Tudo que eu deixei escrita por alegrrdrgs


Capítulo 6
VI




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O Moisés está estranho comigo, desde que a gente foi no shopping. Ele e a Ana brigaram. Ou, mais especificamente, ela brigou com ele. Mas é estranho porque, se eles brigaram, ninguém ouviu nada. Não sei. O que eu sei é que ele fica me evitando, o que é bem óbvio se considerar que nós somos só sete pessoas. Acho que todo mundo percebe, mas ninguém diz nada.

O que acontece é que não dá para esconder as coisas das pessoas quando só existem sete pessoas no mundo e absolutamente nada para fazer. A gente acaba percebendo tudo mesmo que não queira, porque a mente fica procurando alguma coisa para prestar atenção.

Primeiro eu fiquei com raiva, e depois eu fiquei triste e depois eu pensei que era melhor assim, porque não existe necessidade nenhuma de complicar ainda mais a nossa vida. Agora eu tô sentindo uma mistura dos três. Mas provavelmente é melhor assim.

Ele já tá me evitando há pelo menos uma semana quando eu sonho com a Miranda. Se ela estivesse aqui comigo o apocalipse seria uns 70% menos deprimente porque ela sempre me fazia rir e me deixava de bom humor. E para ser completamente sincera, porque ela sempre me influenciava a fazer o que eu de fato queria.

A ordem de pessoas que eu amava sempre foi o Lucas em primeiro, a Miranda em segundo, e os meus pais em terceiro (ou no fim da lista, dependia da última que eles tivessem aprontado).

Ela foi a melhor amiga que eu já tive em toda a minha vida, eu não conseguia imaginar um mundo sem ela, de verdade. Infância e adolescência e o começo da vida adulta fodida, brincar correndo pela escola e se estressar com provas e chorar pelos namorados e odiar nossos pais e sorrir e gargalhar até a barriga doer, assistir filmes de madrugada juntas, sentindo uma bolha de paz e amizade. Ela estava comigo em todas as situações e em todos os momentos, e se eu pudesse ser egoísta o bastante para tirar alguém da paz da morte (porque uma pessoa como ela com certeza está em paz) e ficar aqui comigo se fodendo no apocalipse eu escolheria ela.

Até o Lucas nascer ela era a única família que eu tinha.

Eu tenho pensado muito nela nos últimos dias. Às vezes acontece de eu ficar pensando obsessivamente em alguém do mundo de antes, porque como eu disse a mente fica caçando alguma coisa para prestar atenção.

Quando eu penso nela eu sinto saudades demais, mas de um jeito quase bom. Se eu pudesse eu iria apagar tudo de ruim que aconteceu na vida dela e tudo que ela sofreu e todas as lágrimas e toda a dor e teria dado para ela vinte e dois anos de felicidade pura e absolutamente nenhum problema, e eu não iria me importar se isso mudasse quem ela era porque se ela vai morrer aos vinte e dois anos isso não importaria. Pensar na Miranda quase me faz bem, porque pelo menos é alguém que eu amava e que me amava e não era complicado. Era bom, era saudável, e eu nunca tive dúvidas de que seria para sempre.

De qualquer jeito, eu acordo bem cedo, antes de todo mundo, e é óbvio que a gente já perdeu a noção dos dias tem muito tempo, e nem tenta contar. A gente sabe que é começo de ano porque o rio voltou a subir, mas tirando isso não dá para se basear em nada. E esse nem é um embasamento muito bom, mas é o único que a gente tem.

Enfim, tinha chovido de noite e o nível da água subiu mais um pouco, quase chegando na metade dos pneus dos carros. Eu subo para a laje para ver o sol nascer porque não tinha nada além disso para fazer e porque eu queria ficar sozinha em algum lugar que não fosse escuro. E quando o sol nasce faz um arco íris enorme no céu, e eu penso puta que pariu, hoje é o aniversário dela. Eu tenho certeza que hoje é o aniversário dela.

