Tudo que eu deixei escrita por alegrrdrgs


Capítulo 7
VII




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Naquela noite ele voltou pro quarto um tempo depois, quando eu já estava quase dormindo. Ele me ajudou a ir pro colchão e depois saiu no corredor escuro. Eu queria que ele ficasse, mas não pedi.

Eu me recupero aos poucos. Pego sol na laje com a Bruna, discuto sobre Harry Potter com o José, reclamo do calor com a Maria, volto pro meu quarto e depois continuo a passar os meus dias sem fazer nada.

As coisas voltam ao normal entre eu e o Moisés, pelo menos mais ou menos. Ele para de me ignorar, mas o clima entre nós dois está esquisito, então a gente evita ficar junto. Eu evito e ele evita, nenhum de nós falando sobre isso mas os dois cientes do que tá acontecendo. Num final de tarde, cai uma chuva muito forte, mas tão forte que eu acho que o prédio vai cair. Tinha feito um calor horrível o dia todo, e estava todo mundo suado e sujo. Eu estou no quarto do José e um dos trovões nos assusta tanto que eu grito, pulando da cama. É quando eu decido chamar todo mundo para tomar banho na chuva, que estava muito mais forte que qualquer chuveiro que eu já tenha usado. Eu vou no quarto das meninas e ele no quarto do casal, e então subimos todos juntos.

A Ana pede pra todo mundo ter cuidado pra não cair na escada molhada, a última coisa que a gente precisa é de uma perna quebrada. Mas ela parece bem animada com a ideia, ansiosa pra se molhar.

A gente fica debaixo da chuva e tira a roupa, tomando banho como se fosse um chuveiro mesmo. Até passamos shampoo no cabelo. Normalmente não dá para lavar o cabelo porque gasta muita água, só quando o rio transborda e a gente puxa água com um balde. É divertido. É perigoso também, porque tem muitos raios e os trovões estão muito altos, mas é mais divertido que perigoso.

Eu começo a gargalhar, e todo mundo ri também, porque a cena é ridícula. É a primeira vez em que a gente se diverte coletivamente desde que a Tainá morreu, tremendo de frio e com espuma escorrendo pelo chão. A Carol escorrega, mas ela ri tanto que eu sei que não se machucou. A gente se empolga e gasta um frasco inteiro de shampoo, e o cheiro que fica no ar é tão bom que eu gastaria mais dez. Então alguém pega uma vassoura e nós esfregamos o chão da laje com o resto do shampoo, limpando ela decentemente pela primeira vez em todo aquele tempo.

Depois todo mundo desce molhado e com frio, e corre pros seus quartos para se enxugar e vestir alguma roupa, rindo como se fosse um bando de adolescentes aprontando. Mas eu paro na porta do meu quarto, ao lado da escada, e o Moisés fica na porta da escada, nós dois rindo tanto que choramos. A gente não consegue enxergar exatamente, porque o corredor já tá escuro faz tempo. Mas a luz que entra pela porta do escritório é o suficiente pra identificar que estamos felizes e idiotas, pingando água por todo o chão. É o suficiente também para perceber a Ana magoada assim que aparece no corredor, enrolada na toalha, perguntando se ele não vai se enxugar.

Então eu dou boa noite e vou pro quarto da Bruna, me sentindo culpada, e me visto com ela. A Bruna sabe. Todo mundo deve saber, é óbvio, mas ela me olha como se soubesse mais, como um alerta de "não vai fazer nenhuma besteira!".

Mas ela não costuma ficar só no alerta, então espera eu me vestir e fecha a porta para conversar comigo.

Ela me pergunta se tem rolado alguma coisa entre eu e o Moisés, e eu digo que não. Ela me pergunta se vai rolar e eu sou honesta o suficiente para ficar calada. Mas quando ela começa um discurso de como as coisas precisam continuar equilibradas para a gente sobreviver até a ajuda chegar, eu não aguento. Que ajuda? E que equilíbrio?

Mas eu não quero brigar com ela, então só me retiro e vou pro meu quarto. Eu fico deitada, com frio, na escuridão completa. Eu fico com um pouco de raiva dela, sim. Não porque ela esteja errada sobre o fato de que seria errado me envolver com o Moisés, mas porque eu odeio sempre que alguém fala sobre a gente sair dessa situação, sobre uma ajuda que eles esperam que chegue sabe Deus de onde. Eles são tão cegos assim ou fingem?

