Pétalas no poço & Desejo escrita por Shalashaska


Capítulo 2
Versos violentos




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Vivian Benito havia partido no dia anterior e a única coisa que restava à Mina era a ansiedade de procurar o lugar certo para guardar o medalhão. Debaixo do colchão foi a solução mais rápida. Saudades da hóspede, não sentia; não tinha tempo para sentir: o seu dia de trabalho começava cedo, sendo a primeira a acordar para tirar as cinzas da lareira central da casa e do forno. Mesmo com a Primavera chegando, o frio do vento lá fora ainda esticava suas mãos durante a noite — e é claro, o forno sempre precisava de lenha. Ela esquentou a água para o chá diário, esquentando também um pedaço generoso de pão do dia anterior. 

A rotina de limpeza e cuidados com a casa, especialmente a cozinha, não eram fáceis e Mina se flagrou irritada pela demora da contratação de empregados de novo. Já era hora, a casa encheria logo — afinal, as flores já estavam desabrochando. Antes de partir para arrumar a sala e acender velas aromáticas, Mina deu-se uma pausa para comer com calma e olhar pelos vidros da janela da cozinha.

Não era estranho madame Vivian se alarmar com o fato da patroa de Mina ser a própria mãe, pois a fama da aspereza ficava com as madrastas. Mas, sendo justa, sua mãe seria considerada uma boa patroa na maioria dos lugares e pela maioria das pessoas. Só não era uma boa mãe. Afinal, uma patroa seria esplêndida por priorizar as vestes de boa qualidade e uma fina educação de uma criada, mas seria reprovável para uma mãe dignar a própria filha ao serviço doméstico pesado dia e noite, sem remuneração. Era para a casa. Para a família. Ainda assim, quem vestia o uniforme e passava horas de joelhos esfregando o chão, era Mina.

O tom das flores parecia mais rubro naquele ano. 

Carmina era o nome inteiro dela, supostamente inspirado na cor vermelha das flores típicas da região. No entanto, segundo o que viera estudar pouco depois, carmina era o plural de “canção“ em latim e sua semelhança sonora com carmesim ou carmim não indicava exatamente a mesma origem etimológica. Para a maioria das pessoas, principalmente os hóspedes, ela era apenas Mina. Na realidade, não importava do que a chamassem ou se sequer soubesse a origem do nome. Ela própria não avançara nos estudos de latim depois que seu pai faliu.

Tópico proibido e sempre presente.

A casa era da família de sua mãe e a ideia de “casa de chás” também foi dela. Não era uma ideia ruim, pois tinha louças e todos os aparatos necessários para um evento fútil e agradável como chás da tarde. E, enquanto seu pai viajava em tentativas de negócios que jamais davam certo, Mina poderia trabalhar. As senhoras que apreciavam os requintes de tais chás eram exigentes, mas ela havia recebido uma boa educação para não fazer a mãe passar vergonha, nem os bolsos do pai ficarem vazios.

Haviam se passado anos. Nada mudara. Sua mãe continuava recebendo hóspedes e visitas para chás, o pai não parava em casa. Naquela altura, nada importava.

Ela limpou sua louça usada e apressou-se em deixar a mesa posta para a patroa. Outros deveres lhe chamavam.

No início da tarde, pouco depois de ter limpado os utensílios usados no almoço, o som da sineta ecoou pela casa. Carmina franziu os cenhos. Sinetas eram só para hóspedes ou para pedidos no chá da tarde, mas era cedo. Se antes ela suspeitava que sua mãe estivesse trazendo gente para conhecer e trabalhar na casa, agora sabia que seu trabalho havia piorado. Ajeitou o cabelo preso e o avental, depois correu para atender ao chamado.

Nada mais do que antigas colegas, de um passado em que ela era ainda menina e vestia os melhores tecidos. As duas, Maria e Justina, vestiam os melhores tecidos mesmo agora; verdadeiras damas. Sua mãe trazia-as para dentro com um sorriso no rosto, conduzindo-as para a sala do chá.

“Oh, Carmina! Há quanto tempo!”

“Como vai?”

Ela forjou um sorriso, não respondeu. Sua mãe falou por cima dela, grasnando sobre a estação, os viajantes. E tudo bem, pois nenhuma parecia de fato interessada na resposta. Maria falou do marido e do filho pequeno. Justina mencionou as festas que frequentou no inverno e as cópias que conseguiu de partituras. Mina só pensava na sua dúvida entre realizar grandes mesuras ou não para elas, pois ainda que fossem duas damas — e clientes — as três brincavam juntas nos verões. Se agora ela usava um uniforme escuro, antes emprestava fitas de cetim e chapéus para as outras duas.

Após escutar conversas esparsas, indo e vindo da cozinha com a bandeja, Mina foi envolvida no diálogo. Maria perguntou:

“Você ainda escreve poemas?”

Ela abriu a boca e pensou, sem querer explicar. Mentalmente, sim. Versos violentos. Não pareciam adequados para serem escritos pelas mãos de uma jovem respeitável, embora ela fosse só uma criada.

A mãe, por sua vez, soube preencher o silêncio com outra frase azeda.

“Mina perdeu o gosto para essas atividades. Quem sabe volte a pensar nisso, não?”

Ela inspirou fundo. Não havia perdido o gosto, nem jeito. Havia perdido tempo. Ela encarou o rosto das colegas — amigas — sentindo o peso de seu próprio potencial ter sido desperdiçado; fosse um casamento ou um talento. 

“A primavera pode te inspirar. Apareça no festival! Estaremos lá.”

Agradeceu, sem impedir mais a mesura instintiva dos joelhos — um hábito educado para garantir os bons olhos da clientela. E continuou a participar daquele pequeno teatro, como se nenhuma delas soubesse da falência daquela família e do tempo que sempre escorria. Parecia tudo ensaiado e Mina preferiu assim, mesmo com o pior papel. Já a mãe parecia brincar de boneca, satisfeita com a fantasia.

Quando sobraram as louças e a sujeira para Mina de novo, ela decidiu fazer tudo devagar. Remoía aquela tarde e uma vida inteira na cabeça, sem ordem nos pensamentos. Ao olhar para as flores através da janela, ela não enxergava beleza, só sangue.

À noite, seu pai regressou.


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