Eu sei, eu só sei. Eu sinto.

Uma aquariana dos infernos. Eu nunca liguei para astrologia, mas ela adorava. Todos os anos ela dizia que as previsões diziam que aquele ano ia ser terrível. E, bem, ela nunca errou. Eu me lembro de quando ela passava madrugadas acordada fazendo o mapa astral dos garotos que ela gostava e meu Deus do céu, eu não consigo aguentar. Eu choro tanto, mas tanto que eu tenho certeza que todo mundo vai acordar e que toda a água do meu corpo vai sair.

Eu ficava louca quando pensava na minha família morta, no meu irmão morto, mas eu engolia tudo e escolhia a apatia ou a amargura sempre porque eu não ia conseguir lidar com a tristeza. Porque eu não consigo lidar com a tristeza, então eu escolho a apatia. Mas quando eu choro pela Miranda eu choro por todos eles, todo mundo, pela porra do mundo inteiro, mas principalmente por ela. O sorriso dela, o bom humor, as férias sempre juntas e as promessas de uma vida inteira uma ao lado da outra. O amor dela pelo Lucas, todas as malditas vezes em que ela me apoiou e brigou e me obrigou a seguir os meus sonhos. Eu desabo tudo que estava segurando todo aquele tempo. Meu joelho rala no concreto, minha roupa molha nas poças de água. Eu me encolho toda no chão, pensando naquela porra daquele arco íris.

Eu choro tanto que não consigo respirar, talvez eu grite um pouco também, e acho que é assim que eu vou morrer: afogada nas minhas próprias lágrimas. Ser devorada por um zumbi seria menos humilhante.

Então eu ouço alguém correndo pela escada, me chamando, mas a minha cabeça dói de tanto chorar e eu não consigo olhar, eu não quero olhar. Eu não me importo, na verdade. Eu só queria que a Miranda estivesse aqui, limpando as minhas lágrimas e tentando me consolar. Eu fecho os olhos com força e seguro minha cabeça, ouvindo o José me chamando e me segurando, me amparando no chão, mas eu não consigo parar.

*

Depois do meu colapso eu fico de cama por uns dias. Eu não me lembro de muita coisa, só alguns momentos em que eu acordava e olhava ao redor mas logo voltava a dormir. Eu chorei muito, tanto que acordava com dor de cabeça. Fiquei com febre e segundo me falaram depois ficava delirando e chamando pelas pessoas de antes, disseram que eu chorava e dizia que queria a Miranda e a minha mãe.

Todo mundo ficou muito preocupado, porque ninguém tinha ficado doente depois do apocalipse. E morrer de doença no meio do apocalipse é meio estúpido, já que o esperado seria ser morta por um zumbi.

Me levaram para o escritório porque achavam que ia ser bom ficar num lugar com janela. Eu lembro de acordar e tudo girar, aí eu conseguia focar em alguém e dizia alguma coisa sem sentido e aí caía de novo. Eu sentia muito calor e muito frio, e ficava intercalando entre arrancar minha própria roupa e me cobrir com tudo que a minha mão alcançava. Até que um dia acordei sentindo o sol no meu rosto, e por um segundo eu fiquei confusa de verdade achando que estava no meu quarto, na minha casa antiga, e tinha esquecido de fechar as cortinas antes de dormir.

Mas aí eu vi a Ana dormindo sentada do meu lado, e me lembrei de onde eu estava.

Me falaram, depois, que o José me encontrou na laje. Que eu fiquei gritando e não queria soltar ele e achavam que eu tinha sido atacada por um zumbi ou alguma coisa assim. Ele me levou de volta para dentro do prédio e todo mundo ficou sem entender nada. Aí eu apaguei e acordei só de noite chorando e ardendo de febre, e ficava chamando a minha mãe.

