À Luz da Lua, Bloodshed escrita por Obscuro


Capítulo 4
III | Maratona




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STILES

QUANDO VOLTEI A ABRIR OS OLHOS, a luz do sol iluminava o quarto inteiro, infiltrando-se pelas janelas. Gemi, jogando o braço sobre os olhos em uma tentativa de voltar a dormir, mas um flash rápido e confuso da noite irrompeu a calmaria momentânea do silêncio grogue de minha mente.

Perdi o ar dos meus pulmões, como se alguém tivesse acertado um soco em meu estômago, e resfoleguei, sentando-me rapidamente. Minha cabeça rodou, forçando-me a piscar algumas vezes para enxergar corretamente, ainda que meus olhos ardessem por causa da claridade. Olhei de soslaio para o relógio ao lado da cama, apenas para descobrir que passava das quatro da tarde, e bufei, deixando meu corpo cair outra vez no colchão. 

Encarei o par de estrelas, agora sem brilho, notando os barulhos no andar de baixo pela primeira vez. Panelas batendo e três pessoas conversando. Noah não estava sozinho. 

Levantei-me a contragosto e entrei no banheiro, sendo encarado pelo reflexo deplorável de um rosto cansado. Arrastando os pés no chão, me aproximei da pia, e agarrei a escova de dentes. 

Quanto voltei a olhar para o espelho, havia algo diferente. Meu rosto, ainda que fosse o mesmo, parecia diferente. O olhar frio, insolente e sádico, os lábios curvados nos cantos em um sorriso sutil e permanente.

Você precisa de mim para sobreviver ao que está vindo, Stiles.”  A voz zumbiu em minha cabeça novamente, se repetindo infinitamente.

— Bom dia, garoto. — A voz de Noah ecoou ao chegar aos meus ouvidos, abafando a segunda voz em minha cabeça. Pigarreei e me virei o mais rápido possível, enfiando a escova na boca, forçando um sorriso torto.

— Bom dia, pai — balbuciei, notando a preocupação em seus olhos.

— Você conseguiu dormir? — questionou, depois de alguns segundos no silêncio desconfortável. Eu cuspi a pasta na pia antes de confirmar com a cabeça, colocando um punhado de água na boca. — Sem novos pesadelos? — insistiu, cruzando os braços enquanto se apoiava no batente da porta.

— Sem novos pesadelos, pai. Você saberia — afirmei, puxando a camisa pela minha cabeça para não ver seu rosto retorcido de dor. — Posso tomar um banho? Desço em alguns minutos.

— Não demore. Scott e Lydia estão aqui — informou antes de sair, puxando a porta consigo. Encarei a madeira branca e praguejei silenciosamente. Era óbvio, Noah não iria guardar para si mesmo que os pesadelos haviam voltado, não depois de tudo que havia acontecido há pouco tempo.

Eu sabia que a confiança da matilha em minha capacidade mental havia sido danificada. Então eu entendia o receio e o medo deles com facilidade. Não seria fácil lidar novamente com tantos assassinatos, não se eu fosse o causador mais uma vez.

A água congelante foi um refúgio momentâneo, deixando cada músculo do meu corpo dormente. Infelizmente, não pude ficar eternamente sob o chuveiro, e, como prometido, assim que terminei de me vestir, desci. 

Lydia e Scott estavam na sala, com três caixas de pizzas na mesa de centro entre o sofá e a televisão e garrafas de refrigerante. Assim que eles me viram, Scott levantou e Lydia ergueu o rosto, me encarando com um sorriso amplo. Ela largou o celular no sofá antes de acenar, com suas covinhas fofas exibidas e murmurar um “Oi”.

— E aí, cara? — Scott abriu os braços, me puxando para um abraço com direito a dois tapinhas no meu ombro, que eu retribui automaticamente. — Você está horrível — comentou risonho, me fazendo rir.

— Valeu, cara — balbuciei antes de me afastar. — O que vocês estão fazendo aqui? — questionei, repuxando as mangas do casaco cinza até o cotovelo, e cruzei os braços, à espera de uma resposta.

Eu me limitei a assistir enquanto eles trocaram um olhar rápido, como se buscassem ajuda no rosto um do outro, sem uma história previamente combinada. O sorriso de Lydia diminuiu aos poucos, até sumir, e Scott suspirou, esfregando uma mão contra a outra, com os lábios pressionados em uma linha reta, como se estivesse se preparando para dar uma resposta que não o agradava. Permanecemos no silêncio durante longos segundos, até a campainha tocar, rompendo a bolha de tensão.

