés na beirada do prédio, e eu me arrependo imediatamente porque assim que o Moisés me olha e eu olho pra ele, o José parece ter entendido tudo. Ele olha pra mim e olha pro amigo, e é como se ele finalmente enxergasse. Ele entende o que a Bruna quis dizer.

Foi isso. Anos trancados ali, e então com um único olhar ele percebe tudo. É até engraçado como as coisas são. Seria cômico se não fosse trágico.

Mas ele vem até mim, sem falar nada, sem me acusar de nada, e pergunta o que eu quero fazer. Quando eu explico, ele me diz que tudo bem e desce comigo.

Eu fico esperando ele me falar alguma coisa, alguma coisa negativa, mas ele não diz nada além do normal. Qualquer decepção, qualquer vontade de colocar uma letra escarlate na minha roupa, é muito bem escondida, e ele continua sendo o amigo de sempre.

Só em um momento ele vacila, muito brevemente. Está olhando para a parede e não para mim quando diz que a gente poderia ter falado alguma coisa antes. Eu fico tão envergonhada que me sinto ridícula. No fundo eu sei que não devo nenhuma satisfação a ninguém, como nunca devi. Mas ele é meu amigo, e eu sei como ele se sente. É amigo do Moisés, e ele também sabe como ele se sente. Eu devo para ele pelo menos uma resposta.

Eu não sabia, digo. A gente não sabia.

Ele me abraça de lado, beija a minha testa, e nós continuamos a trabalhar.

A gente só tem um martelo e uma chave de fenda, então é bem difícil. Mas é bom porque se eu ficasse exausta e ocupada então eu não pensava em nada. E o José cantarola para tentar me animar quando percebe que o meu estado de espírito não melhora, o que funciona um pouco. Eu quero ser honesta com ele, quero falar tudo. De verdade, eu quero. Mas eu tenho certeza que se começar a revirar histórias do passado vou começar a chorar, e ele parece adivinhar isso porque me diz que tudo bem, que eu não preciso dizer nada. Ele me abraça, e é bom. Ele é meu amigo, afinal. É bom ter o apoio de um amigo.

Miranda absolutamente aprovaria ele.

A gente finalmente decide parar de trabalhar quando não tem mais luz o suficiente, e os meus braços doem tanto que eu acho que vão cair. Eu nem quis comer nada, só me jogo na cama assim mesmo. Eu acordo já de noite, ouvindo duas pessoas falando baixinho perto da minha porta. Eu me levanto e vou abrir a porta quando identifico a voz do Moisés.

A conversa é quase na frente do meu quarto. Então eu fico bem calada para ouvir a conversa, e eles falam baixo de verdade porque mesmo no silêncio absoluto da cidade e do prédio ainda preciso colocar meu ouvido na porta para entender.

Resumidamente, ele pede que ela pare de implicar comigo. E ela acusa ele de ser um traidor, então ele se defende negando e dizendo que ela não sabe do que está falando, e só porque ela está com raiva de mim ela não pode ficar fazendo suposições sobre mim ou sobre ele.

Eles discutiram mais um pouco, uma troca de acusações e defesas, até que ela bate a porta do quarto e a conversa encerra.

Eu me pergunto se ela me odeia agora. Quer dizer, é claro que ela odeia. É curioso porque eu sempre achei que se um dos meus amigos do apocalipse fosse me odiar seria o José. E mesmo sabendo que não devo, eu abro a porta para ver se o Moisés ainda está no corredor, um impulso que eu não controlo.

Ele não está, já deve ter voltado pro quarto.

Melhor assim.

*

A Bruna continua sendo escrota comigo nos dias que seguem, mas de um jeito menos óbvio. Ela me ignora ou me interrompe quando eu falo alguma coisa, e um dia faz uma bagunça na hora de servir o meu prato no almoço, o que faz com que o Moisés troque de prato comigo sem dizer nada. Todo mundo já tinha percebido que a gente tinha brigado, é óbvio, mas ninguém se intrometeu para perguntar o motivo. Eles provavelmente imaginam que a gente vai fazer as pazes logo.