Em resumo, todo mundo achou que eu ia morrer, e todo mundo ficou bem feliz quando eu acordei. O que foi esquisito mas de um jeito bom, porque eles cuidaram e se preocuparam bastante comigo e eu fiquei com a sensação de que a gente não era mais só sete pessoas sobrevivendo juntas, mas uma família mesmo.

Eu fiquei sete dias assim, entre acordar, surtar, dormir e surtar de novo. E se normalmente eu já estava desidratada e desnutrida, quando acordei estava pior ainda. Por sorte ainda tinha bastante água da chuva do dia em que eu tive um colapso, então eu pude beber bastante. O Moisés e a Bruna foram ao supermercado um dia antes porque precisavam abastecer as compras antes que o rio deixasse os carros submersos, então também tinha muita comida.

Como ninguém tem nada para fazer, todo mundo fica reunido no escritório o dia todo comigo. Ninguém me pergunta exatamente o que tinha acontecido, e eu também não quero explicar. Eles passaram pelas mesmas coisas que eu, então acho que eles entendem mesmo sem precisar perguntar. Só ficam felizes por eu estar melhor.

A gente passa o dia sem fazer nada importante, coletivamente. O José ficou muito preocupado quando me encontrou, e é óbvio o quando ele fica aliviado de me ver melhor. Eu lembro do que o Moisés falou, sobre ele estar apaixonado por mim, e me sinto um pouco mal por ele. A gente joga stop, na categoria "filmes", e a Carol ganha. O José fica ao meu lado, e só sai quando a Bruna vai esquentar o almoço e pede para ele ir junto. Eu agradeço mentalmente, porque ela provavelmente percebeu que eu já estava de saco cheio.

Ficamos eu, a Ana e o Moisés. Eu agradeço por ter passado a noite comigo, e ela diz que eles vinham se revezando, que todo mundo ficou tão preocupado. A Ana é a mãe do grupo, basicamente. Ela se preocupa com todo mundo, separa a comida, divide a água. Conversa com todos, é gentil, quer ter certeza que todo mundo está tão bem quanto o possível.

Ela é ótima, de verdade. Uma boa companhia para o apocalipse.

Eu não sou.

De noite cada um volta pro seu quarto, já que o único colchão no escritório é o meu. À noite é diferente, porque eu já tô acostumada a dormir na minha caixa de concreto sem janelas, e a janela deixa a luz da lua entrar e ilumina tudo. Eu me levanto para sentar perto da janela, e com os zumbis submersos e a lua refletindo no rio, eu quase poderia esquecer que o apocalipse aconteceu. Quase. Fico considerando abrir uma janela no meu quarto também, penso se vou me arrepender quando chover. A porta do escritório está aberta como sempre fica, para dar alguma luz pro corredor.

Eu sei que o Moisés entrou antes de me virar, e quando eu olho para porta ele está parado meio indeciso, a calça de moletom que a gente escolheu no shopping e a blusa velha que ele usava antes. Eu chamo ele para sentar ao meu lado, e só assim ele parece tomar uma decisão.

No mundo pré-apocalipse ele costumava ser a alma dos lugares. No trabalho, ele e o José alegravam os nossos dias, brincando e fazendo piadas para todo mundo rir um pouco. Ele imitava o dono como ninguém. Gostava de beber nos finais de semana e de filmes de comédia. Gostava de ser o centro das atenções, como todos os filhos únicos que eu conheci. Implicava com a Tainá, mas dava chiclete para a filha dela sempre que a garotinha vinha na loja. Tinha sempre histórias para contar, como se fosse um velho pescador.

Mas nos últimos tempos ele vem ficando cada vez mais cansado. Todo mundo está ficando assim na verdade, mas com ele é mais óbvio. Ou pelo menos é mais óbvio para mim, que mesmo antes de tudo costumava prestar mais atenção nele do que deveria.

Eu gosto dele.

