Tudo que eu deixei escrita por alegrrdrgs


Capítulo 11
XI




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Nos meses que passam, nem eu nem o Moisés voltamos ao supermercado. E ninguém tenta nos convencer, também. Nós dois ficamos com medo e nervosos de pensar em sair do prédio depois de tudo que aconteceu com os zumbis, e o José e a Maria assumem as compras por um tempo. Às vezes eles revezam com as meninas, e só uma vez a Carol reclamou que eu e o Moisés deveríamos ir, mas nós não ligamos.

Ao invés disso, para contribuir, nós dois nos dedicamos a abrir janelas em todos os cômodos. O que é muito difícil e muito cansativo, e na época de chuvas vai dar um trabalho infernal, mas as paredes começaram a se encher de mofo e todo mundo começa a tossir, ficar fraco e cansado. Mais que o normal, no caso.

Então todo mundo cai doente antes que a gente consiga fazer pelo menos uma janela decente. Eu e ele não ficamos tão mal, e isso é provavelmente porque respiramos muito mais ar puro que os outros já que a gente fica tanto tempo na laje ou no escritório, e no nosso quarto a parede tem buraquinhos o suficiente para deixar o ar circular.

Todo mundo se muda pro escritório, que é a nossa enfermaria oficial, mas eu e ele não conseguimos dar conta de cuidar de todos. Eles tossem e ardem em febre e tremem o tempo todo. Toda vez que alguém dorme muito pesado ou fica muito parado eu mexo neles por que fico em pânico achando que eles morreram.

A gente tenta se revezar, mas eles são cinco e nós apenas dois, e mesmo quando tudo fica tranquilo eu continuo em pânico com medo do que vai acontecer se eu ou ele ficarmos doentes também. O José fica muito mal, muito mesmo. Ele tem tanta febre, que rola no colchão, falando coisas sem sentido e delirando. O Moisés precisa segurar ele no lugar quando ele treme demais. São dias assim, acordados o tempo todo e tentando dar conta de tudo, e tem noites em que eu só quero chorar no ombro dele, mas nem para isso nós temos tempo. Ele me pede para ficar calma, diz que vai ficar tudo bem, mas é claro que eu não acredito.

Então a comida acaba, e um de nós precisa sair.

Ele vai sozinho, e eu fico cuidando dos outros.

É, provavelmente, o pior momento que eu passei depois que assimilei que o apocalipse aconteceu. Eu olho pela janela a cada segundo, esperando ver ele voltar. A Bruna vomita e eu preciso gastar a nossa água para limpar, antes que o cheiro faça os outros vomitarem também. Então a Maria fica com uma febre cada vez mais alta, a ponto de ter tremores enquanto dorme e eu torço para não ser uma convulsão. O José me chama, mas eu não consigo entender o que ele diz porque ele tosse tanto que não completa uma única palavra.

Eu nunca tive tanto medo de alguma coisa acontecer com um de nós sete.

Ele não volta nunca, e anoitece mas ele ainda não voltou. Então eu fico sentada olhando fixamente pros carros e chorando, mesmo sabendo que ele não vai voltar no escuro. Na melhor das hipóteses ele vai voltar quando o dia clarear. Mas eu preciso que ele volte, e eu quero ir atrás dele, mas como fazer isso de noite, e deixando os outros para trás?

Eu até quero que eles me deem trabalho. Que eles gritem e chorem e tenham tremores tão fortes que eu vou precisar segurar eles nos colchões até se acalmarem. Qualquer coisa para manter a minha mente ocupada, para não pensar nele e em tudo que pode ter acontecido. Mas, é claro, justamente naquela noite todo mundo dorme numa serenidade invejável.

É a Ana quem acorda, acho que por ter me ouvido soluçar, e se arrasta para se aproximar de mim. Eu estou sentada no chão abaixo da janela, e ela se senta ao meu lado.

Ela me pergunta, preocupada, se ele ainda não tinha voltado. A testa suada, o rosto tão mais magro e exausto, mas o olhar preocupado com ele. Sempre com os outros, nunca com si mesma.

Eu digo que não, que só de manhã provavelmente. Tento convencer a mim, tentando convencer ela, que tudo estava bem e ele dormiu em algum lugar seguro até amanhecer. Que ele vai voltar para casa, e para mim.

E eu penso, que, é claro, ela já tinha passado por esse desespero e esse medo com o que poderia ter acontecido com ele outras vezes. A diferença é que sempre que ele tinha demorado assim ou dormido fora do prédio ele estava comigo, então eu não me preocupei.

Ela diz que ele provavelmente está bem sim, e que ele não faria nada de estúpido porque sabe que eu ia ficar preocupada. E que provavelmente ele estava escondido em algum lugar, esperando amanhecer para voltar.

Eu choro ainda mais. A Ana é tão estupidamente gentil que eu choro ainda mais.

