À Luz da Lua, Bloodshed escrita por Obscuro


Capítulo 7
VI | Complicações




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EDITH

CALLIE ESTAVA NO CELULAR HÁ MAIS de duas horas com Cassius em uma chamada com inúmeras promessas acerca do reencontro tão esperado. A tentação de deixar o apartamento inteiro para os dois foi quase impossível de resistir, principalmente quando Calliope começou a chorar de saudades e arrependimento. Mas eu sabia que precisava ficar, precisava manter os olhos em Callie até que ela estivesse na segurança dos olhos de Cassius, era o meu dever. 

Então, ocupei-me da sala, congelada diante das paredes de vidro assistindo o sol desaparecer rapidamente enquanto eu esperava alguma notícia de Hanna. Ela havia chegado na cidade onde Taylor estava há horas, no interior da Califórnia, e ainda não havia dado notícias. O que começara a me preocupar. Havia sido fácil encontrá-la, parecia que os anos se escondendo entre os humanos não a tinham ajudado em nada ou, talvez, ela não estivesse fazendo esforço para permanecer escondida, o que terminava sendo mais preocupante ainda. 

Taylor decidiu manter o mesmo nome de nascimento, em uma cidade minúscula, trabalhando no maior hospital da pequena região e levando uma vida que não condizia com o salário que ela recebia por ser uma médica lá. Entretanto, nenhum desses foi seu pior erro. A pior decisão foi não se esconder de Hanna, como se não se importasse se a garota era ou não capaz de encontrá-la por suas decisões, ainda que sua decisão, provavelmente, fosse tomada, pura e unicamente, por suas emoções.

Eu vou aonde você for, min sjæl.

Suspirei, com seu famoso apelido, desejando, amargamente, sair correndo. Desde que a encontrara, ele a chamava de minha alma. Era estranho, porque ele, real e sinceramente, se sentia assim, ainda que ele mesmo sempre tivera a plena e completa certeza que nossa espécie não podia ter alma, não quando precisávamos morrer para renascer na pele de uma nova criatura. Ele nunca havia cogitado transformar outra pessoa justamente por isso. Bastava uma alma condenada, ele não queria a culpa de arrastar um inocente para a perdição, muito menos entregar a certeza da imortalidade para um pecador vil. Por isso, por muito tempo, Cassius caminhou sozinho, até me encontrar. Ainda assim, ele só se sentiu digno de redenção quando encontrou Calliope.

Voltei a me concentrar no céu, já estava escuro, da capital da Geórgia. As janelas dos prédios pareciam pequenos vagalumes, com as diversas luzes em seus variados tons ligados, onde famílias se isolavam e aproveitavam, sabiamente, o conforto e a segurança de seus lares sem saber o que espreitava nas sombras. Outros, mais descuidados e inconsequentes, optavam por se aventurar na incerteza da escuridão da cidade, buscando conforto em locais que nunca seriam capazes de oferecer algo sequer próximo a isso. 

A Besta, dentro de mim, rosnou, desperta, arranhando sob a superfície, lutando para tomar controle. As noites sempre eram as horas mais difíceis do dia, quando o sol já não era mais um problema e não causava exaustão. Era como se eletricidade líquida corresse por minhas veias outra vez ainda mais rápido, ainda que meu coração já não batesse mais. A sede queimava em minha garganta, mesmo que eu tivesse me saciado suficientemente antes de deixar o Alasca há menos de dois dias. Ainda que ultimamente, parecia que nunca era o suficiente.

Eu assisti, enquanto uma jovem garota aguardava, impacientemente, na calçada oposta, com um celular na mão. Ela parecia ser bonita, mesmo que eu não conseguisse ver seu rosto. A visão de seu reflexo ainda fresco em sua mente, machado por seus olhos humanos turvos, era o bastante. Para os meus olhos, restavam apenas a visão de seus cabelos cor de chocolate caindo em cachos por seus ombros e suas costas, cobrindo boa parte do vestido de lantejoulas azuis colado em seu corpo, que não cobria nem metade de suas pernas torneadas e sua pele marrom avermelhada que cintilava com algum produto que ela havia usado.

Ele não chega nunca, pensou, irritada, trocando o peso entre as pernas agitada. Menos de um minuto depois, seu celular apitou. Conseguia ver as mensagens em seu celular, mesmo com a distância. James. O nome brilhou em uma nova notificação do garoto dizendo que estava chegando. Aleluia.

