Tudo que eu deixei escrita por alegrrdrgs


Capítulo 12
XII




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Demora semanas pra todo mundo se recuperar. Eu passo algumas semanas me controlando e tendo certeza de que todo mundo vai morrer, eu não consigo acreditar que eles vão melhorar. As noites acordadas e os dias dormindo, enquanto o Moisés faz o oposto e assim a gente consegue dar conta de tudo. Mas eles se recuperam quase ao mesmo tempo, como um milagre.

Depois que eles ficam bem e eu sei que ninguém vai morrer, eu me permito desabar.

Eu não converso com ninguém, nem com o Moisés, e ele também está tão mal que não tenta falar comigo. Ele passa o tempo inteiro trabalhando no projeto das janelas, e eu fico deitada no quarto da Bruna. A Bruna até tenta me animar, mas não tem como.

Todo mundo sente muito a morte da Ana. É um impacto que ninguém esperava. Quando a Carol descobre o que a gente fez com o corpo ela surta, vai para cima do Moisés e acusa ele. Ela diz que ele tinha acabado com a vida dela, que ele não tinha vergonha, que ele tinha ficado feliz em se livrar dela. Ele deixa ela gritar e acertar ele, sem dizer nada e sem tentar se defender. Ela ainda está se recuperando, então não é como se tivesse muita força.

Mas por mais que a gente não esteja se falando, eu ainda amo ele, então eu peço para ela parar e seguro os seus braços. Então ela tenta bater em mim também e, surpreendentemente, é a Maria quem se intromete, mandando ela parar.

Ela obedece, e fica chorando escondendo o rosto entre as mãos. A Maria também chora, e as duas caem no chão abraçadas, gritos de dor por terem perdido a amiga.

Aquilo é demais para mim.

Eu decido ficar deitada, escondida no quarto da Bruna para não ter que encarar o óbvio (que ele não me ama mais, que ele me culpa também, que a culpa foi sim minha também, que tudo tinha sido em vão, que não existia salvação física ou moral para nós dois e que a Ana tinha morrido ainda apaixonada pelo namorado que eu roubei dela, que ela morrer era como se a Miranda morresse de novo, que se alguém fizesse com a minha irmã o que eu fiz com a Ana, não teria perdão, que de novo e mais uma vez e o mesmo de sempre: nós vamos todos morrer aqui), até quando eu aguentasse. E eu aguento por um tempo.

Os primeiros dias passam, a primeira semana. Mais alguns dias. E então eu não sei quanto tempo passa, mas o Moisés fica preocupado comigo, mas sempre que tenta conversar eu finjo que estou dormindo. Eu não quero falar com ninguém, eu não quero pensar, eu não quero lidar, e eu não quero existir.

E ele sabe que é de propósito, é óbvio. Porque toda vez que eu ouço os passos dele no corredor, viro para a parede e fecho os olhos. Porque o José está tentando me convencer a levantar para jantar, mas assim que eu vejo o Moisés aparecer na porta eu me cubro com o lençol. Porque a Bruna está me consolando enquanto eu choro baixinho, e assim que ele se aproxima eu peço para ele ir embora. Porque eu confesso para o José o quanto eu queria ter me apaixonado por ele, que tudo seria mais fácil.

Isso se repete por tempo o suficiente. Ele chega a entrar no quarto quando eu estou sozinha, a pedir para conversar. Implorar por uma resposta. Mas eu fico parada, escondida debaixo do lençol e evitando ele. Porque ele implora e implora e implora, me pede desculpas, mas eu não consigo falar com ele porque eu sei que a gente matou a Ana.

E eu posso ouvir eles conversarem sobre mim no corredor, preocupados. Sem saber o que fazer e sem uma resposta. Posso ouvir a voz preocupada dele, o desespero da Bruna e do José. Até mesmo Carol e Maria participam da conversa em algum momento. Eu fico grata quando a Bruna fala para ele que eu preciso de um tempo, que é melhor ele não insistir por enquanto, porque assim ele realmente desiste.

Algumas noites eu sonho com a Ana, a cabeça amassada pela queda e o corpo devorado por zumbis, e ela me pergunta se tinha valido a pena. E eu choro de culpa, e então a Bruna me abraça e canta baixinho para eu voltar a dormir.

Outras vezes eu sonho com o Lucas, brincando na frente de casa. E então os meus pais assistem sem fazer nada quando os zumbis aparecem, e eu corro para tirar o meu irmãozinho de lá, mas quando finalmente o alcanço eu me sento, acordando e agarrando o nada. Eu sinto tanta falta dele que é como se tivessem cortado um dos meus braços.