Então eu pergunto por que diabos ela tenta me consolar, sem ser grossa nem nada, mas eu meio que tinha roubado o namorado dela. Ela deveria me odiar, se eu estivesse no lugar dela eu me odiaria.

Então ela tosse, bastante e uma tosse seca que me assusta quando cai no chão, e eu ajudo ela a se sentar de novo, encostada na parede ao meu lado. Quando se recupera, ainda fazendo barulho quando respira, ela me diz que ele me ama, e ela ama ele, e é simples assim. Que ela sempre soube. Que todo mundo sabia, mas ela esperava que ele nunca tomasse uma atitude sobre isso.

Eu lembro daquela madrugada, tanto tempo atrás, quando ele disse que nós oito éramos o poema da quadrilha.

Ela diz que me odiava, tanto quanto possível. Que tentou me odiar mais, mas toda vez que ela ouvia ele rindo, gargalhando, ela me odiava menos. Porque ela tinha até esquecido o som da risada dele durante o apocalipse.

Eu falo que queria ter me apaixonado por outra pessoa. Pelo José, porque seria mais fácil. Pela Bruna, que já era minha amiga. Que se eu pudesse eu teria me obrigado a gostar de outra pessoa.

Ela fica em silêncio, os olhos fechados e a respiração barulhenta, e eu até acho que ela dormiu. Mas então ela abre os olhos, com algum esforço, e diz que lembra a primeira vez em que eu fui trabalhar. O jeito como ele me olhou, curioso. A primeira vez em que eu fugi dele, depois do trabalho, recusando a carona porque disse que ia me encontrar com alguém.

Os olhares por cima de ombros, quando ninguém notava. Ele me olhando pela parede de vidro enquanto eu trabalhava no computador. Como ele se policiou depois que começou a namorar, mas era tarde demais porque ela já tinha percebido. Que ela ficava feliz toda vez que eu recusava um convite para sair com o grupo depois do expediente. Que ela torcia tanto pra eu ir embora logo, mesmo quando teve certeza que ele não iria tomar nenhuma atitude.

E se ninguém notava nada antes, ficar confinados naquele prédio deixou bem claro para todo mundo. Todos os dias ela esperava pelo momento final. Mas a gente demorou tanto que ela até acreditou que ele não teria coragem. Ironicamente, ela diz, o problema dele era a lealdade... Ele não gostava de deixar ninguém.

Eu penso em mentir, em dizer que a gente de fato esperou. Que ele nunca me beijou no corredor escuro enquanto ela dormia de madrugada, que nada aconteceu no supermercado enquanto ela chorava pensando que nós dois estávamos mortos. Mas eu não quero mentir.

Eu só peço desculpas.

Ela está diferente nessa noite. Mas é muito mais fácil conversar com ela assim, sem ter que pisar em ovos. Então a gente conversa sobre ele, sobre ela, sobre o medo e sobre a doença. Ela diz que ainda ama ele, mas que ele estava mais feliz agora, e que se todo mundo ia morrer então era melhor se ele fosse feliz antes. E eu também.

Eu pergunto se ela não acreditava mais que ainda tinha alguém vivo além de nós sete, e ela ri tão alto que tem uma crise terrível de tosse, e eu preciso segurar ela. Ela arde em febre. Então ela diz que não, que não acreditava em mais nada, mas que a gente tinha sobrevivido muito mais tempo do que ela imaginou. E que ela se sentia quase bem quando olhava todos nós reunidos ali, porque qual a chance de pessoas tão diferentes que tinham como única coisa em comum um trabalho horrível em horário comercial fossem sobreviver juntos até ali, sem surtar e sem tentar se matar?

Então ela deita com a cabeça no meu colo, e me pede para cantar. Eu canto a música que eu me lembro, que a minha mãe cantava, e ela fecha os olhos.

Ela me pergunta se eu amo ele. Se eu ainda ia amar ele se o mundo fosse normal e eu estivesse formada e fosse embora e sumisse no mundo.

Eu digo que sim, e isso parece fazer ela relaxar.

Ela diz que o meu irmão era uma graça, um elogio que eu não respondo. O Lucas morreu e agora o Moisés vai morrer também, e é só nisso que eu consigo pensar.

De manhã cedo, quando o Moisés pula pela janela, eu ainda estou acordada. E eu me jogo nos braços dele chorando e abraço ele forte, e ele me abraça também e fica repetindo que estava tudo bem, as palavras rápidas explicando que precisou ficar escondido, que nada tinha acontecido, que ele estava bem. Graças a Deus ele tinha voltado.

Eu seguro o rosto dele e olho cada detalhe. O cabelo comprido demais, a cicatriz no nariz, a poeira do supermercado grudada na pele. O meu reflexo nos olhos dele, as lágrimas de alívio e de medo que caem pela sua bochecha, e penso "obrigada Deus, obrigada por ter me enviado ele no meio de toda essa merda, senão eu não conseguiria. Eu simplesmente não conseguiria."

