Tudo que eu deixei escrita por alegrrdrgs


Capítulo 9
IX




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Eu evito ficar sozinha com o Moisés e ele comigo, eu não tenho mais assunto com o José. A Bruna continua me ignorando, e eu não me sinto confortável com as outras porque eu quero roubar o namorado da amiga delas. Enfim, uma grande merda.

Então mesmo evitando ficar sozinha com o Moisés depois da nossa tarde discutindo harry potter, quando a comida acaba e alguém precisa ir com ele ao supermercado, eu digo que vou. Eu só não aguento mais ficar olhando para as paredes. Eu já tô começando a surtar, de verdade.

Às vezes eu sufoco uns gritos no meu colchão.

A gente não tinha ficado sozinho desde aquela tarde, e eu percebo que ele me olha como se esperasse alguma reação, prestando atenção. Talvez ele simplesmente esteja com medo que eu encontre um polvo venenoso no mercado. Mas eu finjo que não percebo e ele finge que não percebe que é fingimento. Nós dois tínhamos ficado muito bons naquele jogo.

Mas aí o que acontece:

O que caralhos acontece:

A gente pega tudo que precisa, mantendo uma distância bem grande entre nós dois. Eu vou para uma prateleira e ele para outra. Naquelas semanas a gente vinha comendo só enlatados para economizar água. Não tem mais chovido, e provavelmente vai demorar para chover de novo.

E então, quando a gente está destrancando as portas para sair, ele na frente e eu atrás, um zumbi me puxa pelo ombro. Na porta, logo que ele abre, mais zumbis. Não tinha explicação para onde eles tinham saído, porque tudo estava deserto um segundo antes.

Eu grito, porque é a primeira vez que um zumbi toca em mim e eu não esperava que eles fossem tão fortes. A mão pesada, apertando o meu ombro, me puxando. Por sorte ele só tem um braço, e eu consigo me desvencilhar.

O Moisés tenta fechar a porta, mas ele demora demais porque tenta me ajudar empurrando o zumbi, e eles entram no supermercado, vem para cima de nós dois. Eu acho de verdade que vou morrer, eu só consigo me lembrar de como foi rápido quando eles mataram basicamente todas as outras pessoas, de todo o sangue no asfalto. O Moisés precisa literalmente me arrastar pelos corredores, correndo. Pelo menos nenhum de nós deixa cair as mochilas com a comida. Tinham muitos zumbis, e eu me recupero o suficiente do susto inicial para desviar deles.

Eu corro pelos corredores, segurando a mão dele bem apertado, nós dois com medo da separação. Não são tantos, mas nós dois não estamos acostumados com isso depois de quase três anos sem ver um zumbi de perto, e o susto acaba atrapalhando.

O Moisés cai e um zumbi vai para cima dele. Eu tento ajudar mas o zumbi não quer soltar. Ele me diz para correr mas não tem a menor chance de eu deixar ele ali. Eu chuto o zumbi até ele se desequilibrar, caindo ao lado. Quando Moisés consegue se levantar, o cheiro de podridão da carne deles quase me faz vomitar. Pedaços apodrecidos de carne ficam presos nos meus dedos, sujando de sangue e de sabe-se lá mais o quê, porque eu usava uma sandália.

Quando a gente corre de novo, quem cai sou eu porque meu pé estava sujo de sangue e desliza no piso liso. Eu começo a chorar porque realmente acho que é o fim, para nós dois. Mas ele me puxa em direção ao guarda-volume e entra em uma porta, fechando ela logo depois.

A gente consegue ouvir os zumbis andando do lado de fora, mas eles não tem destreza para abrir uma maçaneta. Mesmo assim a gente fica em silêncio, e quando percebe que está seguro (na medida do possível) eu me jogo nele e ele em mim. A gente se abraça tão apertado que eu acho que os dois vão se desfazer. É difícil respirar, e eu consigo sentir o coração dele bater acelerado, mas eu não quero soltar ele de jeito nenhum. Nós dois choramos baixinho, abraçados, e eu só consigo dar graças à Deus por ele estar bem.

A sala está escura a ponto de não dar para ver nada, mas ele acende um fósforo para a gente ver se tem algum zumbi dentro. Na luz da chama, o rosto dele tem uma expressão apavorada de verdade e eu imagino que o meu deve estar igual. A sala é pequena, e na verdade nem chega a ser uma sala. É uma espécie de copa minúscula, com um balcão e um bebedouro. Não tem cadeiras, e é larga o suficiente para que a gente possa deitar no chão, apesar de ser apertado.

A gente coloca as mochilas contra a porta para fazer algum peso, mas não é preciso se preocupar de verdade porque se alguém tentasse abrir a porta bateria na gente de qualquer jeito, de tão apertado que era.

Não faz sentido nenhum.

Como os zumbis conseguiram entrar no supermercado? Estava tudo trancado quando a gente chegou. Só se alguma das portas de carga, nas rampas, tivesse aberta. Mas os zumbis não teriam conseguido abrir.

