Pétalas no poço & Desejo escrita por Shalashaska
Seria natural sentir alívio ou alegria por encontrar variedade de ingredientes para preparar um chá, mas os sentimentos de Carmina eram mais pesados e irritadiços. Canela, três vidros de xarope, incluindo um de bordo, gengibre, frutas e flores secas. A água fervia junto com seus pensamentos. Seu pai teria se endividado para comprar aquilo? De onde veio o dinheiro para isso tudo?
Ela examinou bem as próprias mãos, buscando respostas. Tinha suas suspeitas.
Quando ela levou a bandeja de prata com as xícaras, mal ouviu a conversa do grupo. Tinha começado a chover de novo e o barulho era forte. Carmina almejava ser mais discreta, mas vez ou outra, encarava o pai com o canto dos olhos. Servia cubos de açúcar enquanto imaginava-se com a faca no pescoço dele, gritando para que abrisse logo o bico, senão abriria a garganta. No entanto, se deteve e voltou à sua posição no canto do cômodo, tão parada e à disposição quanto a mobília. Agora eles estavam na sala de estar, acomodados em poltronas e no sofá na frente da lareira. Sua mãe havia se retirado.
De repente, seus pensamentos foram interrompidos por um elogio no ar. Uma atmosfera de admiração e concordância de que sim, era um sabor peculiar e deveras cativante para um chá. Estavam certos em vir até aquela casa e os olhos de todos faiscaram como se enxergassem o reflexo de moedas. Rapidamente, seu pai exigiu:
“Mina, querida”, sua voz deixou-a enjoada. Preferia beber o xarope a ouvir aquela falsa doçura, “Explique melhor como fez o chá.”
Ainda era chá preto, ela explicou, porém mais leve. Com xarope de cereja, uma pitada de canela e pétalas. Foi necessária muita força de vontade para evitar cuspir na água, mas ela não disse esse detalhe da receita. O chá era comedido, porém rico e levemente vermelho.
Apenas com o olhar, o pai de Carmina a censurou por ser feito de maneira simples em comparação a potencialidade dos ingredientes, sem deixar de perceber que as pétalas e o xarope de cereja eram itens locais e mais baratos em relação às especiarias. Era um passo arriscado, mas a aprovação do grupo salvou-a de reprimendas. Por enquanto.
Logo começaram a falar de outras coisas, como a chuva os impedia de sair e como torciam para que ainda houvessem flores nas árvores após a tempestade. Seria péssimo ter um Festival das Flores sem elas.
“Oh, não! As flores daqui são resistentes. Precisam saber das histórias.”
Eles falaram sobre as razões reais e fictícias que levavam as flores serem tão vermelhas. Os rapazes, interessados em botânica e Ciência, falaram de pigmentos e anatomia das flores, os mais velhos tinham ouvidos para as lendas, ainda que objetivo fosse lucrar com elas.
Mina ouvia-os sem diferenciar um comportamento soberbo do outro.
“E o tal poço dos desejos?”
“Ora, basta jogar moeda e fazer pedido”, um deles disse, “Veja, houve um sujeito que fez um pedido quando criança e a moeda emperrou nas pedras. Ele recebeu o pedido anos depois, quando a moeda caiu na água. Ganhou… um irmãozinho.”
“Não, ouvi que é necessário beber a água do poço. Todos os desejos já estão ali.”
“Imagine beber e manifestar todos os desejos de uma só vez? Muita gente morreria, se casaria ou até voltaria a vida.”
O pai de Carmina riu, após soltar uma baforada do cachimbo.
“E todo o ouro da rainha estaria nas mãos de uma pessoa.”
Ela inspirou fundo e logo se arrependeu, devido a fumaça. Andou levemente para o outro lado cômodo, sem ser vista. Seu pai era capaz de descer o poço para pegar as moedas. Ou melhor, era capaz de obrigá-la a isso.
“Já se perguntaram quem concede os desejos?”, um rapaz questionou, ligeiramente alarmado, “Um anjo? Um espírito?”
“Se sim, não é nenhum bom. Qualquer um já ouviu falar sobre o humor vil de um poço. Um homem quis passar o resto da vida nos braços de uma mulher rica e virou um cão.”
”É como se fosse um gênio na lâmpada, então? Uma fada em lacrada em vidro ou ferro?”
“Seus tolos. Quem concede os desejos é uma alma morta.”
“A alma de quem?”
Silêncio. Mina foi obrigada a admitir que não tinha pensado nisso. O poço ficava após longos minutos de caminhada entre as árvores, era antigo e abandonado. Quem iria lá, senão para morrer ou para pedir algo em desespero, fosse pra espírito ou demônio?
“Não me surpreenderia se fosse uma mulher caprichosa, condenada a realizar todos os desejos exceto os seus.”
“E quem a matou? O que a fez cair poço abaixo, só para atender o desejo de todos?”
“Talvez o próprio reflexo.”
Seguiu-se uma explosão de risadas, cada um deles cúmplice do outro. Era só um grupo de homens, no mínimo, rasos e com dinheiro — ao menos um deles tinha mais pretensão do que algo material de fato. Eles podiam falar sobre Ciência ou lendas, mas ao fim usaram uma referência a Narciso para uma piada tola. Soava quase como uma competição. Que ironia! E quão pouca etiqueta eles exigiam entre si, embora fosse esperado polidez durante chás da tarde.
Ela decidiu que já era hora de retirar as louças do chá, apressando-se em terminar o serviço e seguir para a cozinha, depois para o quarto. Em breve, o interesse pelo chá daria lugar ao apetite pelo álcool. Nesse ponto, as conversas tornavam-se mais vulgares e então uma criada já não era mais necessária.
Ao dar a última conferida nos quartos onde aqueles cavalheiros dormiriam, Carmina pensou em mulheres, água e poços. Uma mulher deu a Excalibur ao rei Arthur, mas ninguém se questiona sobre a sua condição de estar no lago e distribuir espadas. E seria ela própria um espírito também por atender caprichos variados? Faltava tacar-se no poço, quem sabe. Ela riu em silêncio e passou na cozinha para comer antes de dormir. Tomou o tal chá.
Deveria ser mais intenso, mais forte e mais vermelho.
Talvez só um espírito para atendê-la.
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