— Eu atendo! — esganiçou a ruiva, levantando do sofá em um pulo repentino, antes de correr para a porta, como se aquilo fosse salvar sua vida.  — Kira! Oi, entra — disse, escancarando a porta para que a garota de olhos puxados pudesse entrar e interromper o momento constrangedor.

— Oi, eu trouxe filmes — informou, sorridente, apontando para a mochila em suas costas. — O que vamos maratonar primeiro? Indiana Jones ou Guerra nas Estrelas? — Sua voz e seu rosto exalavam animação, ela parecia prestes a saltitar. Sorri forçadamente e cobri a boca com o punho fechado.

— Ótimo — sussurrei em um suspiro, erguendo as sobrancelhas.

Um elefante roxo no meio da sala seria mais discreto que a tentativa de ser sutil em me monitorar de perto. Por isso eu sempre ficava com os planos. 

Mais uma vez, o silêncio esquisito nos acolheu, três pares de olhos me encarando, como se minha resposta fosse uma garantia que eu estava caindo no “plano incrível e infalível” deles — ainda que estivesse mais para escolher cair.

— Acho melhor começar com Guerra nas Estrelas — decidi, entediado. — Vou pegar um pouco de café — informei, caminhando para a cozinha. Noah estava na mesa de jantar, com arquivos espalhados e um copo cheio fumegando. — Caso novo? — sondei, enquanto analisava o interior da geladeira. Acabei pegando um energético e bebi, enquanto o encarava, esperando uma resposta.

— É, uma garota daqui desapareceu há alguns dias. Os pais estão desesperados, espalhando panfletos por toda parte — comentou, fazendo minha espinha gelar. 

Flora Williams. O alerta vermelho soou em minha cabeça, dolorosamente. Ele não deveria se envolver com isso.

— Qual o nome? — Minha voz quase falhou, denunciando minha instabilidade, mas Noah pareceu não notar, encarando os papéis novamente.

— Daniele Fray. Ela veio visitar a tia, aproveitar as férias, mas desapareceu — divagou, passando a mão pela testa franzida enquanto encarava a imagem da garota em questão.

O desespero inicial se atenuou, mas, em compensação, um novo medo se instalou. Eu não tinha tido acesso aos casos mais recentes e, agora, eu tinha certeza que eles não tinham acabado. Quantos outros já não haviam acontecido? Quantas outras vítimas? O mesmo assassino? O mesmo padrão?

Noah não deveria ter ciência disso, não ainda. Meu caso ainda não estava montado e, mesmo que estivesse, eu não poderia impedir o xerife de se envolver em um caso de desaparecimento na própria cidade. 

Engoli em seco, tentando ler qualquer palavra de cabeça para baixo, enquanto fingia beber o energético.

— A dor que os pais dela devem estar sentindo, o desespero — murmurou baixinho, como se não quisesse que eu realmente escutasse. — Pobre garota.

Então eu soube exatamente qual a memória que ilustrava sua compreensão e empatia. O meu desaparecimento, no meio da noite, em uma das noites mais frias do ano. Quando eu estava possuído pelo Nogitsune.

Meu estômago revirou com o líquido doce e prendi a respiração, tentando interromper a sensação angustiante que começava a se alastrar. Cinco casos de adolescentes desaparecidos e, a qualquer momento, podia haver um próximo — qualquer um poderia ser o próximo.

— Stiles! Estamos colocando O Império Contra-Ataca — Lydia gritou, quando eu estava prestes a decidir por ficar na mesa.  — Você vai perder a abertura!

Mesmo sabendo que o melhor filme da minha série favorita estava começando, meu corpo permaneceu paralisado, preso a nova informação. Senti todos os membros formigarem outra vez e meus ouvidos apitaram. Minhas mãos queimando para conquistar novas informações. 

Dei um passo cego em direção a mesa e fui encarado pelos olhos cansados do meu pai.

— Vá ficar com eles, esse era o objetivo. Eu cuido disso, é o meu trabalho — disse Noah, irredutível. Derrotado, apenas balancei a cabeça em concordância, antes de voltar para a sala arrastando os pés e me jogar no sofá.

Era tarde demais para dizer que não havia nada errado. Qualquer um deles conseguia sentir o cheiro sombrio impregnado em mim, até mesmo eu sem um olfato aprimorado.

— Tudo bem, cara? — Scott perguntou, ao meu lado. Eu me limitei a balançar a cabeça, agarrando minha primeira fatia de pizza.