Eu só consigo me levantar durante a noite, quando todos estão dormindo. Eu vou até a laje ou até o escritório e olho pela janela, o rio ainda invadindo a rua. A garrafinha de água do Moisés está em cima da mesa, e eu tomo toda a água enquanto olho o rio pela janela. Na noite seguinte, quando eu me levanto para fazer o mesmo, noto que a garrafinha está no mesmo lugar, mas cheia, e com uma barrinha ao lado. Isso se repete nas outras noites, mas eu digo a mim mesmo para não pensar demais sobre isso.

Um dia eu acordo assustada com o barulho forte da chuva. Eu vejo a Miranda caminhando pelo quarto, me chamando, falando comigo. Mas ela é um zumbi, e eu grito e peço para ela não se aproximar. Eu imploro, e choro, e peço para ela voltar, para ela se lembrar de tudo e voltar a ser uma pessoa. Eu digo que amo ela, que eu preciso que ela entenda. Ela me chama de egoísta por querer continuar viva quando todo mundo já morreu. Eu imploro e imploro e choro mas ela diz que não tem como, que ela não consegue ser humana de novo então eu preciso virar uma zumbi. Eu grito pedindo para ela parar, para ela não tocar em mim, mas ela continua se aproximando.

Então eu empurro ela contra a parede, mas ela é mais forte. Ela me empurra de volta com força e eu caio, batendo a cabeça no chão. Tudo fica girando e eu sinto que vou apagar, mas eu consigo discernir o suficiente para ver que não era com a Miranda que eu gritava, era com a Bruna, e ela não era um zumbi. Na porta, todo mundo me olha, assustado, e o Moisés se aproxima, aterrorizado. Eu não quero lidar com isso então deixo a inconsciência me levar.

A sensação é de que o apocalipse conseguiu finalmente me enlouquecer de vez.

*

Quando eu acordo é noite, mas eu tenho a sensação de ter dormido por muito tempo. A minha boca está seca, e a lua cheia ilumina o quarto pelos buraquinhos na parede. Eu até demorei a assimilar que tinha voltado pro nosso quarto, mas a luz não é tão forte no quarto da Bruna. Além disso, é claro, tem o fato de que o Moisés está sentado do meu lado, me abraçando.

Ele não percebe que eu acordei, e quando eu me reviro na cama, confusa, ele espera para ver se eu vou fugir mais uma vez. Mas eu me aconchego nele novamente, exausta e sem querer lhe olhar nos olhos, e ele volta a passar a mão pelos meus cabelos. Ele perdeu muito peso, eu noto.

Ele me pergunta se eu me sinto melhor.

Eu digo que não, que acho que estou ficando doida. Doida de verdade, sem exageros e nem figurativamente. Eu não quero olhar para ele.

Então ele ri, e eu não consigo evitar. Olho para ele, e ele está muito diferente. O cabelo mais longo, o rosto mais fino. Parece mais triste, também. Mas a risada fraca dele ainda é igual.

Ele diz que eu sou a única pessoa a usar a palavra "figurativamente" no meio do apocalipse. E a risada dele, mesmo que breve, me relaxa o suficiente.

Eu pergunto por que eu não estava no quarto da Bruna, e ele brinca dizendo que ela tinha me despejado. E eu percebo que ele está tentando deixar as coisas mais fáceis para mim, brincando como costumava fazer.

Mas eu me lembro de atacar ela, e pergunto se ela estava bem. Se eu machuquei ela. Ele diz que estava tudo bem, que ninguém tinha se machucado. Além de mim, é claro.

Ele pergunta, então, voz preocupada e as mãos tremendo, o que tinha acontecido, e diz que ficou com medo que eu não acordasse.

Mas eu não tenho o que dizer. O que eu poderia explicar? Ele percebe o meu silêncio, e diz que só quer me ajudar. Então eu digo, muito resumidamente, que achei que tinha visto a Miranda. Que eu sentia muita falta dela, mesmo depois de todo esse tempo.

Então a gente pula quando um trovão alto nos assusta, e quando a chuva cai é que eu me dou conta de vez. Já é a quarta temporada de chuvas que a gente vivia trancados ali no prédio. Quatro anos. Eu começo a chorar junto com o céu. Então ele me abraça apertado, ainda jogados no colchão, e eu falo para ele.