É um remake ridículo de todas as vezes em que a Ana abraçou ele aqui nesse escritório, todas as vezes que ele demorava pra voltar, mas eu não consigo evitar. Agora eu sei exatamente o alívio que ela sentiu por ver ele vivo, bem e em casa.

O corpo da Ana ainda está no mesmo lugar. Ela morreu naquela noite, com a cabeça no meu colo, segurando a minha mão. Esperando comigo que ele voltasse para casa.

*

Depois que a Ana morreu, ficamos seis.

É horrível.

Existe a parte horrível emocional, e também existe a parte horrível prática. Na emocional, eu me sinto muito mal por ter feito ela ainda mais infeliz que o necessário no meio do apocalipse. E, é claro, todo mundo que está doente fica nervoso, triste e esperando para ver quem seria o próximo. E tem o Moisés, que se sente ainda pior que eu. Eles namoraram por um bom tempo antes de tudo acontecer. Ela não era uma desconhecida, não era uma colega de trabalho, e ele amou ela por um bom tempo.

Na parte horrível física, a gente não tem o que fazer com o corpo. O óbvio é que a única coisa que a gente não quer fazer é jogar pros zumbis. Mas não tem onde enterrar, e a gente fica com medo de queimar e fazer com que todo mundo (que passava o tempo todo tossindo e mal respirava) fique ainda mais intoxicado.

Então a gente faz o racional. Reorganiza a comida agora que temos menos uma boca, para planejar quando ele vai precisar voltar ao supermercado. Não ajuda o fato de que o rio está subindo de novo. A gente carrega o corpo dela para a laje, para jogar na rua de trás, onde a gente não veria sempre que olhasse pela janela. Ela está tão magra que é magra mesmo em comparação com nós dois, que estamos fracos e desnutridos, e quando eu não aguento e me sento na escada, chorando, o Moisés carrega ela sozinho escada acima, como uma noiva.

Ele me espera na laje, e quando eu subo nós fazemos juntos. O corpo faz um barulho alto quando cai no chão, e nenhum de nós olha para ver se os zumbis aparecem. Mas não é preciso ver, porque, como eu já falei, é um silêncio ridículo. Eu consigo ouvir a Bruna tossindo no andar de baixo e a Maria choramingando, e eu consigo ouvir a carne da Ana rasgando, as bocas mastigando, e sinto o cheiro de sangue. Quando o vento fica mais forte e leva o cheiro para outra direção, eu dou graças a Deus.

Então vem a parte menos racional, e a gente se abraça e chora soluçando na laje, longe dos outros, até anoitecer. E eu peço desculpas e desculpas e desculpas, e a gente não precisa conversar para saber que eu tô falando com ela e com ele e com os dois enquanto um casal.

Mas eu não posso perder o controle. Porque ela tinha morrido, mas os outros quatro ainda estão doentes. E se todo mundo morresse? O que a gente vai fazer? A gente vai conseguir sobreviver, só nós dois, cercados de zumbis jogando os cadáveres dos nossos amigos na rua? Eu não quero pensar nos pormenores, mas é impossível ignorar.

A gente desce nas escadas no escuro, e depois de anos naquele prédio sem energia eu poderia ir para qualquer lugar de olhos fechados. A gente vai pro escritório sem conversar, ainda chorosos, e eu me sento ao lado do José para ver se ele ainda está com febre. Todos eles estão, mas pelo menos eles dormem pesado. Eu não quero pensar demais, porque eu vou surtar se imaginar que eles podem estar mortos e não dormindo.

Eu não quero pensar.

Eu me encolho na parede oposta, a cabeça encostada nos joelhos e tentando me lembrar como respirar, e tentando chorar baixinho pro caso de eles estarem dormindo, e não mortos. Eu preciso me controlar. Eu preciso me controlar e aguentar porque assim eles não vão se recuperar. Preciso aguentar e cuidar deles e não surtar, exatamente como eu fazia com o Lucas. Digo pra mim mesma que eu preciso agir como se eles fossem o Lucas, pelo menos por enquanto. Eu só vou me permitir desabar quando tiver essa opção.

E o Moisés fica calado, em algum outro ponto do escritório, ainda em choque. Ele não disse uma palavra desde que viu a Ana morta. Ele também está lidando com a perda, com toda a merda e o medo do que a gente está vivendo. Eu não espero que ele venha ao meu socorro, porque ele também precisa de socorro. E eu iria até ele se eu não estivesse afogada em mim mesma. O que ele poderia me dizer para fazer as coisas ficarem melhores, num quarto com nossos amigos à beira da morte, num prédio cercado por zumbis devorando a carne da Ana, numa cidade fantasma onde só sobramos nós seis?

Mais uma vez eu quero a Miranda comigo. Não foi a primeira e não vai ser a última, mas dessa vez é mais forte. Eu quero o colo da minha irmã.

Em algum momento eu durmo, sentada contra a parede, ainda sem me aproximar dele ou ele de mim. 


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