Respirei profundamente, mais uma vez, e ergui a latinha de energético, terminando com o líquido doce em dois goles. Ainda conseguia sentir o olhar preocupado de Scott me monitorando, enquanto fingia naturalidade terminando de comer sua fatia gordurosa de pepperoni. Abaixei a lata e encarei Scott. Ele sorriu amarelo, fazendo seus olhos enrugarem e eu suspirei frustrado, remexendo-me no sofá. 

Uma nova explosão, me fez desviar os olhos para TV outra vez, as imagens antigas de Guerra nas Estrelas se repetiam pela milésima vez. 

— Para um filme tão velho, até que os efeitos não são tão ruins — comentou Scott, se esticando para pegar uma nova fatia.

— Porque eles foram feitos com perfeição — retruquei, sem nem pensar. — Todo mundo sabe que é a melhor coleção de filmes espaciais.

— Não comece — Lydia me cortou, zombeteira.

— Não ia — afirmei inocentemente e ele e Lydia me encararam com olhares incrédulos. — Tudo bem. Eu ia, mas não vou — prometi, agarrando uma fatia de pepperoni. Dessa vez, realmente entrando no papel de adolescente de férias que não estava sendo monitorado e sim participando de uma maratona geek com amigos.

Quando terminei minha quinta fatia, sentindo-me plenamente saciado, e o filme se aproximava do final, Scott dormia, enquanto Lydia estava mais concentrada no celular que na TV. 

Ao contrário dos dois, Kira parecia tão empolgada quanto no início; acabando por ser a única que realmente sabia fingir que estava ali apenas para assistir Guerra nas Estrelas.

— Pessoal, eu tenho que ir. — Lydia largou o copo vazio na mesa e se levantou, de repente, pegando sua bolsa. — Qualquer coisa, me liguem — pediu distraída, antes de se retirar em silêncio e com a expressão específica que sempre aparecia em seu rosto quando algo estava errado; no sentido mais sobrenatural possível.

— Claro — murmurei quando a porta bateu, tendo certeza que ela seria a primeira a fazer a ligação. 

Inclinei-me, apoiando os cotovelos nos joelhos, e comecei a brincar com alguns pedaços de abacaxi largados na caixa, tentando acalmar a agonia que se estendia aos poucos por meus ossos. 

Com Lydia saindo, o presságio era claro: um novo corpo apareceria cedo ou tarde. Mais uma vez, era inevitável. Sem conhecer o inimigo, é difícil prever um próximo movimento.

Era impossível aguentar permanecer quieto. Minha mente rodopiava com as poucas informações sobre Daniele Fray. Ela não estava nos arquivos que eu tive acesso, ainda que o mais novo tivesse duas semanas.

Será ela o corpo que Lydia encontraria? Qual o perigo que Lydia estava correndo ao sair desprotegida e desacompanhada em sua missão super esquisita de banshee? O assassino ainda estaria perto do corpo? Um vampiro?

Minhas mãos suavam e, mais uma vez, acordei do devaneio. Scott roncava, com a boca aberta, e Kira retorcia o rosto cada vez mais, enquanto Darth Vader e Luke lutavam, se aproximando da cena épica, com a grande revelação: “I am your father.” 

Assisti com tédio quando a garota com descendência asiática guinchou surpresa e levantou do sofá, sem conter sua emoção.

— Desgraçado — esganiçou, enfurecida. — Eu odeio essa cena.

— É, eu sei como é. Mas a primeira vez é a melhor delas e nunca se repete — afirmei sem emoção, escorregando pelo sofá. Kira me encarou com os olhos esbugalhados e eu ri pelo nariz. — Acho que você ganhou.

Ela enrugou o cenho e voltou a se sentar. 

— Ganhei o que?

— Eu tenho um ranking das melhores reações a essa cena. A de Malia estava ganhando, a pior foi a de Derek. Agora, você é a melhor — expliquei risonho, lembrando do rosto retorcido pela confusão da coiote, que precisou de um minuto inteiro para entender o que havia acontecido, e de Derek, que não tinha movido um músculo sequer, como se nem estivesse assistindo.

— Ah. — Ela sorriu, envergonhada. — Obrigada? — perguntou, confusa e eu ri.

— De nada. — Assisti, enquanto ela se concentrava novamente no filme, até as letras subirem com os créditos finais. 

— Podemos assistir o próximo? — perguntou, levantando-se com O Retorno do Jedi nas mãos. A encarei, confuso. Geralmente não é uma abordagem comum assistir pela ordem de lançamento. — Eu procurei na internet outros jeitos de assistir, assisti Uma Nova Esperança ontem de noite — explicou enquanto trocava o DVD, como se lesse meus pensamentos. — Mas, se você quiser, podemos assistir na ordem cronológica. — Ela me encarou, ajoelhada no chão. A insegurança e a preocupação estampada em seu rosto.