É isso, da maneira mais sucinta possível. Eu gostava dele antes de tudo, mas não era nada. Mas eu dizia para mim mesma que era uma quedinha, um gostar infantil que eu não estava disposta a desenvolver porque eu queria ir embora, porque eu me recusava a me prender a alguém, e então ele começou a namorar e eu continuei ignorando porque se antes eu já não estava disposta a me envolver com alguém, eu era ainda menos disposta a me envolver com alguém comprometido. Mas a porra do apocalipse, ficar confinada aqui no prédio, tudo que tem acontecido todos os dias há um ano, toda a porra da carência e luto e tristeza... Nada como o apocalipse para aflorar os sentimentos de alguém.

Eu me encaixo mais contra ele, ainda olhando para a rua. Ele passa um braço pelo meu ombro e fala que eu ainda tô com febre, baixinho. Eu respondo que já tô bem, pronta para outro surto. Ele fica em silêncio e por um momento nós ficamos só olhando a paisagem. Então, ele me pergunta quem é Miranda.

Eu fico calada um pouco, ele espera sem pressionar. Então eu digo a verdade: que ela era minha irmã. Ele só me abraça mais forte e beija meu cabelo, mas não comenta nada.

O que ele poderia dizer? Acho que é por isso que eu gosto dele.

Mas ele não é meu, e eu sei disso. Seria uma puta sacanagem roubar o namorado de alguém na vida normal, mas roubar o namorado de alguém no meio do apocalipse seria um outro nível. Eu mudei de ideia tarde demais, quando ele já estava com ela. Se eu tivesse aceitado ele antes, as coisas poderiam ter sido diferentes.

Eu gosto da Ana. Ela é educada e paciente, e me trata bem mesmo quando eu não mereço.

Mas...

Mas eu tô exausta.

E eu quero me encostar nele e dormir com ele me abraçando.

E eu quero poder falar qualquer absurdo que eu esteja sentindo sem ter que me policiar, como no dia que a Tainá morreu.

Eu pergunto por que a gente faz aquilo, porque ainda tenta sobreviver. Seria tão mais fácil se entregar. Que mania era aquela, que apego absurdo à vida era aquele que fazia com que a gente sobrevivesse?

Ele balança a cabeça, sem saber a resposta. Fala que é complicado e humano e loucura. A coisa mais humana que ele presenciou na vida toda, um nível de idiotice que ele nunca achou que veria, ele ri. Mas que ele quer viver, confessa. E eu também, e todos nós. A gente quer viver, apesar de tudo.

Não dá pra negar.

A questão, eu digo para ele, é que eu não quero querer viver. Eu quero querer desistir. Mas mesmo nos piores momentos, mesmo nos piores dias, eu ainda quero viver, eu ainda fico apavorada com a ideia de que eu vou morrer aqui, e eles também.

A lua continua alta, o reflexo dela na água deixando a cidade bonita apesar do caos. O Moisés se afasta um pouco, pegando alguma coisa no bolso, e tira uma barrinha de cereal.

De mel com banana, o tipo que eu costumava lanchar no trabalho.

— Pra você melhorar logo. Eu peguei no supermercado.

Como eu posso não querer beijar ele, quando ele lembra a droga da marca e sabor da barrinha que eu comia no almoço?

Mas eu não beijo. Eu penso na Ana e não beijo.

Eu pego a barrinha da mão dele, aproveitando para entrelaçar nossos dedos. Ainda é errado, mas menos errado do que seria se eu beijasse ele.

Eu pergunto se ele acha que a gente vai morrer.

Ele diz que acha que sim.

Quando a gente escuta uma porta abrir no corredor, nenhum dos dois se afasta. E a gente deveria se afastar. Deveria ficar sobressaltado, agir daquela maneira suspeita de quem tenta esconder. Mas ele continua me abraçando, a mão segurando a minha, os dois olhando pela janela, nenhum de nós disposto a sair. Eu fico esperando alguém aparecer, mas ninguém aparece.

Talvez tenha sido só o prédio velho.


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