Tudo que eu deixei escrita por alegrrdrgs


Capítulo 10
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O Moisés conversa com a Ana.

Eu me sinto mal, mas eu me sentiria pior se ficasse mentindo para ela e me encontrando com ele às escondidas. Porque depois da nossa ida ao supermercado, simplesmente não tem como evitar que acontecesse de novo.

Eu não quer evitar. Eu me sinto viva, me sinto normal, me sinto quase feliz, e eu não quero evitar. Não depois de tanto tempo sendo tão infeliz.

A situação é uma droga, basicamente.

Eu fico no meu quarto enquanto eles conversam, mas eles não se esforçam ou se importam em falar baixo o suficiente para que o resto de nós não escute, o que normalmente já seria difícil, mas com a curiosidade fica ainda pior.

Mas não é tão feio quanto poderia ter sido. Não há gritos, pelo menos. Eu penso em ir até lá e me explicar, mas decido ficar quieta. É o tipo de conversa que precisa acontecer entre eles dois.

Eu posso ouvir as vozes. Todo mundo vai para a laje para dar privacidade aos dois, mas eu fico no meu quarto porque quero estar aqui quando ele sair. A voz dele, a voz dela. Um tom de questionamento, uma justificativa. Uma acusação. Eu posso ouvir ele pedindo desculpas. E então eu posso ouvir o silêncio. Os segundos passam, e eu imagino a cena. Ela de um lado, ele de outro, o quarto bagunçado e escuro. Eu imagino ela atravessando o corredor e vindo até mim. Mas ela não vem.

Mais silêncio, então palavras que eu não consigo entender. Ele começa a falar que não, uma negativa que ele não termina. Então ela pede silêncio. Pede para ele parar de falar. Eu posso ver a cena: ela com as mãos no rosto, irritada. Eu continuo deitada na minha cama, querendo estar em qualquer lugar bem longe dali.

Quando ele finalmente vem até mim, fechando a porta atrás de si, e me abraça na cama, nenhum de nós fala nada. Ao invés disso eu me aconchego nele e ele em mim, e é estranho ter a liberdade para fazer isso agora, com a Ana no mesmo corredor. Mas eu não quero me afastar e não quero que ele se afaste. Quanto tempo a gente perdeu se afastando?

Ele sai do quarto deles e se muda oficialmente para o meu no mesmo dia, antes de escurecer. Eu até penso em sugerir que ele vá pro quarto vago por um tempo, mas de que ia adiantar? Ele ia fingir ficar solteiro por uma semana e depois a gente ia fingir ter se apaixonado do nada, quando só existiam outras 6 pessoas no mundo, e uma delas era a ex dele? Não ia enganar ninguém. E eu não me incomodo o suficiente com os outros para perder tempo.

Mas eu me incomodo com o fato de a Ana ficar triste. Só que é aquela coisa: entre a tristeza dela e a minha...

Eu me sinto mal em pensar assim, mas é tudo que eu consigo pensar. A Ana é bonita, divertida, inteligente e gentil, e ela não deveria passar por isso. Nenhum de nós deveria passar por nada do que passou nos últimos anos, mas a gente passou. E eu não queria tirar isso dela, mas eu queria ele para mim. E se ele me queria também, então pelo menos duas pessoas iam conseguir um pouco de paz.

É egoísmo, mas eu decidi ser egoísta.

Nos primeiros dias, nós dois não saímos da cama. Não de um jeito romântico, mas porque o ataque dos zumbis e ficar trancado num cubículo por dois dias fodeu nós dois. O meu ombro ainda está doendo e o meu pé também, e ele sente muita dor no abdômen, onde o zumbi tinha caído por cima dele. Além disso, a gente está tão desidratado que mal consegue levantar. E os dois estão nojentos de sujeira, suor e sangue de zumbi.

Todos os dias alguém leva comida e água para nós dois, e olha de vez em quando para ver se a gente precisa de alguma coisa. A Ana não aparece, mas eu achei justo e que ela precisava digerir tudo isso. Ter que vigiar nós dois era uma coisa pela qual ela não precisava passar.

