Tudo que eu deixei escrita por alegrrdrgs


Capítulo 13
XIII




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Uma coisa eu sei que amo nele acima de todas as outras: é como ele não tem interesse em fingir que estava tudo bem. Se eu não quiser conversar, se eu não quiser explicar, se eu quiser só ficar triste e no meu canto ele deixa. Ele nunca me obriga a nada, a única coisa que ele pede é para ficar comigo.

A Bruna ficou feliz por me ver minimamente melhor, e eu pedi desculpas por ter atacado ela. Mas em geral essa foi quase a única interação que eu tive depois que saí do quarto dela.

Por um tempo eu não queria ficar ou falar com os outros, não tinha ânimo para isso. E eu sentia que eles ficavam receosos, esperando que eu surtasse novamente, então me limitava a ficar no quarto com o Moisés. Eu também esperava surtar de novo, preocupada que fosse atacar mais alguém, mas isso não aconteceu. Eu ainda tinha pesadelos, e em algumas noites o Moisés precisava me acordar para me acalmar. E tinha a minha falta de apetite, e a exaustão eterna. Em geral, as semanas passaram comigo ainda escondida no nosso quarto.

O Moisés ficava comigo, e me convence a pegar sol de manhã cedo e a comer, e não me deixava sozinha. E eu me agarrava a ele porque ele era a minha única tábua de salvação. E toda noite ele me ajudava a dormir e dizia que me amava, e eu dizia que amava ele também. Ele não foi mais ao supermercado, porque tinha medo de acabar ficando preso como da última vez e não poder voltar. O José e a Carol assumiram as compras de novo depois que a água do rio baixou.

Então aconteceu, ainda na estação de chuvas: a Bruna caiu escada abaixo. Ela fraturou o pé, e não conseguia mais andar. A água atravessou a porta que levava para a laje e isso fez a escada molhar.

Não tinha como ajudar, não tinha o que fazer. A gente carregou ela pro escritório, mas ela não conseguia andar ou mexer a perna sem chorar.

Então eu fico cuidando dela. É bom ficar ocupada, e também era o justo depois de tudo que ela tinha feito por mim. Eu levo comida e água, ajudo ela a tomar banho e faço companhia. Ser útil ajudando ela me ajuda a me focar, a me dar um objetivo. Mas é muito assustador pensar que se a queda tivesse sido um pouco pior talvez ela nunca voltasse a andar, especialmente porque era algo tão fácil de ser resolvido no mundo de antes.

Eu fico preocupada. Todos nós ficamos, e é difícil ter essa conversa. Mas e se ela não conseguir andar, e se ela passar o resto da curta vida sem conseguir sequer ficar em pé com tanta dor? Mas o José me convence que é só uma fratura, e em algumas semanas o osso vai calcificar. Talvez ela ainda sinta dor quando anda, mas vai conseguir andar.

Até que um dia eu acordo com os gritos dela. Não são de dor, mas de medo, e eu só consigo pensar que um zumbi entrou no prédio de algum jeito. O Moisés se levanta com um pulo, e eu corro atrás dele, ele com um martelo na mão e eu com a chave de fenda, o José, a Carol e a Maria já no corredor. Mas quando a gente entra no escritório não é um zumbi.

É um homem. Não é claro o suficiente para reconhecer, mas ele logo nos cega com uma lanterna, provavelmente achando que nós somos os zumbis. Quando ele foca a luz em mim, deixa a lanterna cair no chão.

Ela cai em pé, e ilumina o teto o bastante para que a gente possa enxergar ele.

Uma blusa de mangas compridas, uma mochila pesada nas costas e uma expressão assustada. Mas eu reconheço a tatuagem de pássaro na mão esquerda.

É o Rafael. As roupas sujas, o cabelo raspado, mais magro do que eu me lembrava, mas é ele.

Ninguém consegue acreditar, ninguém consegue entender. Naquela altura, os seis já achavam que não existia mais ninguém vivo.

Quando o Rafael me reconhece, ele tenta me abraçar, incrédulo e radiante, mas eu ainda estou tão chocada que me escondo rápido atrás do Moisés, que não deixa ele se aproximar.

