Pétalas no poço & Desejo escrita por Shalashaska


Capítulo 1
Obrigada, madame.


Notas iniciais do capítulo

Voltamos a um conto em lugar estranho, em um tempo sem tempo.



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Olhos mais gentis e atentos poderiam concluir que a postura daquela jovem de pé assemelhava-se à postura de uma bailarina; mas raramente ela recebia olhares atentos, muito menos gentis. Era uma criada e, naquele momento, aguardava a hóspede guardar seus últimos pertences. Acostumara-se a permanecer invisível, estivesse no canto do cômodo ou não, respondendo frases curtas quando indagada: “Sim, madame”, “Não, senhor”, “É para já”. Não que a senhora Benito fosse desagradável, pelo contrário: a mulher era generosa ao ponto da deselegância e suspeita, pois conversava demais e oferecia mimos, como doces comprados no vilarejo, para ela, a criada. Porém, não deixava de ser esnobe, ainda que não por maldade; afinal, em mais de um chá da tarde, ela foi obrigada a explicar que não, não havia feito uma viagem para fora do país e nem tinha ido para a praia no Verão passado.

“Não se incomode comigo, Mina. Sei que fez minhas malas com dedicação, mas prefiro guardar meus últimos pertences em uma mala menor. Sabe como é, coisas que deixamos por último porque ainda vamos usar, tipo perfumes.”

Mina quis dizer que não, não sabia. Sua existência limitava-se aquela cidade, embora se ela fosse mais honesta, suas fronteiras iriam até os limites da propriedade da família; ultrapassando-os em ocasiões periódicas, como compras na vila. No entanto, suas perspicácia a fez manter a boca calada com um sorriso neutro, mesmo que também estivesse pensando o quanto era curioso o fato da senhora Benito deixar para si própria o fardo de guardar seus brincos, anéis e cosméticos franceses.

A maior mala já havia sido levada por Mina até o andar debaixo, colocada na carruagem. Não existiam ainda automóveis modernos na região, já que a paisagem ondulante e a falta de estradas melhores dificultavam o acesso. Ainda assim, era uma rota famosa para viagens e passeios, tanto que o vilarejo tinha certa fama por acolher bem os viajantes. Esse fato inspirou a casa a abrir suas portas como uma pousada aconchegante e intimista, embora fosse um estabelecimento que pendia tanto para pernoites quanto para a rotina de uma casa de chás da tarde. Tudo dependia do fluxo das pessoas. Em um tom mais cinico, Mina poderia caracterizar o lugar como uma pousada que se pretendia uma casa de chás chique, mas que não tinha público suficiente nem para uma coisa, nem para outra. Não tinha também criadagem o bastante. Lamentável.

Com a alta temporada chegando, esperava que a contratação sazonal de mais criados acontecesse logo.

“Vou sentir falta dessa paisagem, dos chás e…”, A hóspede cortou os seus pensamentos, “É claro, da sua companhia, Mina.”

“Seria adorável tê-la aqui na casa durante o Festival das Flores, madame.”

“Ah, eu queria. Ouvi falar só coisas boas do festival e já está virando a estação, não?”

Enquanto mais vidros de perfumes e óleos iam para a mala menor, decorada com fitas violetas, Mina quebrou sua postura um instante para encarar as janelas. De fato, a troca de estação estava chegando até um pouco mais cedo naquele ano e as árvores exibiam os diminutos botões vermelhos. A região não podia ser grande coisa em comparação com outros destinos turísticos, mas ao menos a natureza havia agraciado-os com um cenário bonito e primaveras estonteantes, todos os anos. Talvez fosse alguma combinação específica do clima para justificar a existência abundante de árvores frondosas com flores carmim, que pintavam a paisagem de vermelho. Enquanto muitos outras locais testemunhavam o tingir das árvores de rubro apenas no Outono, ali a Primavera exibia sua cor de um jeito peculiar.

“Uma pena Carlos ser alérgico”, a senhora Benito continuou, “Uma pena.”

Mina voltou seus olhos para ela. Estava ao fim de sua arrumação e ela não entendia exatamente o pesar do tom de voz da outra, afinal, não parecia absurdo uma pessoa que saiu do país e foi duas vezes à praia no último Verão pudesse voltar para a pacata pousada e casa de chás. E se o problema fosse Carlos, talvez não houvesse realmente um problema.

Carlos era o marido dela e Mina supunha que fosse ao menos quinze anos mais velho que a esposa, ainda que fosse difícil ter certeza. Ele não passou tempo o suficiente na casa;  só as manhãs e noites, depois saía para cavalgar com outros homens; e Mina concedia-lhe o benefício da dúvida sobre sua verdadeira idade. Só não sobrava ambiguidade quanto ao fato dele se importar demais ou não com a companhia da esposa.

“Quem sabe no outro ano, madame. Pode trazer mais amigas ou suas parentes.

Com um suspiro derrotado, ela fechou a mala.

“Queria ter mais delas, sendo sincera. E sendo mais sincera, eu prefiro amigas. Parentes tenho poucas e me restam cunhadas, suas filhas e demais ramos da grande família Benito. Sei que é esperta e já deve ter notado, Mina. Nem sempre fui rica. E os Benito não apreciam muito a felicidade do meu casamento, embora apreciem e desdenhem do infortúnio da nossa ausência de filhos.”

A senhora ainda é nova. Talvez possa adotar. Seu marido deve ser infértil. E ele não me soa atraído por mulheres. Mina pensou nisso tudo e soube o quanto cada frase era inútil e má.

“Eu sinto muito, Vivian.”

“Talvez você pudesse ir conosco! Patrões permitem às suas criadas uma folga, de vez em quando. Conversarei com Carlos. E se sua patroa achar ruim, vejo se posso remunerar sua ausência.”

“Você e Carlos podem falar com ela. Mas minha patroa é…”

“Difícil?”

“Minha mãe.”

O olhar de Vivian Benito mudou. Se antes era vazio, feliz e esnobe, o entendimento coloriu seus olhos com pesar. Mina envergonhou-se por acreditar que não havia mais nada nela. E envergonhou-se por receber o medalhão de prata que antes adornava o pescoço dela.

“Oh, querida… Não é muito, mas mantenha isso com você.”

“Madame…”

“Não, não. É seu. Eu queria fazer algo melhor, eu juro. Mas pode fazer diferença, um dia”, com carinho e tristeza, ela ecoou sua fala anterior, “Quem sabe no outro ano?”

Aquiesceu, resoluta.

“Obrigada, madame.”


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Notas finais do capítulo

Marcando a estreia do novo desafio, temos outra proletariada como protagonista KKKK Enfim, eu gostei da Mina. Espero que gostem dela também. Um beijo e até mais!