Quando eu melhoro o suficiente a Bruna se oferece para me ajudar a tomar um banho. Ela parece realmente arrependida de como tinha me tratado, e até me deu um pouco da água que tinha guardado. A gente vai para a laje e ela me ajuda a me esfregar com um pano molhado em água com sabão. Eu fico quase limpa. Não dá pra lavar o cabelo, mas é melhor do que antes. E então ela me senta e diz que tinha sido idiota e ficado com raiva, e se nós dois queríamos ficar juntos então a gente tinha que ficar, porque se ela tivesse a chance de ficar com a Júlia no apocalipse ela iria se agarrar nessa chance de todas as maneiras.

Isso me faz ficar um pouco menos culpada. A questão é que não importa o quão culpada eu me sinta, eu não estou disposta a desistir dele. E isso sim faz com que eu sinta culpa. Eu digo isso para ela e ela me diz para não me sentir assim. E quando ela me abraça eu sinto que recuperei a minha melhor amiga do apocalipse. Eu quase consigo ouvir, em um lugar na minha mente, os protestos ciumentos da Miranda.

Ela me ajuda a descer um pouco de água para o meu quarto em um pote, e eu me sento ao lado do Moisés aproveitando que o quarto ainda tem um pouco de iluminação. Ele dorme, e ainda tem um pouco de febre, mas menos que antes, então eu fico mais tranquila.

Eu limpo ele como consigo, mas não vejo a hora de cair outra chuva para a gente poder tomar um banho decente. Eu molho uma camisa e então esfrego ela na barra de sabão, e vou passando na pele dele com cuidado para ele não acordar. A camisa fica imunda, mas dá para tirar quase toda a sujeira dele. Mesmo que não tire toda, pelo menos nós dois ficamos cheirando a jasmim depois disso.

Quando acabo, percebo que ele acordou e me olha, dando um sorriso que não deveria mexer tanto comigo, considerando-se a situação.

Ele brinca que eu sempre quis dar um banho nele, e eu concordo. Ele diz que não vão faltar oportunidades, então eu deixo tudo de lado para me deitar do lado dele. Os dois acabados, mas os dois felizes por estar ali e não mais no supermercado.

Moisés me diz que nunca mais vai sair do prédio. Eu concordo, e digo que nunca mais vou sair também. Então dou um beijo e mando ele ir dormir. Já tinha começado a escurecer e ele logo dorme, mas eu fico acordada mais um pouco. Ouço as portas dos quartos fecharem, e meio longe e abafado, eu consigo ouvir os soluços da Ana, como se ela estivesse chorando contra os travesseiros.

Fica um pouco mais difícil conseguir dormir depois disso.

*

As coisas ficam bem depois que o choque inicial passa. Se alguém chega a ficar surpreso em nos ver juntos... A gente passa os dias cada um no seu quarto, ou largados na laje sem ter o que fazer. Se deita cedo, logo que escurece, e acorda cedo também. A rotina de sempre.

Mas é diferente também, ao mesmo tempo. Porque quando eu passo os dias no quarto, é com o Moisés do meu lado, conversando e me distraindo ou simplesmente em silêncio me olhando com uma carinha de apaixonado que é muito diferente da expressão cansada e triste de sempre.

Ele gosta de me ouvir falar sobre tudo, e eu gosto de me sentir ouvida. Eu conto sobre a adolescência solitária ao lado da Miranda, as piadas e os dramas e como eu sentia que ela era a única pessoa que me amava de um jeito saudável, a única com quem eu sempre ia poder contar. Sobre o Lucas, como ele mudou a minha vida por completo, e como eu amava ele acima de todas as coisas.

Ele ouve tudo com atenção, sempre perto de mim. E me fala também sobre os seus pais, já na meia idade quando ele nasceu. Como ele nunca planejou ir para lugar algum porque tinha a responsabilidade de ficar com os dois na velhice, a responsabilidade de ser filho único. Como ele me via estudando e me esforçando, com mil planos para o futuro, e imaginava que queria exatamente aquilo. E como ele me queria, também.

A gente cria o hábito de ver o sol se pôr e o sol nascer pela janela no escritório, como tinha feito com a lua logo depois que eu surtei. Eu durmo e acordo ao lado dele todos os dias, e se nos primeiros dias a tristeza da Ana me afeta eu aprendo a lidar com ela porque é um preço pequeno a se pagar, por mais errado que possa parecer. Eu não transpareço isso para os outros, é claro.