Eu me pergunto se tudo aquilo ainda era parte da minha loucura. Pode ser um surto, como foi com a Miranda. Mas se fosse, ele seria um zumbi, como a Miranda e como o Lucas. Então ele me chama pelo nome, diz "sou eu!" várias vezes, como se eu pudesse ter esquecido.

Ele me chama de novo e de novo antes que eu consiga assimilar o que está acontecendo.

E todo mundo olha para nós dois, confusos e ainda em choque, e assim que cai a minha ficha, assim que o meu cérebro volta a funcionar, eu me jogo nos braços dele, os dois chorando, e nós caímos no chão.

É ele! Ele sobreviveu!

E ele não perde tempo: ele fala, rápido, as palavras tão emboladas que eu quase não consigo entender, que a minha mente demora a assimilar.

Todo mundo achou que eu tinha morrido.

Eles ainda estão vivos.

O Lucas, a Miranda.

Eles estão vivos, eles estão bem.

Eu pergunto pelos meus pais, esperançosa como uma criança, mas ele balança a cabeça. Eu não choro por eles, porque eu passei os últimos quatro anos fazendo isso, mas eu choro de alegria pela Miranda e pelo meu irmão. A gente se abraça de novo, rindo, gargalhando, e ele me gira na sala com todos olhando, começando a entender.

Quais as chances? Quais são as merdas das chances de eles terem sobrevivido? Eu enlouqueci, eu fiquei louca de luto e de tristeza, e eles estão vivos.

Quando eu finalmente solto ele, rindo, feliz, eu me viro e abraço o Moisés. Então eu repito "eles tão vivos, eles tão vivos, eles tão vivos" até ficar sem ar.

*

O que aconteceu, então, o que o Rafael conta para gente depois, quando todo mundo se acalma, reunidos no escritório para a Bruna poder participar:

Os zumbis começaram muito antes do que a gente imaginou. A gente viu eles chegando no centro durante a noite, mas nas outras áreas da cidade eles chegaram horas antes. Ele também não sabe como começou. Mas sabe que eles cercaram a cidade, atacaram de todas as áreas, e por isso a gente, que estava no centro, demorou a perceber. Eles atacaram a periferia primeiro, todos os arredores da cidade, e então foram juntos para tomar todo o resto. Ninguém acreditava muito no que estava acontecendo, algumas pessoas acharam que era uma piada, e ficou bem fácil atacar desse jeito. Outras simplesmente entraram em pânico e não tiveram reação. Eles foram rápidos, entrando nas casas e nos prédios e nas lojas, não deixando nada por onde passavam.

Mas algumas pessoas fugiram. Não muitas, mas tem uma colônia fora da cidade, em uma fazenda. São 80 pessoas que conseguiram escapar, e dois bebês que já nasceram lá.

Eu pergunto como eles levaram o Lucas, e ele me diz que a Miranda buscou ele na minha casa assim que percebeu tudo. Que quando ela chegou os meus pais não estavam, ele tinha trancado a porta mas deixou ela entrar porque ela não parecia um zumbi e porque, é claro, ele confiava nela. O meu irmãozinho corajoso e inteligente.

Então ela agarrou ele, e não esperou para ver se os meus pais iam voltar porque ela sabia que não, e pegou a moto do vizinho.

Ela encontrou Rafael na rua, no meio da confusão. Ele subiu na moto e os três fugiram, sem ter nada em mente e só querendo sair de lá. Eu percebo como é difícil para ele falar disso. Ele diz que tentaram chegar até mim, mas não conseguiram.

Ele viu tudo. Tudo que aconteceu, as pessoas morrendo, as pessoas se transformando, os zumbis tentando pegar eles três. Para ele, que tentou fugir nas ruas, não foi rápido como pareceu para a gente, que ficou na segurança do prédio assistindo sem se envolver.