Eu falo isso pro Moisés, e a gente fica em silêncio, sentados contra a porta e tentando respirar. Será que tinha mais alguém por ali? Mas por que depois de tanto tempo? Anos sozinhos e do nada aparece alguém?

Ele diz que também não sabe. Nós dois estamos assustados para caralho com tudo. Ele aperta a minha mão no escuro, e eu quero chorar porque o meu ombro ainda dói onde o zumbi apertou, e os meus pés estão sujos de sangue, o meu coração acelerado e por todo o resto também.

Mas eu também quero chorar porque não acredito que a gente escapou, que nós dois estamos vivos.

Ele me pergunta se eu estou bem, se eles tinham me machucado, e eu digo que não, que eu estou bem. Eu repito a pergunta e ele diz que também está bem. A nossa respiração ainda acelera, sem conseguir relaxar. Mas ele está bem, e eu também.

Então eu beijo ele. Porque meu deus, se a gente vai morrer então eu vou beijar ele. Não tem como as coisas ficarem ainda piores.

E ele me beija de volta imediatamente.

*

Eu vou falar sobre a primeira vez que eu olhei para ele e pensei: "bem, foda-se. Eu me sinto atraída por ele".

Foi num fatídico fim de mês, quando a gente ficava até mais tarde para fechar o balanço. Eu tinha começado a trabalhar lá tinha só dois meses, e ainda não tinha me acostumado com o fato do chefe ser um grande merda. Eu estava na sala dos vendedores, terminando o meu relatório quando o Moisés entrou e se jogou numa cadeira próxima e suspirou, cansado.

Ele disse alguma coisa sobre estar cansado e os pés dele estarem doendo, e eu não lembro exatamente o que eu respondi, mas ele deu uma gargalhada alta e eu fiz "shhh" porque não queria que o chefe fosse lá brigar com a gente. Mas eu estava rindo também, então não foi de grande ajuda. Eu mordi minha língua para me controlar e segurar a risada. Acho que eu fiz alguma piada sobre a comissão, que era uma mixaria, mas não tenho certeza.

As coisas eram tão mais leves naquela época. Tão mais fáceis.

De qualquer jeito, naquele segundo, foi quando ele riu alto sem se importar com as paredes de vidro, jogando a cabeça para trás. Quando ele continuou rindo e apoiou a cabeça na mesa, sufocando as risadas com os braços. Foi naquele momento que eu pensei que queria beijar ele. Mas, é claro, não fazia muito tempo que eu tinha terminado com o Rafael, e naqueles tempos eu estava determinada a não me envolver com ninguém que pudesse vir a ficar sério. Eu só pensava em ir embora e deixar tudo para trás, e se alguma coisa tinha potencial para me segurar lá, então eu desviava o mais rápido possível.

Ele puxava assunto, me oferecia carona, me chamava pra sair... E eu sempre negava. Eventualmente desistiu e um pouco depois começou a ficar com a Ana.

Eu sentia alguma coisa vendo os dois juntos antes do apocalipse. Eu comia a minha barrinha de cereal olhando discretamente para ele por cima do ombro da Tainá enquanto ela falava, e gostava quando ele apertava a minha mão como um comprimento todos os dias de manhã, como uma brincadeira. Eu gostava das caronas que ele oferecia, mesmo que eu sempre negasse. Eu gostava como ele me perguntava sobre o Lucas, puxando assunto, e eu gostava de conversar com ele nas nossas pausas para beber água, mesmo que elas durassem segundos.

Mas não era nada, era uma quedinha que logo ia passar. Especialmente assim que eu começasse a minha vida bem longe dali.

A Miranda costumava dizer, com um sorriso sacana, que gostar não era o problema, o problema era se apaixonar. E como sempre, ela estava certa. Esse foi o problema.

O problema foi quando, mesmo durante a porra do apocalipse, eu ainda notava a risada dele, cada vez mais rara, e gostava da presença calma dele ao meu lado, o olhar sério dele quando sustentava o meu, como ele me entendia. E como eu notava o sorriso dele para mim sempre que as coisas estavam calmas, e como eu ainda pensava em como seria a boca dele na minha em um beijo escondido.

Naquela vez, ali naquele cubículo, ele não estava rindo e sim com lágrimas nos olhos e com medo por mim e medo por ele, e eu quis beijar ele do mesmo jeito que quis beijar ele da primeira vez em que eu fiz ele rir. A diferença foi que eu de fato beijei, e ele me beijou também, me puxando para perto.

E eu vou ser sincera: eu não pensei na Ana em momento algum. Ela não existia ali, ninguém existia ali além de nós dois e os zumbis do lado de fora.

*

A gente fica pelo menos dois dias no cubículo.

É um calor infernal, abafado, eu morro de sede, e toda vez que a gente olha pela porta ainda tem zumbis por perto. Além disso, não dá para ficar gastando os fósforos, então a gente fica no escuro.

