Pétalas no poço & Desejo escrita por Shalashaska


Capítulo 3
Raposa




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Raramente o pai de Carmina retornava sem aviso. Quando isso ocorria, não era bom sinal — mas, se ela tivesse alguém com que pudesse ser amargamente sincera, não era bom sinal algum o pai dela botar os pés naquela casa, fosse com ou sem aviso. Sua mãe dizia que ele era um homem honesto, sem predileção pecaminosa à boemia ou obscenidades, entretanto Mina não enxergava grandes méritos em qualidades que deveriam ser o mínimo e, principalmente, em qualidades que podiam ser cumpridas sem esforço. Talvez sua mãe insistisse nisso para justificar seu casamento para si. Mina pensava que o fim daquele casamento não seria ruim de toda maneira.

O fato é que Mina previa outra tentativa de negócios fracassada, pois não seria a primeira. A descrição sucinta de seu pai por ele mesmo, sugeria alguém estratégico, competitivo e com aptidão para fazer barganhas cobiçadas entre os homens. Mas Mina ainda limpava o chão e servia comida para comprar o próprio pão, o que levava-a a discordar.

Para sua surpresa, o humor intratável dele, desta vez, era um bom humor.

“No oeste, eu conheci meia dúzia de homens interessados em ciência e nos negócios. É boa combinação, sempre digo, quando vem acompanhada de dinheiro. Estão atrás de novas variedades de chá que possam lançar uma nova moda. E para a sorte deles, temos uma Casa de Chás.”

Ele tinha vindo à cavalo e tirou suas botas de montaria na sala, para se aquecer na lareira. Havia pegado chuva, umidade, barro no caminho. Precisava vir rápido para avisá-las, pois tinha oferecido pousada e comida para aqueles senhores. Mina pensava muito enquanto observava a mãe se preocupar com as louças e o serviço de jantar de prata; pensava muito mais ao encarar as botas enlameadas do pai no tapete.

Havia chá preto, às vezes com mel e cubos de açúcar não tão alvos. Os biscoitos eram mais rígidos que o ideal e a clientela comum resistia ao impulso de molhá-los no chá para amolecê-los. Só a porcelana tinha requinte, era importada e digna de nota, caso aqueles senhores da ciência se interessassem por peças que podiam já estar fora de moda.

“E então?”

“E então haverá trabalho logo cedo, pois eles não tardam a chegar. Nada de moleza, a casa precisa estar limpa e cheirar bem. Inclusive, deve cheirar a comida recém saída do forno. Pegue uma galinha para o almoço e os ovos para um bolo ao final da tarde. Deixem as palavras por minha conta.”

Ao menos com ele, Carmina se dava a liberdade de não anuir, nem com acenos, nem com murmúrios. Apesar de já se planejar para acordar no dia seguinte mais cedo e torcer o pescoço de uma ave, a criada tinha a satisfação de estar certa. Não daria certo. Chá preto era tão raro quanto carvão, havia em qualquer casa. Ervas mais finas para incrementar o chá eram ocasionais, sendo servidas em doses restritas para durar. E, embora o público ali gostasse, alguém de negócios de certo teria olhos para um público mais restrito e que pudesse pagar melhor.

Carmina foi dormir madrugada adentro. Limpou a lama seca e endurecida pelo calor da lareira, poliu a prata. Quando adormeceu, estava exausta, mas havia uma dose de afronta imaginada ao cogitar que tudo estaria impecável, mas seu pai e patrão estaria, de novo, errado. 

Que tolice, Mina se recriminava. Não por censura, nem por dó. Por burrice. Nada arranharia o ego dele. Sempre existiria trabalho para ela e sempre existiriam palavras jorrando pela garganta de seu pai.

Nos fundos da propriedade, onde hóspedes batiam os olhos apenas pela visão bucólica e o vento não levava o cheiro, o galo despertou na manhã seguinte. As galinhas, não. Ao ver a os corpos dilacerados e sangue no galinheiro, Mina correu até seu pai para comunicar:

“Uma raposa matou as galinhas. Só sobrou o galo e duas dúzias de ovos.”

Ele sequer hesitou.

“Mate o galo para o almoço de hoje. Poupe uma dúzia de ovos e peça para algum vizinho ceder galinhas para chocar. Virão mais galinhas e, com sorte, um galo. Com o dinheiro desse negócio de chás, não vai nem importar.”

E, de novo, ele sequer se moveu para resolver a questão dos corpos dos animais, o rombo no galinheiro ou o fato de existir uma raposa à espreita. Mas a criada não esperava outra coisa. Carmina preferiu usar um avental já sujo para lidar com o sangue e quase se feriu ao abater o galo, pensando o quanto era conveniente para outros decidir quando ela era muito menina para algo ou já uma adulta, quando era mulher demais para uma tarefa e máscula o suficiente para outra.

Os homens vieram, mas não para o almoço. Carmina sentia o seu estômago pesar quando enfim o jantar foi servido, pois com o trabalho ocupara-a o bastante para que sua fome fosse saciada apenas por bolachas duras entre um serviço e outro. No entanto, enquanto todos conversavam sobre botânica, chás, boa educação e dinheiro, ela se mantinha de pé na sala de jantar, esperando tudo acabar.

O grupo não era grande. Além de seu pai e sua mãe, havia mais cinco homens de idades variadas: dois senhores com cabelos já grisalhos, um de meia idade e, por fim, dois jovens. Todos eram bem vividos, relataram viagens e falaram de coisas que o dinheiro poderia proporcionar, embora mantivessem a discrição de não parecerem demasiado gananciosos. E por que vieram para tal região? Como lucrariam, se não haviam chazais? Ora, o lugar tinha esse Festival das Flores, uma primavera bonita, uma lenda curiosa sobre um poço e uma casa de chá. As pessoas se apaixonavam por produtos que tinham história.

Seu pai concordou com ênfase, falando como um connoisseur.

"E nem sempre é necessário um chá novo. E sim uma nova forma de fazê-lo! Para nossa sorte, eu trouxe mais para nosso estoque. Mina, prepare o chá da noite."

Ao voltar à cozinha, ela reparou nos pacotes que nunca tinham em casa. Nunca.


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