Ele resume muito da história. Mas eu realmente não me importo. O que me importa é que eles estão vivos. Ele diz que, depois de um tempo e de reunir com outras pessoas que conseguiram fugir, eles chegaram numa fazenda. Ela era afastada o suficiente no meio do mato para ficar longe dos zumbis. Que dificilmente eles apareciam por lá, mas que quando acontecia tinham pessoas o suficiente para lidarem com isso.

Todo mundo fica quieto, absorvendo a notícia. Oitenta pessoas. Era muita gente, mas também eram pouquíssimas. Eu sabia que a minha família estava lá, mas não tinha como os outros saberem. Será que alguém da vida deles podia estar vivo?

Eu penso em contar pro Rafael que vi o irmão dele, mas decido ficar calada. Ele com certeza não esperava ter uma família viva. Que bem ia fazer saber que tinha um irmão zumbi?

Eu me agarro tão forte ao Moisés, porque estou transbordando de emoções e tão feliz, que acho que vou quebrar os braços dele. Mas ele sorri para mim, feliz por eu estar feliz.

O Rafael conta que ele só foi tão longe dentro da cidade porque está tendo um surto de doença na colônia, e ele precisou procurar remédios. Que nunca ninguém tinha voltado porque era perigoso demais. Quando ele fala sobre a doença, a gente se entreolha em compreensão. Talvez seja a mesma doença que eles tiveram, que matou a Ana.

Ele não esperava encontrar ninguém. Até onde eles sabiam, todo mundo que ficou para trás tinha morrido. E quando ele diz isso ele dá um suspiro, aliviado, e me tira dos braços do Moisés para poder me abraçar de novo, tão apertado que eu acho que vou partir ao meio. Ele disse que achou que eu tinha morrido. Que todos eles tinham achado isso, que eu não fazia ideia da falta que eles sentiam de mim.

Eu não digo que praticamente não tinha pensado nele naqueles anos, porque eu também me sentia subitamente grata que ele tivesse vivo, feliz por ver ele em carne e osso na minha frente. Então ele ri, e brinca com o Moisés que não estava tentando me roubar dele, só não conseguia acreditar que eu estava viva ainda, depois de todo esse tempo.

O Moisés sorri e beija minha bochecha distraído quando eu volto a me aninhar contra ele, e eu sinto que tem alguma coisa errada. Não é ciúmes, é outra coisa. Eu consigo ver a mente dele trabalhando, mas ao contrário do normal eu não consigo entender o que é, identificar o que se passa.

A gente divide a comida com ele, e a Maria conta para ele resumidamente a nossa vida até ali. Ele dorme no quarto que era da Tainá, depois que nós passamos a madrugada inteira conversando, e todos vão se deitar também. Eu volto pro quarto, chorando finalmente por um motivo bom e sorrindo.

O Moisés me abraça apertado, me girando no ar, e eu me sinto tão esperançosa que acho que vou explodir. Então a gente fica abraçados, parados em cima do colchão, respirando juntos e eu falo e falo e falo, me sentindo esperançosa e animada e tão feliz que acho que vou explodir.

E eu pergunto se ele consegue acreditar, se ele consegue acreditar que tudo aquilo era real, e ele me beija e então diz que consegue, sim.

Então eu pergunto qual era o problema, já que ele parecia tão distraído.

E ele se afasta o suficiente para me olhar quando diz:

— Eu acho que você tem que ir embora com ele. Reencontrar a sua família.

E eu pergunto como assim eu preciso ir? Em que mundo ele não iria comigo? Todos eles não iriam comigo?

E ele me diz para ser racional. Que a Bruna não vai aguentar uma viagem tão longa, e a gente não tem força o suficiente para levar ela. Ela não pode ficar para trás.

E eu digo que então eu vou ficar. Que eu vou ficar com ele, e cuidar dela, e quando ela melhorar vamos todos juntos. A gente não precisa falar que os dois sabem da possibilidade de que talvez ela nunca melhore. Que é provável que ela nunca vai conseguir correr de zumbis de novo.

Mas ele me diz que não, que eu preciso ir logo. Que a Miranda e o Lucas estão me esperando, que é para eu imaginar o quanto eles vão ficar felizes e chocados em me ver. Que eu tinha que sair dali logo, agarrar aquela chance e sair. E eu sei o que ele pensa: que se a Bruna nunca melhorar então ele não quer que eu fique presa ali no prédio, continuando a definhar.

