Doutor Estranho: Inferno escrita por De Mysteriis Dom Sath


Capítulo 4
III - O nome das sombras




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A biblioteca de Mordo era gigantesca. Ficava no subsolo de seu castelo, dentro da montanha sobre o qual a fortaleza estava estruturada, e abrigava uma enorme coleção de livros dos mais variados tipos. Claro, boa parte deles era uma herança das gerações anteriores que passaram por aquela residência, e por esse motivo cobriam tópicos que iam muito além das Artes Místicas. No entanto, havia uma coleção particularmente completa no que dizia respeito a esse assunto. Nem toda ela fora montada por Karl Mordo; seu pai, Nikolai Mordo, havia coletado obras de fontes das mais diversas, e seu avô materno, Heinrich Kowler, também lhe havia legado um grupo seleto de obras. Sempre houvera também a suspeita de que Mordo fizera cópias de próprio punho de alguns dos livros da coleção pessoal do Ancião durante sua estada em Kamar Taj, mas ninguém nunca pudera confirmar isso. 

— Sinta-se à vontade, minha cara. Esta noite você é uma convidada — disse Mordo, sentando-se a uma mesa no coração daquela biblioteca. 

O espaço era um verdadeiro labirinto de longas e altas estantes, todas cheias de livros. Ali onde estavam havia espaço, com diversas mesas postas para estudo. O fato de estar tudo vazio, contudo — sem uma pessoa sequer —, não parecia condizer com o que Clea já ouvira a respeito daquele lugar. 

— Onde estão os seus alunos? — perguntou a feiticeira. 

Mordo respirou fundo. 

— Por favor, sente-se. Temos muito a conversar.

Ela fez como ele disse, e puxou para si uma cadeira do lado oposto da mesa. Kaecilius não os acompanhava mais, mas o Manto da Levitação seguia atrás de Clea e repousou sobre o encosto de sua cadeira. 

— Sabe, senhora Strange — começou Mordo. — Eu lamento o que aconteceu com Stephen. 

Ouvir aquilo das bocas de Mordo parecia desrespeitoso. Os dois passaram anos travando lutas árduas, e mais de uma vez Mordo havia tentado matar Stephen com suas próprias mãos. 

— Me poupe de sua falsa simpatia — respondeu ela, ríspida. 

— Não é falsa, minha cara. Sim, tivemos nossas desavenças. E, se necessário fosse, eu teria chegado às vias de fato em um confronto com Stephen. Mas as circunstâncias em que a morte de Stephen se deu… 

— Que circunstâncias, Mordo? Ser morto por um mago depravado e ter seu corpo vilipendiado com requintes de crueldade? Repito, me poupe de sua falsa simpatia. Todos sabemos que você e Scratch têm mais em comum do que você pode querer admitir. 

O sorriso falso de Mordo sumiu de sua face. Ele ergueu suas grossas sobrancelhas negras, analisando com cautela as palavras que usaria. 

— Por mais que te doa, Clea, estamos do mesmo lado desta vez. 

— Do mesmo lado? — Ela riu. — Prefiro morrer como Stephen a confiar em você, Mordo. Ou você pensa que não notei que segue usando energia da Dimensão Negra para ampliar seus poderes? Não seja tolo. Você sabe o que aconteceu com você das outras vezes. 

— Me permita prosseguir — disse ele, em tom sério. — Não, não tenho mais a fé tola de que barganhar com Dormammu me levará a algum lugar. Mas não tive escolha desta vez. Como você deve ter percebido, o demônio que você enfrentou não era como qualquer outro. 

— Sim, eu sei. Era um N’Garai. Belasco está por trás disso?

O Barão respirou. Nunca fora conhecido por sua paciência, e as interrupções de Clea a estavam testando. 

— Não. Mesmo para um N’Garai, aquele espécime era demasiado poderoso. 

Mordo se levantou. A passos lentos, começou a dar a volta à mesa.

— Nicholas Scratch invocou aquele N’Garai. 

A menção ao assassino de Strange provocou um calafrio em Clea. 

— Ele esteve aqui?

— Sim. Na noite passada. 

Algo naquele fato despertou uma preocupação nova nela. 

— Você deve saber, minha cara, que Strange mantinha um poderoso encantamento sobre este planeta. 

Ela assentiu. 

— A Grande Barreira.

— Sim. Bom, como você já deve saber, a Barreira se foi. Stephen morreu sem passar adiante seu manto de Mago Supremo. 

— Wong já está cuidando disso.

— Sim, é claro. Mas levará tempo para que um novo Mago Supremo esteja pronto para reerguer a Barreira. E tenho convicção de que Scratch está planejando se aproveitar desse interregno. 

— Não só ele. 

— Claro. Se os tempos fossem outros, talvez eu mesmo estivesse nessa longa lista. Mas algo em Scratch me preocupa, Clea. E creio que isso seja do interesse de Kamar Taj. 

— É por isso que estou aqui? Você podia ter tratado disso com Wong. 

— Não sejamos tolos. Nós dois sabemos que Wong jamais sentaria para ter comigo uma conversa como esta que estamos tendo. 

Era verdade. Stephen havia contado a Clea a história da traição de Mordo. Sua primeira vítima, em sua fuga de Kamar Taj, fora o braço direito do Ancião, um feiticeiro habilidoso de nome Hamir. O pai de Wong. 

— O fato de você ter aceito meu convite me leva a crer que estou correto. Me diga, você também sentiu, não sentiu?