Eu a encarei, em expectativa, esperando que ela virasse em minha direção, mas não estava preparada para o instinto doentio dentro de mim quando vi seu rosto. Ela era realmente bonita. Seu rosto era meio ovalado, forjando uma idade que não tinha com camadas e mais camadas de maquiagem, ela parecia ser jovem, menos de 20 anos, mas seus olhos eliminavam qualquer traço de inocência que poderia existir. Seus olhos não eram nem um pouco ingênuos.

Um rosnado se formou em meu peito e meu corpo parecia formigar. O vestido era ainda mais indecente visto de frente. Com um decote generoso, que revelava quase todo seu busto mediano, sustentado apenas por alças finas. Seu pescoço esguio era decorado apenas por um cordão de prata com um coração pequeno de pingente que brilhava sob a luz do poste. Minha gengiva coçou com a toxina se acumulando rapidamente.

A Besta rosnou e eu me vi do outro lado da rua. Conseguia me assistir, dali, enquanto reivindicava minha real posição na cadeia alimentar. As sombras entre os prédios atrás da garota seriam perfeitamente apropriadas. Ela nunca perceberia antes que fosse tarde demais e, mesmo que fosse tarde demais, ela não se importaria. Ela viria de bom grado em minha direção, sem realmente enxergar o perigo de sua decisão. Era o cenário perfeito. Meus pés começaram a se mover antes que eu pensasse direito, aproximando-me da parede de vidro, prontos para me guiar através dela sem danos.

Até o tal James aparecer. 

O carro dobrou a esquina em uma velocidade desproporcional ao permitido e parou, derrapando, diante da garota. Eu congelei, voltando para olhá-la novamente. Ela abriu um sorriso lascivo antes de entrar na pequena Porsche preta fosca. Eu me contive em apenas assistir quando ela se inclinou na direção do garoto e o beijou despudoradamente. Conseguia ouvir o som de seus lábios unidos como se ecoasse em meus ouvidos e, então, ele atrapalhava tudo. 

A Besta rosnou novamente, divertindo-se com o acréscimo indesejado. Efeito colateral. Respirei fundo, desviando os olhos da cena e voltei a encarar o céu noturno, mantendo o controle. A lua era quase invisível no céu, garantindo, ao menos, a segurança parcial dos humanos irresponsáveis, mantendo os filhos da lua impossibilitados de qualquer transformação completa. Cachorros nojentos.

Ainda lembrava da primeira e única vez que Cassius me forçou a permanecer na presença de um deles. Sloan Hale. Era 1920, estávamos no México, apenas de passagem, ele era o líder da matilha, na época, e buscava uma forma de entrar em consenso com uma família de caçadores em uma pequena cidade no país. Eles se conheciam antes mesmo do garoto ocupar sua posição de alfa e Cassius o ajudou, compelindo a líder dos caçadores a aceitar uma sugestão amigável de trégua. 

Eu ainda conseguia lembrar do cheiro fétido que exalava de sua pele e da cor que seus olhos possuíam quando a abominação dentro dele tomava força e lutava para se defender. As íris assumiam um brilho carmesim incandescente, quase como um aviso explícito que ele não era nem um pouco confiável, muito menos dócil. Uma completa aberração da natureza.

— Edith? — A voz de Callie feriu o silêncio quando ela se aproximou, devagar o suficiente para um humano, e me fez desviar os olhos do nosso satélite. Cassius gostaria de falar com você, completou em sua própria cabeça. Ela estendeu o telefone em minha direção e tive que recuperar o fôlego antes de aceitar. 

— Cassius. — Minha voz soou estranha aos meus ouvidos, metálica. A voz de um ser desprovido de alma. 

— Edith. Você está bem? — perguntou, deixando a preocupação se expor em sua voz. Revirei os olhos e dei as costas para Calliope, evitando seus olhos que continuavam me analisando, como se isso tornasse minha conversa mais reservada, ainda que eu soubesse que Callie conseguia ouvir tudo, inclusive Cassius.

— Sim. O que houve? — Encarei os prédios outra vez, analisando as luzes que começaram a apagar com o avanço da hora. Algo no tédio da vida humana fazia a Besta se acalmar, ainda que minimamente.

Ele suspirou do outro lado, com plena consciência de minha mentira. Nos conhecíamos há tempo demais para uma mentira tão pobre ser capaz de enganá-lo, entretanto ele sabia que era tudo que teria. 