Porra, não existe vida em lugar nenhum.

Eu durmo, ainda com raiva, e tenho um sonho esquisito com o meu irmão, onde eu tomo banho de chuva com ele mas ele se afoga na chuva e depois vira um zumbi. Eu acordo assustada com o barulho da chuva que ainda cai, sem enxergar nada no escuro, na mesma hora que o José entra no quarto. Ele segura uma vela, o que é esquisito porque a gente quase não usa as velas, e eu até acho que ainda é um sonho.

Mas ele se senta no colchão ao meu lado, diz que tinha me ouvido gritar e que foi ver se estava tudo bem. E ele parece tão preocupado que eu acho que ele espera que eu tenha um outro colapso. Só depois de focar nele eu vejo os outros na porta no quarto, com cara de sono como se também tivessem acordado agora. Eu não olho pro Moisés, mesmo sentindo o olhar dele em mim. Ao invés disso eu falo para eles como um grupo que estou bem e que foi só um sonho, e eles voltam pros seus quartos.

É uma droga.

Eu me proibia de me apaixonar por alguém, antes do apocalipse. Continuo proibindo porque é a maior estupidez possível, mas se eu vou me interessar por alguém devia ser pelo José. Seria tão mais fácil. Eu queria realmente sentir o mínimo de interesse por ele.

Eu gosto do José, mas às vezes ele me cansa demais. Todo mundo me cansa demais, na verdade. Tudo. Eu sei que eu sou chata, desistente e difícil, e que eu torno a vida de todo mundo mais difícil do que deveria. E mesmo assim ele continua do meu lado sempre, sem arredar o pé. Sempre disposto a me ajudar, sempre disposto a me oferecer a sua amizade.

Fico conversando um pouco com ele até acalmar. Ele me pergunta se eu tive um pesadelo, mas eu não quero falar sobre isso. Então ele diz que pode ficar comigo ali se eu quiser, e eu aceito mais pelo frio que por querer companhia. Ele volta no seu quarto, que fica ao lado do meu, e traz o seu cobertor. Ouço a sua voz no corredor, falando com alguém, e então a voz de Moisés respondendo. Nós colocamos os cobertores um por cima do outro, e ele me abraça como fez no dia da fogueira, e então apaga a vela.

Ele fica nervoso e diz que quer conversar comigo. Que precisa me falar uma coisa.

Mas eu não quero ouvir o que ele tem a me dizer. Eu não posso me dar ao luxo de perder um dos meus únicos amigos, não posso suportar a ideia de ficar completamente sozinha aqui.

Então eu fico calada.

Ele acha que eu dormi, e eu escuto ele suspirar. Mas ele continua fazendo cafuné até que eu durmo de verdade.

No dia seguinte, quando eu acordo, todo mundo acha que a gente transou O que é estranho, porque eu já tinha dormido no quarto dele, da Bruna ou até da Tainá outras vezes. Mas aparentemente daquela vez eles tem certeza que alguma coisa foi diferente. Ou talvez e o mais provável: eles acham que eu quis provar que não está acontecendo nada entre eu e o Moisés. E eu preciso admitir que o alívio na expressão da Ana enquanto ela brinca e faz piadas com os outros foi tão forte que eu até achei que tinha sido uma boa ideia, mesmo que não fosse uma ideia.

A gente fala que não tem nada a ver, que só estava frio, mas todo mundo continua com aquela expressão dissimulada. Eu penso que, bem, foda-se. Eu não tenho capacidade de me importar com o que as pessoas pensam de mim no meio de um apocalipse zumbi.

Então eu continuo agindo normalmente, e quando o Moisés vai de tarde no meu quarto me ajudar a fazer uns buraquinhos na parede para entrar a luz, nós dois fingimos que aquilo não era nem um pouco estranho. Ele e o José eram amigos antes de tudo acontecer, e continuavam amigos. Eram os dois únicos homens ali, e às vezes eles se sentavam na laje e ficavam jogando conversa fora. Eu gostava de ouvir eles conversarem, porque era quase como se os zumbis não existissem e eles estivessem só conversando no final do expediente como sempre faziam, falando besteira e contando piadas.