— Eu já assisti de todas as maneiras possíveis, Kira. Não se preocupe. — Ela sorriu, voltando ao seu lugar quando a história do capítulo começou a subir, mas antes de sentar, roubou a última fatia de pizza com abacaxi. — Kira? — Ela me encarou, mordendo a pizza, e ergueu as sobrancelhas, aguardando. — Posso fazer uma pergunta?

— Uh-hum — balbuciou, balançando a cabeça.

Eu a encarei por um segundo, seus olhos curiosos esperando que eu tivesse coragem suficiente para perguntar seja lá o que fosse. Meu sangue correu mais rápido, pulsando em minhas orelhas e formigando em meus dedos.

Se eu perguntasse, ela contaria a Scott? 

Dane-se. Eu precisava saber.

— Você acha que... Talvez, em uma possibilidade remota... Talvez, assim, em uma situação muito hipotética e muito excepcional, que talvez não tenha acontecido, mas que talvez aconteça, se a possibilidade existir... — balbuciei, divagando com medo da pergunta final.

— Stiles? Você está tendo um derrame?

— Ãhn? Não! Não. Eu só... — Eu suspirei, desviando os olhos para minhas mãos pálidas. — Você acha que seria possível o Nogitsune voltar? — questionei em um sussurro, sentindo minha garganta apertar. 

Ergui o rosto, voltando a encará-la. Seu rosto estava franzido enquanto ela me encarava confusa. Sua mão abaixou, deixando a pizza ignorada e ela suspirou.

— Não. A gente prendeu ele. Ele não tem poder para sair de onde ele está. Por quê? Você... Você viu alguma coisa? Você sentiu alguma coisa? — Ela me olhou, agora com preocupação e medo. 

Seus olhos escureceram, enquanto ela me analisava e eu consegui ver o mesmo olhar que vi no rosto de sua mãe, como se ela me analisasse com seus outros olhos, com os olhos de raposa.

— O quê? Não, não. Não, eu não vi nada. Nem senti nada — menti, fugindo dos seus olhos, voltando a encarar a televisão. Pigarreei e apontei para a televisão, encontrando minha fuga facilmente. — Então você sabia desde ontem que iríamos assistir? — perguntei, fingindo indiferença. 

Ela me encara por alguns segundos, com os olhos semicerrados, antes de dar de ombros.

— Não, Scott me chamou hoje. Eu só escolhi o filme — confessou, dando uma nova mordida em sua fatia. — Por quê? Você também não sabia? — questionou, de boca cheia, desviando os olhos da televisão para me encarar.

— Não. Descobri assim que acordei. — A raiva pulsou por meu corpo outra vez quando Scott roncou. Agarrei uma almofada e bati em sua cara  me preocupar em medir a força.

Quê? — gritou, saltando no sofá. — O que aconteceu?

— Se você veio aqui fingir que queria assistir, pelo menos finja direito — falei entredentes, o encarando com fúria. — Idiota.

— Eu estou assistindo! — reclamou de volta, mas Kira o calou com dois tapinhas no joelho e ele bufou. — A de queijo acabou? — perguntou se inclinando para frente.

— Acabou, eu comi a última — disse, cruzando os braços. 

Fixei o olhar na televisão e me neguei a encará-lo, fingindo absoluto deslumbre e interesse pelas imagens maravilhosas do filme. 

Aos poucos, conforme o tempo passava e comentários aleatórios eram feitos, a tensão se dissipou. 

Kira não parava de apontar cada mísero detalhe como uma criança que tem o primeiro contato com o parque de diversões. Ela definitivamente ganhava qualquer competição de melhor reação sem se esforçar muito.

Estávamos conversando sobre cada coreografia das lutas, com direito a tentativas de copiar os atores. Kira estava em posição de ataque, com um sabre de luz imaginário erguido acima de sua cabeça e uma perna erguida no ar, quando meu pai saiu da cozinha com o rosto contorcido. 

Meu sorriso morreu instantaneamente e meu sangue pulsou duas vezes mais rápido em meu corpo.

— Pai? — Minha voz soou quebradiça. Eu conseguia sentir minhas mãos tremendo.

— Acharam um corpo. Lydia... Lydia achou um corpo, Parrish está indo para lá — explicou, robotizado, como se ainda não acreditasse na informação que havia recebido. — Era Daniele Fray. Ela está morta.


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