— Hanna já encontrou Taylor?

Olhei para o meu celular esquecido sobre a mesinha que sustentava um abajur ao lado do sofá e murmurei uma confirmação.

— Gabriel está com ela?

— Ainda não recebi confirmação, mas é inevitável que sim, visto que ela é quem tem acobertado os assassinatos — apontei ácida, vendo meu hálito criar uma fumaça fraca no vidro da janela. O calor em meu corpo se dissipando rapidamente. — Vamos achá-lo, Cassius. Não se preocupe.

— Eu sei que vai, Edith — murmurou vazio. — Mas, tenho que perguntar, a que custo?

— Não importa — certifiquei, indiferente. Meus olhos brilharam no reflexo à minha frente. Se Gabriel ameaçava nossa discrição, ele precisava ser detido, era a Lei. — Nos encontramos em Beacon Hills. Até logo, Cassius — soprei, antes de desligar, sem esperar uma resposta. — Espero que não quisesse falar com ele novamente — disse, depois de alguns segundos em silêncio, ainda encarando a paisagem industrial. 

Voltei a encarar Calliope e estendi o celular em sua direção, notando a mudança evidente em seu rosto. Ela não parecia em nada a mesma mulher que encontrei no restaurante. Parecia mais consigo mesma novamente. Frágil e ingênua. Toda a ferocidade não passava de uma defesa criada apenas para o período afastada de Cassius, afastada da segurança de proteção, infelizmente. 

Ela seria mais útil se houvesse aceitado, de fato, sua natureza.

— O que houve com você? — questionou, em um fio de voz. A pergunta me acertou como um soco, mas eu sorri.

— Eu ainda sou a mesma — afirmei, irredutível. Ela negou com a cabeça, os lábios retorcidos para baixo, as sobrancelhas enrugadas sobre os olhos que começavam a marejar.

Não, você não é. Oh, Edith, eu sinto muito. O que foi que eu fiz?

Eu a encarei, em silêncio, enquanto ela lamentava como se tudo aquilo fosse culpa dela. Ela sabia que era o vínculo mais seguro e invariável em nosso clã, todos sabíamos que aquilo era o que nos manteve unidos por muito tempo, mas ela não esteve lá por muito tempo.

Meu celular vibrou contra o vidro da mesinha e eu suspirei, quebrando o contato com seus olhos brilhantes, antes de pegá-lo. As mensagens de Hanna não estavam acompanhadas de diversos emojis como de costume, que ela insistia em mandar mesmo depois de diversas reclamações, o que foi o primeiro péssimo sinal.

— É a Hanna — contei, antes de abrir as mensagens.  Meu estômago despencou, revirando. Ela havia chegado tarde demais para conseguir impedir um novo ataque. As informações surgiam em minha tela mesmo que eu não quisesse ter acesso àqueles arquivos ou aquelas imagens. — Porra — praguejei diante a impotência. 

Daniele Fray. A garota devia ter menos de vinte anos. Seus cabelos castanhos formavam um manto ao redor de sua cabeça, como um travesseiro, na mesa de aço cirúrgico. Porém sua pele estava pálida como se seus ossos estivessem expostos e eu conseguia ver as marcas em seu pescoço, quebrando a ilusão de que ela estava apenas dormindo. 

Havia acontecido poucas horas depois de Hanna chegar na cidade, mas ela não tinha conseguido ver. Ela não tinha como ver, não quando não tinha ideia alguma do que procurar. O rosto de Gabriel inundou minha mente, acabando com o resto de controle que eu me mantinha firme em manter. Seus olhos castanhos esverdeados, ferozes e impiedosos, os olhos de um verdadeiro caçador, me encaravam. 

Ele era o que muitos, de nossa raça, acreditavam ser a evolução plena do vampirismo. Graças ao seu dom de ofuscamento, ele era quase impossível de ser rastreado, de ser pego, ocultando-se de todas as formas possíveis. Para mim, ele era apenas uma presa.

Meu corpo parecia em chamas. Não era o formigamento costumeiro que antecede uma caçada natural, que cresce aos poucos e é suficiente apenas para garantir um pouco de inquietude, se não formos ameaçados. Era diferente, como uma repulsa ainda que misturada com a sede de sangue. 

Só senti o celular sendo destruído em minha mão quando ouvi o barulho do metal batendo no chão. Abri os dedos lentamente, vendo os pequenos fragmentos de vidro em minha palma e bufei, frustrada.