Mas eu não preciso me disciplinar ou ter medo de me expressar com ele. E ele se sente mal por ela, também, mas a gente se olha e os dois sabem que se esse era o preço a se pagar então a gente pagaria. A gente pagaria porque tinha momentos em que ele me fazia gargalhar e eu até me esquecia de todo o resto. E quando ele me beijava era tão certo. E quando a gente dormia abraçados o frio não existia, nem a fome. Teria sido bom ter ele comigo antes, tão antes de tudo isso... Eu poderia ter tido uma vida muito diferente com ele ao meu lado antes dos zumbis aparecerem.

Eu até pensei em conversar com a Ana, mas o que eu diria? Desculpa por ter me apaixonado pelo seu namorado no meio da merda do apocalipse?

Ela continua sendo educada e gentil e me tratando normalmente, mesmo que seja bem óbvio o quanto ela está triste. Mas não tem nada que eu possa fazer, além de também ser educada e gentil e tentar não me afetar com a culpa. A Carol e a Maria foram mais receptivas do que eu imaginei também, mas acho que a essa altura todo mundo já começou a aceitar que a gente vai morrer ali mesmo, então qualquer filha da putagem ficava mais fácil de ser aceita. Ou talvez elas simplesmente estejam sendo educadas, porque às vezes eu percebo a Carol olhando feio para nós dois quando pensa que a gente não está notando.

Eu fico com medo que o José se afaste (de mim e do Moisés), mas ele se mantém um amigo fiel e dedicado a nós dois. E eu até acho que a paixonite dele passou, ainda bem. Eles ainda ficam juntos na laje conversando sobre os velhos tempos, mas só por garantia eu decido me afastar um pouco quando eles estão juntos. Já é cruel com a Ana, não precisa ser cruel com mais uma pessoa. A gente vai morrer aqui, mas eu posso reduzir os danos que causo, na medida do possível.

Uma tarde, eu e o Moisés estamos deitados na laje, olhando para o céu e conversando sobre a vida pré-apocalipse. Eu confesso que tive uma queda por ele naqueles tempos, mas estava tão focada em ir embora que não me sentia disposta a fazer nada em relação a isso. Então eu pergunto se ele acha que nós dois ficaríamos juntos em algum momento, e ele dá um sorriso e me aperta nos seus braços quando me diz que é claro que sim.

Ele ri quando responde que seria de um jeito mais normal. Diz que me chamaria para sair, e eu ia aceitar, finalmente. Então nós iríamos ao cinema no primeiro encontro, e ele ia chegar atrasado, o que me deixaria com raiva. Mas eu ia ficar tão cegamente apaixonada que iria concordar com um segundo encontro. Que ele me beijaria no carro, a caminho de casa, e iria descer para cumprimentar o meu irmão.

Eu comento que o Lucas gostava de sorvete de chocolate.

Ele diz que iria comprar o amor do Lucas com sorvete, então. E iria comprar o meu amor com o amor do meu irmão. Eu rio e digo que não seria preciso muito esforço.

Eu pergunto e então, o que iria acontecer depois? E ele pinta um cenário tão bonito que eu até acredito: nós dois passando uma tarde nadando no rio com Miranda, ele lendo harry potter só porque eu gosto, virando a noite acordados para ver o sol nascer. Me diz que seriam meses de jantares e piqueniques e passeios, andando de carro e de paixão. Indo ao cinema e ficando estupidamente feliz toda vez que me visse, só de olhar para o meu rosto. Que me apresentaria para os seus pais, e nós dois iríamos levar o Lucas para andar de pedalinho. E sair para jantar e depois me beijar a noite inteira. E iria tirar quinhentas mil fotos da minha formatura e organizar uma festa.

E então, ele diz, eu iria conseguir um emprego perfeito que eu sempre quis, bem longe dali, e ele iria me deixar no aeroporto. E ia chorar o caminho inteiro, mas ia querer que eu fosse. Ia me obrigar a ir, se fosse preciso, porque eu merecia conseguir tudo que eu sempre quis. E então ia continuar apaixonado por mim pelo resto da vida dele, até a morte.

Eu digo que ele pode ir comigo, mas ele sorri e balança a cabeça. Ele era mais leal do que eu, nunca teria deixado os pais ali, nem em um faz de conta.

Nós ainda estamos nos beijando quando a Bruna aparece, dizendo que vai fazer as compras com o José antes que a água suba de novo, e pergunta se eu vou querer alguma coisa. Ela revira os olhos por nos ver abraçados e pergunta se nós dois somos siameses agora, e eu rio quando ele diz que sim.

 


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