Que eu sinto tanta falta dos meus pais que o meu coração partiu mesmo que eu tivesse jurado que eles nunca mais iriam partir o meu coração, que eu queria olhar para eles e dizer que estava tudo bem, e que eu perdoava as falhas deles porque eu também não era perfeita. Que eles fizeram o melhor que conseguiram, que a culpa não era deles se eles não queriam ter uma família. Que eu queria poder jogar futebol com o meu irmão uma última vez, e nadar no rio com ele e com a Miranda, que eu queria abraçar a Miranda e nunca mais soltar, e contar para ela todas as vezes que ela salvou a minha vida simplesmente por existir. Que eu era tão egoísta que eu só fiz o que eu queria e nunca me preocupei com os outros. Que a Ana tinha morrido e a culpa era nossa, que ela morreu de coração partido porque que outra explicação tem para todos os outros terem sobrevivido? Que eu queria ter enterrado a Ana. Que eu estou ficando doida, que eu finalmente estou ficando doida e isso deve ser um castigo por eu ser uma pessoa tão ruim. Que consegui deixar a vida deles dois ainda pior, mesmo que a gente estivesse no meio do apocalipse.

Ele me deixa falar e não me solta mesmo quando eu soluço, tremendo. E quando o lençol fica molhado com as minhas lágrimas, e mesmo que eu trema toda vez que um trovão me assusta, ele não me solta, ao invés disso só me aperta mais e mais forte, ouvindo tudo que eu tenho a dizer.

Então ele diz que me ama, e que ele queria poder fazer mais que isso. Que eu não sou egoísta, que eu sou a pessoa menos egoísta do mundo porque passei a vida inteira cuidando dos outros e nunca de mim. Que ele queria poder trazer todo mundo de volta para mim, tudo que eu quisesse. Mas a única coisa que ele pode fazer é me amar e ficar ao meu lado. Que ele não vai mais se afastar, só se eu quisesse. E se eu ficar louca, ele diz, então ele vai cuidar de mim mesmo assim. É o único anel de diamantes que ele pode me dar.

Eu choro, ainda abraçada a ele, e digo que amo ele também. E peço desculpas, porque eu fiquei no fundo do poço, mas isso não significava que tudo aquilo não era difícil para ele também. Tudo que nós fizemos, nós fizemos juntos e eu queria poder ajudar.

Ele me pede para não me afastar mais. Tudo que eu tiver que fazer, tudo que eu tiver que lidar... Ele quer estar lá. Então eu prometo que não vou me afastar. Vamos ser eu e ele, até o fim. E é tão bom ficar ali com ele, abraçados no nosso quarto, ouvindo ele dizer que me apoia, que eu até paro por um segundo de pensar em tudo que me levou até ali.

Ele diz, depois de um tempo, que não se arrepende de ter se apaixonado por mim, se é isso que eu penso. Que eu não deixei a vida dele pior, que eu melhorei tudo e eu deixei até o apocalipse melhor só por estar ali. Que se apaixonaria de novo se pudesse. Que queria voltar no tempo e dizer que me amava na primeira vez em que me viu, perdida e introvertida no meu primeiro dia naquele prédio. Ou na primeira vez que eu fiz ele rir, ou na primeira vez em que ele pensou que nunca iria me esquecer. Que ele costumava pensar que eu iria virar alguém importante e ele estaria em casa um dia assistindo o jornal e eu iria aparecer na tela, fazendo um discurso ou ganhando um prêmio, e ele iria pensar, com um sorriso conformado, que ainda me amava. Que se apaixonaria de novo todas as vezes que pudesse.

Isso até me faz sorrir em meio às lágrimas, mas então eu penso na Ana e o meu sorriso morre.

De manhã, antes que todo mundo acorde, ele me ajuda a ir para a laje. Os baldes estão cheios, e o sol acabou de aparecer. Ele tira a minha roupa devagar e me ajuda a lavar o cabelo, que está imundo. Eu passei tanto tempo escondida no quarto que a luz do sol é quase forte demais, mas pelo menos com ela eu consigo enxergar ele de verdade. Então ele me veste com roupas limpas e me deixa sentada no chão pegando um pouco de sol. Ele me diz que a gente precisa marcar uma nova saída para fazer compras.

Quando ele volta, ele traz uma barrinha e a sua garrafinha para encher de água. O sabor é banana com mel, e eu divido metade com ele. Quando o Moisés senta ao meu lado, eu me encosto nele, olhando a cidade vazia, e penso que se eu vou ficar louca então pelo menos vai ser ao lado dele.

 


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