Quando eu esquento a comida com a Ana, nós duas fingimos que não é óbvio o quanto ela está aliviada por eu não querer roubar o namorado dela. Mas a Bruna, e o jeito que ela me olha, entrega tudo. Então quando todo mundo vai se deitar de tarde e eu fico na laje olhando pro nada, ela vem de novo conversar comigo. E diz que gosta de mim, mas que só porque a gente estava preso ali não significava que a gente podia fazer o que quisesse, ou ia tudo por água abaixo, e que acima de tudo ela falava isso porque ela tem uma namorada e não ia querer passar por isso.

Mas de novo eu me estresso, e dessa vez não faço questão de esconder. Talvez principalmente porque eu tenho me controlado e sido boazinha por tanto tempo que já chega. Miranda ficaria orgulhosa de mim.

Eu digo que ela tinha uma namorada, porque ela morreu e todo mundo morreu e a porra do mundo inteiro morreu e que eu preciso que ela pare de ficar me enchendo o saco com coisas que não tem nada a ver com ela e que eu posso fazer o que eu bem entender porque é a porra do apocalipse e a gente vai morrer de qualquer jeito, e ela precisa parar de ser tão burra a ponto de achar que a ajuda vai vir de algum lugar, porque não existe ajuda e a ajuda morreu.

Mas é mentira, é claro. Eu me importo sim com o que eu faço se isso significa que eu vou machucar algum dos seis. Eu acho que ela vai me dar um tapa ou gritar comigo, mas ela só chora em silêncio e se levanta para ir embora quando eu peço desculpas, arrependida. Eu começo a chorar, também, porque não queria ter magoado ela, e quando a Ana aparece na laje e me pergunta se estava tudo bem, e por quê a gente brigou, eu só balanço a cabeça e não quero explicar.

Aí ela me abraça e eu penso, bem, caralho. Ela vai mesmo tentar me consolar? E ela tenta. Então eu me sinto uma filha da puta de marca maior, e digo para ela que vou me deitar e me escondo no meu quarto. Eu durmo até a noite, e quando acordo e ouço o silêncio absoluto, saio do quarto pensando em pegar um pouco de água. Eu nem bem abro a porta e esbarro com o Moisés, que aparentemente acabou de fazer a mesma coisa, porque está com um dos pés ainda na escada.

A gente não fala nada, e ele dá passagem para eu subir as escadas. Quando abro a porta que leva para a laje percebo que a lua ainda está cheia e bonita, como naquela noite no escritório, e ilumina tudo.

Eu bebo água em silêncio, e então ele bebe água em silêncio.

Nós voltamos para a escada, mas paramos antes de descer, ainda em silêncio. Eu odeio como tudo ficou tão estranho entre nós, como eu não consegui deixar as coisas normais como deveriam ser.

Ele percebe, eu acho, porque sorri pra mim e diz que tinha me avisado que o José estava apaixonado. Eu digo que o José é meu amigo, como todos eles ali.

A tensão no ar é tão absurda que eu até me sinto viva. Ele toca minha mão, e eu deixo Moisés entrelaçar os dedos nos meus. Ele faz tudo devagar, como se estivesse inseguro e não soubesse como eu iria reagir. Ele me pressiona contra a parede devagar, e então ele me beija devagar, e eu posso sentir o seu nervosismo.

Ele me beija, a mão bem leve no meu rosto, e então se afasta e fica esperando a minha reação, esperando eu me afastar. Esperando que eu o empurre ou grite. Mas eu penso que quero mais é que tudo se exploda, e beijo ele de volta, e meu Deus eu queria fazer isso há tanto tempo. Desde antes de tudo. As duas mãos no meu rosto, a boca dele tão cuidadosa na minha, exatamente como eu sempre imaginei que ele me beijaria. Ele continua a me beijar, e a gente vai de uma parede até a outra, eu contra a parede e então ele contra a parede, entrelaçados um no outro, e ele me abraça com o corpo todo.

Quando ele se afasta ofegante, e mesmo com a luz tão fraca eu vejo que a sua expressão é de tristeza. Então ele me diz, baixinho:

— Desculpa. Eu não vou fazer de novo. Eu só queria te beijar pelo menos uma vez. Eu sei que eu... - ele respira fundo. Nervoso, arrependido, culpado - Desculpa.

Ele toca o meu rosto mais uma vez, um carinho leve nas minhas bochechas. E então desce as escadas, sumindo na escuridão.

 


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