Mas se é para ficar trancada com alguém, ainda bem que é com ele. Porque ele me ajuda a deitar no chão, já que a lajota é gelada, e me beija para me distrair. Faz cafuné nos meus cabelos, e conversa comigo quando percebe que eu fico calada demais. E até quis sair rápido só para pegar água em um corredor próximo, mas eu não deixei.

Ele me abraça, no chão, e está me contando baixinho sobre uma viagem para a praia, quando ele era criança, e eu me aconchego nele e penso que o apocalipse inteiro deveria ter sido assim: com ele do meu lado. Teria sido mais fácil. Na verdade antes do apocalipse deveria ter sido assim, descomplicado.

Eu conto sobre as viagens para o interior para tomar banho de rio com a Miranda e como ela prendeu uma corda na árvore da margem para brincar de ponte para terabítia quando éramos crianças. Como Lucas foi com a gente pela primeira vez, com menos de um ano de idade, como ele ficava fofo na boia de bebê, com os pezinhos na água. Como ela brincava falando que ele era meu filho e filho do boto, e eu precisava jogar alguma coisa nela para parar, mas gargalhava toda vez que ela dizia isso.

Na manhã do segundo dia, ele me acorda falando que dá para sair. Eu estou toda dolorida, mal consigo andar direito por ter ficado de mal jeito no cubículo, e ele está ainda pior. Mas a gente manca para fora, receosos e com as mochilas pesadas, e de fato não tem mais zumbis por perto. O sangue seco ainda está nos meus pés, e nós dois estamos cobertos dos pés à cabeça com a poeira do cubículo. O foda é que eu sei que não vai dar para tomar banho quando a gente voltar. E com o sangue seco, a sujeira de anos e a nossa expressão acabada, é como se a gente tivesse voltado da guerra.

A gente bebe litros e litros e litros da água quente e de gosto esquisito nas garrafinhas empilhadas na prateleira, até a nossa barriga ficar tão inchada que a gente quase passa mal. Ele corre, na medida do possível, para fechar a porta do supermercado, e então a gente olha ao redor para tentar descobrir por onde os zumbis tinham entrado, e não demora a descobrir.

Uma árvore caiu em uma das paredes que levava para as rampas, provavelmente em um dos dias de chuva depois da última vez que ele veio aqui. Nós dois estamos muito fracos, mas a gente tenta empilhar umas caixas de cerveja no buraco na parede para impedir que entrem de novo. Quando fica com pelo menos dois metros, a gente para e senta, ofegantes e destruídos.

Eu quase não sinto os meus braços mais, e o meu coração vai sair pela boca. Ele não está muito melhor.

É a primeira vez que fica tão absurdamente óbvio para mim o quão fraco e desnutrido a gente está. Eu devia ter uns quinze quilos a mais antes de tudo. A gente vai morrer por fraqueza ou falta de vitamina ou fome antes de morrer por algum zumbi. Pensar em levar as mochilas pesadas para o prédio me parece quase um sacrifício.

Eu digo para a gente esperar um pouco antes de voltar, só para eu me recuperar, e ele vem se sentar do meu lado, oferecendo o ombro para eu me encostar. A gente fica pelo menos uma hora assim, só respirando um do lado do outro, mas não tem mais como adiar.

Eu fico com medo de sair. Apavorada, na verdade, que os zumbis voltem, mas a gente precisa voltar para casa. Ele também está com medo. Eu percebo por que ele costumava abrir a porta muito rápido, quase correndo, mas dessa vez ele hesita. Então eu abro para ele, e ele me olha agradecido e um pouco envergonhado, mas eu dou um beijo na sua bochecha e digo que vai ficar tudo bem.

É terrivelmente difícil pular pelos carros. O caminho todo, na verdade. Ele parece ser três vezes mais longo e mais difícil do que costumava ser. Eu apoio o Moisés, que está ainda pior que eu, e nada me assusta mais que a possibilidade de ele cair e não levantar mais. É esse pensamento que me dá adrenalina o suficiente para conseguir voltar. Mas eu não consigo pular pro segundo andar do prédio, então grito pela Bruna. Todo mundo vem correndo olhar pela janela, surpresos, e eu acho que a nossa aparência realmente está saída de um filme de terror. Todo mundo fica tão chocado e com uma expressão tão acabada que é óbvio que eles pensaram que a gente tinha morrido.

Todo mundo chora muito. A Ana especialmente, com o rosto inchado de quem chorou a noite toda, e quando o José me puxa pela janela ele e a Bruna me abraçam tão forte que eu acho que vou desmaiar. A Bruna chora muito e me pede milhões de desculpas enquanto me abraça, mas eu digo que tudo bem. O Moisés também precisa de ajuda para subir, e quando todo mundo finalmente se reúne a gente só se abraça e fica assim um tempo, jogados no chão mesmo, e eu até ignoro o quanto estava dolorida só para ficar um pouco assim com eles.

Nada como uma tragédia para reaproximar uma família.


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