Mordo estava bastante próximo de Clea agora, de pé à sua direita. Ele se apoiou na mesa e a olhou ao fazer a pergunta.

— Não sei a que você se refere. 

No fundo, ela sabia. A razão pela qual aceitara aquela visita fora a sensação estranha que vinha a corroendo desde a morte de Stephen. Não era apenas o luto. Havia algo de errado no universo, algo que cruzava todas as dimensões. Algo de sombrio estava se reerguendo. 

— Permita-me continuar. Como eu disse, Nicholas Scratch bateu à minha porta na noite passada. Estávamos todos jantando no salão, eu e todos os meus alunos, e ele veio só. Deixei que entrasse, pois já nos conhecíamos, e também por duvidar que, se suas intenções fossem más, ele seria capaz de, sozinho, fazer frente a todos. Mas não precisou. 

Algo naquela história parecia incomodar Mordo. Essa era a única razão que Clea conseguia imaginar para ele estar dando tantas voltas para contar aquilo. Ele continuou a andar em volta da mesa, passando por trás de Clea. 

— Ele disse que tinha uma proposta. Eu, é claro, já sabia das notícias sobre Strange, e me permiti ouvir o que ele tinha a dizer. Scratch contou uma história. Disse que recebeu uma visita e que lhe fora dada uma nova visão, com a missão de restaurar a glória da nossa dimensão. E ele compartilhou a visão conosco.

O incômodo de Mordo se tornou mais  evidente.

— Você sabe, Clea, em todos os meus anos como mestre das Artes Místicas, minha missão sempre foi garantir que apenas aqueles merecedores de tais poderes os pudessem utilizar.

Ele se sentou novamente na cadeira em que estava antes, tendo completado uma volta na mesa.

 — A visão de Scratch mostrava uma Terra em chamas. Uma Terra devastada, consumida, com Scratch e os seus governando a tudo e a todos. 

— Não vejo como isso se diferencia do que você sempre quis — respondeu Clea, cínica. Ainda lhe custava crer que Mordo estava ali com boas intenções. — Ou você é ingênuo a ponto de achar que trazer Dormammu para esta dimensão teria um resultado diferente? 

Para Clea, o incômodo de Mordo com a visão de Scratch tinha apenas uma justificativa: o fato de não ser ele o tirano no poder. 

— Talvez você esteja correta.

Aquilo a surpreendeu. Em todos os anos que Mordo e Stephen passaram lutando um contra o outro, o Barão nunca havia demonstrado uma sombra sequer de dúvida em relação a seus objetivos.

— Digo isso com pesar, é claro — prosseguiu ele. — Mas essa é a única razão que enxergo para meus alunos terem me deixado por Scratch.

Aquilo era no mínimo esclarecedor. Explicava por que o castelo estava tão vazio, bem como por que Mordo parecia levar aquela questão com Scratch tão a sério.

— Todos?

— Sim. Digo, Kaecilius ficou, é claro. Mas somos amigos, antes de qualquer outra coisa. Os demais… Os demais se foram, todos. 

Clea olhou para Mordo, tentando não expressar nenhuma reação. Agora estava claro o motivo de ele estar buscando ajuda em Kamar Taj. Ainda assim, por tudo que ouvira de Stephen e pelo que vivera nesses seus anos juntos, Clea teria imaginado que a primeira reação de Mordo teria sido lutar e ir atrás de Scratch sozinho. Algo o estava assustando. 

— Quanto ao N’Garai… Bom, creio que Scratch esperava que eu me rendesse a seus desígnios. Mas eu não o fiz e jamais o faria. Então ele deve ter conjurado a criatura depois de deixar a região, para que me pegasse desprevenido. E funcionou, devo dizer. Não porque um demônio como esse, em situações normais, seria um adversário desafiador. Mas porque nunca vi, em toda minha vida, um espécime deste tipo. Além de mais forte e mais resistente, ele estava se alimentando de meu poder. Como que consumindo minha energia. E eu estava só, já havia enviado Kaecilius para contatá-la. 

— Então você não tem certeza de que foi Scratch quem o enviou?

Mordo ergueu a sobrancelha, tentando entender o que Clea queria dizer com isso.

— Bom, isto nos leva ao cerne da questão.

Ele se levantou novamente.

— Clea, creio que há uma diferença central entre você e Wong.

Com isso ela se via obrigada a concordar. Na verdade, uma lista de coisas lhe passava pela cabeça.

— Wong sempre foi disciplinado ao extremo — prosseguiu Mordo. — Tal como seu pai antes, Wong foi um excelente seguidor das regras do Ancião. Mais do que o próprio Stephen, devo dizer. Ele nunca se atreveria a enveredar por um caminho das Artes Sombrias.

Ele se afastou da mesa, se aproximando do acesso a um dos corredores da biblioteca.

— Você, creio, tem um conhecimento muito mais profundo sobre essa parte de nosso universo.

Clea assentiu, querendo entender aonde Mordo ia com esse discurso.

— A visão de Scratch não me deixou dúvidas. Apenas um artefato possui conhecimento e poder o suficiente para causar aquilo. Um artefato embebido nos mais antigos encantamentos das trevas.

Como em um quebra-cabeça, as coisas se encaixaram na mente de Clea.

— O Darkhold.

Mordo concordou com a cabeça. 

— E como você deve saber…

— O N’Garai e o Darkhold são filhos do mesmo ser.

O Barão se aproximou novamente da mesa, apoiando-se sobre ela com os braços, ainda de pé. 

— Chthon.


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