Eu digo que eu não vou sem ele.

A gente discute de verdade. Ele tenta argumentar, mas eu não quero ouvir. Se ele realmente acha que eu vou deixar ele para trás, então eu não quero ouvir. É a nossa primeira briga de verdade. Ele tenta me fazer entender mas eu não quero entender. Eu chego a falar para ele ir comigo, deixar tudo para trás. Mas não é sério, é claro. Eu não queria deixar ninguém para trás. Eu podia estar deprimida e louca, mas eles ainda eram a minha família. E eu sei que todo mundo deve estar ouvindo, mas a única coisa que faz com que eu me cale é pensar que a Bruna pode ouvir e pensar que nós queremos deixar ela para trás. A gente dorme ainda brigados.

No dia seguinte, assim que a gente acorda, ele chama o Rafael no nosso quarto enquanto os outros ainda dormem. Então a gente pergunta, objetivamente, se teria problemas se a gente fosse com ele, nós seis. Se a viagem seria difícil, quanto tempo demorava, se precisava de alguma coisa. A gente não pergunta se é perigoso, porque essa resposta é óbvia.

É ridículo e perigoso e infeliz ficar no prédio, e eu não ligo de ir para outro lugar ridículo e perigoso e infeliz, contato que eu pudesse ter o Lucas comigo de novo. Mas eu não tenho como obrigar os outros cinco a irem comigo, porque não valia a pena para eles trocar seis por meia dúzia.

Mas o Rafael faz tantos elogios à fazenda, e ele realmente parece tão melhor, mais saudável, que a gente acredita. Mas lidar com a logística é mais difícil. É uma viagem de três dias de barco, remando. Mas ele só tem uma canoa, e não dá para levar todo mundo. É preciso fazer duas viagens. E para chegar na canoa era um percurso de quase 4 horas caminhando, e considerando-se que ele estava muito mais saudável que a gente, para nós seis devia ser quase o dobro.

Com a Bruna, devia ser o triplo. Se a gente conseguisse escapar dos zumbis pelo caminho, o que já é muito difícil para pessoas saudáveis e com os dois pés.

No fim, nós fazemos uma reunião com todos. E eles decidem que querem se arriscar. Quanto tempo até a comida, que já tinha uma qualidade duvidosa e ocasionalmente insetos, estragasse completamente? Uma boa parte da comida tinha estragado completamente, e até os enlatados tinha um gosto duvidoso depois de todo aquele tempo. Ou até se outra doença, como a que matou Ana, acontecesse de novo naquele prédio infiltrado, mofado e fechado? Fica decidido que ele vai levar a Carol, o José e a Maria. O José discute e diz que ele e o Moisés deveriam ficar, porque vão conseguir ajudar a Bruna melhor do que a gente. Mas eu aviso que isso não é discutível, que eu vou ficar e se ele quiser ele pode ficar também. Ele diz que vai ficar, então.

Eu quero, desesperadamente, reencontrar a Miranda e o Lucas. Mas eu sei que eles estão bem e saudáveis, e definitivamente melhores e mais seguros que eu. Então eu escolho ficar com a Bruna, e com o Moisés, porque é o certo e porque eu não conseguiria nem em um milhão de anos deixar ele para trás.

José me olha, sério e desconfiado como eu nunca vi, trocando um olhar com o Moisés, e me pergunta se eu realmente não quero ir. Todos eles ainda têm medo de eu surtar de novo. Todos eles estão felizes por eu poder ter a minha família de volta. Eu respondo, decidida, que não. Todos nós sabíamos que ficar poderia ser um caminho sem volta.

E se eu fico a noite acordada, pensando em tudo que eu possivelmente ia perder com essa decisão, ninguém sabe além de mim. Mas como eu podia deixar a Bruna, que me ajudou e me fez companhia no apocalipse? E como eu podia deixar o Moisés, que era o único motivo de eu ainda estar viva e sã até ali?

 


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