— Edith, o que houve? Edith? — Calliope se aproximou perigosamente, estendendo a mão em minha direção e foi impossível não rosnar para ela. Não fui capaz de prever seu ataque direto antes de uma onda de repulsa envolver meu corpo. Minha boca se encheu de toxina e me afastei o mais rápido que consegui dela, batendo com as costas na porta do outro lado da sala. — Desculpe! Às vezes eu não consigo controlar quando fico com medo — explicou assustada, assim que a sensação sumiu. — Você está bem?

Rosnei em sua direção, sentindo o sabor amargo em minha língua. Parte de minha raiva havia sido redirecionada para ela, a Besta saía de meu controle aos poucos, as garras cortando a superfície em busca de uma vítima. 

— Edith? — Sua voz não passava de um sopro amedrontado em meus ouvidos, o que só serviu para o meu divertimento. Rosnei mais uma vez, expondo as presas em sua direção e me preparei para lançar-me em sua direção. — Edith! 

Foi a imagem em sua mente que me fez parar. Assisti por seus olhos, meu corpo curvado, as presas expostas enquanto eu rosnava em sua direção. Os olhos injetados de ódio, os olhos de uma aberração. Mordi meus próprios lábios, sentindo o gosto metálico e salgado invadir minha boca, revirando meu estômago, e a parte consciente dentro de mim foi capaz de suprimir o lado irracional, domando a Besta outra vez. Detive o ímpeto de atacá-la no último segundo e me pus de pé, encarando-a envergonhada.

— Desculpe-me. Está tudo bem, Calliope. Arrume suas coisas, partiremos em algumas horas — informei, fugindo para o meu próprio quarto, incapaz de lidar com seu olhar de medo e pena.

Eu não tinha tempo para perder o controle, aquilo só me atrasaria e demonstrava o quão fraca eu poderia ser diante Gabriel. O nome circundou meus pensamentos, trazendo memórias de quando ainda éramos uma família. Eu amava Gabriel, como um irmão, mesmo quando ele decidiu trilhar outro caminho, um diferente do nosso. Entretanto, mesmo que não fizesse mais parte do nosso clã, ele mantinha um limite, sabendo que, assim, teria um lugar para onde voltar. Ele nos visitava, às vezes, quando Cassius e Calliope saiam para uma das várias luas de mel. Em algum momento, as visitas se tornaram mais espaçadas, até o limite não existir mais. 

Eu sempre admirei Cassius por sua dicotomia, seu autocontrole e sua capacidade de manter-se firme, mas aquele não era mais Cassius, não há algum tempo, ainda que ele fosse impassível, ele havia amolecido depois de Calliope. Principalmente acerca de suas próprias criações. Não éramos apenas vampiros unidos por um interesse em comum de sobrevivência, seguindo a regência de um líder. Em algum momento, depois de Taylor, passamos de aliados sobreviventes à família sem nem mesmo perceber e era tudo que eu sempre quis, até começarmos a diferir demais em quase tudo.

Quando Gabriel se tornou uma ameaça, Cassius ajudou Taylor a encobrir tudo, enviando-a em uma missão ilusória, como se aquilo mantivesse a ideia que Gabriel um dia voltaria para casa. 

Enquanto Gabriel se mantinha em um padrão aceitável de assassinato à criminosos, eu concordara em mantê-lo seguro. Éramos caçadores, nosso instinto nos levava a matar, bastava escolher a vítima certa, todos nós já havíamos passado por aquilo, incluindo o próprio Cassius. Às vezes, a sede de sangue vencia o desejo de se manter inserido em um núcleo quase familiar, mas sempre mantivemos as mortes ocultas e a uma espécie de código ético que mantinha as crianças à salvo. 

Contudo, quando as idades começaram a cair e os motivos já não existiam mais, a caça não era apenas caça por sobrevivência, havia se tornado diversão. E se Cassius não estava capacitado para entender aquilo e tomar uma decisão justa, alguém precisava fazê-lo.

Peguei um novo celular dentro do closet quase vazio e o liguei, inserindo um novo chip. Eu não precisava me esforçar para lembrar o número que continuava no fundo da minha mente. Encarei a tela colorida, o dedo sobre a tecla de enviar. Respirei fundo, sabendo que me arrependeria, mas sabia que precisava ser feito.

Ache-o.

E. S.


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