Mas sinceramente eu não me importo mais com ela ou com o drama dela.

Eu sonhei com a minha mãe quase todos os dias dessa semana, e tô com um sentimento ruim, uma sensação estranha. Eu passo o tempo todo meio avoada, perdida nos meus pensamentos sobre ela e ignorando o resto.

Eu falei sobre o meu pai, eu falei sobre o meu irmão, eu falei sobre a Miranda e eu falei sobre o Rafael. Talvez seja hora de falar sobre a minha mãe.

Ela era muito linda, muito apaixonada e muito irresponsável. E ela era muito de tudo. Falava demais e agia rápido demais e se entediava rápido demais e nunca pensava nas consequências. Ela se entediou com o ser mãe, eu acho. Ser a minha mãe, mais especificamente. Eu sempre senti que ela se arrependeu um pouco de ter me tido. Não que ela fosse muito mais responsável ou muito mais presente pro Lucas. Beirava a loucura, se é pra ser sincera. Eu fui a porra da Fiona e ela era a Mônica.

Mas eu amava ela.

Era a minha mãe, é claro que eu amava ela.

Eu lembro de todas as vezes em que eu fiquei doente e ela saiu de casa do mesmo jeito, das apresentações na escola em que ela não apareceu, e das vezes em que ela esqueceu de ir me buscar nos lugares.

Mas eu também me lembro de como ela sempre me acordava com um bolo no meu aniversário, e como o sorriso dela era lindo e enorme, e como ela contava as melhores histórias sempre, e como ela cantava para me fazer dormir quando eu era bem pequena. Às vezes, quando eu não consigo dormir, eu imagino ela cantando para mim.

A questão dos meus pais é que os dois eram os típicos aventureiros e espíritos livres irresponsáveis, mas aí eles me tiveram e ter uma família e querer ser livre são duas coisas que não combinam. Tudo bem ser irresponsável quando isso não afeta ninguém além de você, mas a partir do momento em que tem uma criança junto as pessoas têm que ter senso, e eles não tinham.

Na verdade eles estavam finalmente começando a aprender isso quando tudo aconteceu, porque eu me revoltei e parei de fazer tudo por eles. A luz vai ser cortada porque ninguém pagou? Que seja. Ninguém fez o almoço? Ótimo, eu e o Lucas vamos almoçar fora. A casa está um lixo? Uma pena.

Se eles teriam tomado jeito ou não, eu nunca vou saber. Com toda a mágoa e todos os traumas, eu ainda a amo. E eu só queria que o Lucas tivesse tido uma mãe normal, e não tivesse tido que se contentar comigo. De todas as coisas que ela me fez, foi ter repetido os erros com ele que eu não perdoo. Ele merecia mais, muito mais.

Ela me abraçava bem apertado, pulando e rindo, e então ia embora.

Quando eu era criança não tinha nada que eu quisesse mais do que a companhia dela. Que ela ficasse comigo e não fosse embora. Por isso o Lucas era tão mimado e eu fazia tudo que ele queria. Uma criança traumatizada com abandono já era o suficiente na família.

Ao mesmo tempo, eu já tinha decidido há muito tempo que não queria ter filhos. Desde a minha infância, desde a minha adolescência. Toda essa experiência de ter uma família foi o suficiente para eu decidir que não queria uma. Eu não queria ser responsável por ninguém, não queria estar presa a ninguém, eu queria paz e liberdade e não ter que ter medo de um acidente acontecer, como eu e o Lucas acontecemos.

Então quando eu descobri que estava grávida aos dezenove anos, quando o Lucas tinha só um ano de idade e eu passava as noites acordadas com ele, eu abortei. E quando eu fiz vinte e um anos, eu procurei um médico que aceitasse fazer uma laqueadura.

Ninguém nunca soube além da Miranda, que ficou do meu lado e segurou a minha mão e limpou as minhas lágrimas nas duas ocasiões. E ninguém nunca vai sair, porque ela levou os meus segredos para o túmulo. Ela dizia que ia morrer antes de me deixar, antes de me trair, antes de magoar. E ela morreu, o que significa que todo o peso dos meus segredos e das minhas mágoas voltaram para mim, sem ter ninguém com quem partilhar.

Agora eu de fato não vou ter uma família, não porque eu não queira ou porque eu paguei tão caro no procedimento, mas porque o apocalipse aconteceu e o meu dinheiro foi jogado no lixo. Que ironia.

E quando eu tô deitada na cama há dias, pensando na minha mãe, o Moisés aparece no meu quarto. Ele se senta no colchão ao meu lado, mas distante o suficiente para não ser um problema, e deixa a porta aberta. Coloca a mão na minha cabeça pra chamar minha atenção quando eu continuo olhando pra parede e me pergunta o que aconteceu.

Eu dou de ombros e não respondo, porque não sei nem como começar a explicar. Quando eu nasci, talvez? Ou quando ela decidiu que não queria ser mãe, quando o meu pai decidiu que não queria ser pai, quando os dois decidiram que eu conseguia me criar sozinha? Quando eu virei mãe? Quando o apocalipse aconteceu?

Ele diz que vai fazer compras, e pergunta se eu quero alguma coisa. Eu sorrio, e digo que ele ainda não trouxe o polvo venenoso que eu encomendei.

Ele fica sério por um segundo, talvez tentando decidir se eu tô deprimida o bastante para tentar me matar ou bem o suficiente para brincar sobre suicídio. E então sorri minimamente para mim, ainda penteando o meu cabelo com os dedos. E diz que ele não vai me dar um polvo venenoso.

Então ele me pergunta se eu não vou sair da cama, se eu não quero fazer alguma coisa, se eu quero ir até o supermercado. Ele até diz que a gente pode subir para o terraço do shopping, mas eu balanço a cabeça.

Ele percebe que não vai conseguir me animar.

Então ele se levanta e eu acho que ele vai embora, mas Moisés volta logo depois com a sua garrafinha de água e me entrega, se sentando de novo. Vendo que eu não faço esforço nenhum para tomar, ele volta a mexer no meu cabelo.

E ele pergunta a última coisa que eu imaginei que ele perguntaria. Qual era a casa de hogwarts da Miranda? Eu estranho, mas respondo corvinal. E ele pergunta o porquê. Porque ela era inteligente e criativa e perfeita. E qual era a casa de hogwarts do meu irmãozinho? Eu respondo grifinória, porque ele era corajoso e determinado. E ele pergunta e pergunta e pergunta. Qual a dos meus pais? Qual a dele? Qual a dos outros? Qual a minha?

Ele não gosta de harry potter. Com certeza nem sabe do que está falando, mas passou tempo o suficiente ouvindo minhas conversas com o José para patinar no tópico de conversa. É o suficiente para me instigar.

E eu só percebo que me animei e até me sentei na cama quando o José entra, curioso, e me encontra num monólogo tentando explicar o relacionamento do dumbledore e do grindewald, enquanto o Moisés me olha tentando segurar a risada, um bom tempo depois. Eu nem me dou conta da estranheza da situação, e peço para ele por favor explicar pro Moisés que eu tô certa e os dois absolutamente eram um casal.

Moisés ri e me chama de nerd, mas de um jeito tão carinhoso que não ajuda a melhorar a expressão de José, de um jeito que quase me faz beijar ele de novo.

Ele não se aproxima, e eu percebo o seu desconforto. Moisés percebe também, e se levanta envergonhado, dizendo que vai ver se a Ana precisa de alguma coisa antes de sair. Quando ele sai, o José me olha com uma mistura de sentimentos que eu não consigo identificar. Compaixão, amizade e mais alguma coisa. Talvez seja rancor, ou eu tô só deixando a culpa falar por mim. Mas ele sorri e concorda que os dois absolutamente eram um casal.

Ele me oferece a mão, me ajudando a levantar, e me diz que quer ajuda para separar a água.

Quando a gente sobe as escadas para ir para a laje, a Ana está sentada em um dos degraus do lado de fora do meu quarto, e não olha para a gente. Ela parece chateada, olhando pro chão.

Eu não vejo o Moisés em nenhum lugar.

 


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