Doutor Estranho: Inferno escrita por De Mysteriis Dom Sath


Capítulo 3
II - O filho pródigo




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O Castelo Mordo, como era chamado, era apenas uma parte da extensa herança da nobreza europeia da qual o atual Barão Mordo um dia jurara abdicar. Quando, ainda jovem, renunciou ao seu passado para se juntar ao Ancião em Kamar Taj, Karl Amadeus Mordo acreditava que nunca mais tornaria a ver aquela enorme fortaleza. De fato, aquele castelo encrustado em uma montanha na Transilvânia sempre lhe parecera deveras extravagante, um luxo que não pertencia mais àqueles tempos. Mas o idealismo do jovem Mordo havia morrido há muito, enterrado junto com sua fé nas promessas de Yao. Agora, transformado em sua residência pessoal, o castelo havia se tornado uma academia para estudo das Artes Sombrias. 

Os braços de Kaecilius ainda estavam presos pelas Faixas de Cyttorak quando Clea o fez entrar por um portal, que os levou diretamente ao seio do Castelo Mordo. Do outro lado do portal, Wong observava atentamente aquelas duas figuras. 

— Tome cuidado, Clea — pediu o novo comandante de Kamar Taj. Mais do que isso. Quem pedia era um velho amigo, que temia perder mais uma pessoa com quem se importava. 

— Eu sei me cuidar, Wong. Não se preocupe.

— Eu não tenho dúvidas disso. Mas você não sabe o que irá encontrar. 

 — Voltarei com notícias antes do nascer do Sol, Wong. Eu prometo. 

O feiticeiro assentiu em silêncio, sem disfarçar o semblante preocupado que ostentava. O portal se fechou entre os dois, deixando Clea a sós com Kaecilius e o Manto da Levitação, que a seguia de perto. 

— Onde estão os guardas de Mordo? — perguntou ela, desconfiada. Tentava manter um tom minimamente ameaçador. 

Olhou em volta para o ambiente em que estavam. Era um grande salão logo após a entrada do castelo, com um tapete verde-escuro se estendendo da porta de entrada até o outro lado do cômodo. As paredes eram de uma pedra cinza-escura, um tanto bruta, e diversos retratos da família de Mordo estavam pendurados. Um grande candelabro decorava o centro do teto, feito de ébano, com cada uma de suas velas incandescidas. 

— Ele já está te esperando — respondeu Kaecilius, sem esclarecer as dúvidas que povoavam a mente de Clea. 

Usou seus poderes para fazê-lo avançar, e, aos poucos, atravessou aquele imenso salão vazio. A outra parede possuía três portas. Uma era central, dupla e feita de metal sólido e escuro, e as outras, mais próximas da extremidade, eram únicas e espelhadas para compor com a simetria do cômodo. Enquanto andava em direção à porta central, Clea buscava focar seus pensamentos em seu entorno. Estava atenta a qualquer sinal de essência Faltine naquele castelo. Mas não qualquer essência, é claro. Uma em particular, cuja potência seria capaz de amedrontar qualquer mago de sensibilidade minimamente razoável. 

A porta central se abriu quando passou da metade do cômodo. O tapete de boas vindas se estendia, agora, por um corredor extenso que parecia levar a uma outra porta de mesmo tamanho. Tochas iluminavam aquela penumbra, penduradas nas paredes em uma quantidade insuficiente para tornar todo o caminho visível. 

— Você sabe que um pequeno atraso sequer é suficiente para que Wong envie as forças de Kamar Taj para destruir este lugar, certo? 

Kaecilius soltou um riso abafado, como que duvidando daquele fato. Clea se irritou e, com um cerrar de punhos, fez com que as Faixas se apertassem ainda mais, provocando dor no discípulo de Mordo. O Manto a cutucou no ombro, como que a avisando que estava exagerando, e Clea cedeu. Olhando para o caminho, ergueu um braço e conjurou uma chama lilás, que arremessou corredor adentro. Observou conforme o caminho se acendia, sem notar nada de particularmente suspeito. Permitiu-se, pois, avançar. Enquanto caminhava, passou seu olhar atento pelo entorno. O teto curvo do corredor estava repleto de rachaduras, malcuidado, e não passaria confiança para um visitante desavisado. As pedras que compunham as paredes também não pareciam bem encaixadas, e um pouco de musgo era visível entre elas. Mesmo o suporte das tochas eram de um metal enferrujado, o que também parecia sugerir um abandono daquelas instalações. 

Já mais próxima da porta, Clea ouviu algo vindo do outro lado. Num primeiro momento, não soube identificar o que era. Parecia apenas um grunhido. Conforme se aproximou, porém, percebeu. Era uma tosse. Uma tosse seca e forte, e, àquela altura, Clea já conseguia imaginar de quem vinha. Algo, no entanto, estava errado. Ela conseguia sentir que Kaecilius se tensionara ao ouvir aquilo. 

— Kaecilius, o que está acontecendo?

Ele não respondeu. Chegaram à porta, e, diferentemente da primeira, aquela não se abriu. Clea tentou usar seus poderes para abri-la, mas havia um selo de proteção a mantendo trancada. 

— Me solte — disse Kaecilius, em tom de ordem. — Tem algo errado. 

— Não confio em você — ela disse. — Isso é só mais uma armadilha de Mordo. 

A inquietude dele, porém, era genuína. Mesmo hesitante, ela o soltou. Kaecilius correu até a porta e tentou conjurar um feitiço para quebrar o selo, sem sucesso. 

— Me ajude a entrar — pediu ele, transparecendo sua preocupação. 

Ela gesticulou para que ele e o Manto se afastassem. Canalizando uma energia do fundo do seu ser, o corpo de Clea começou a ser percorrido por rápidas labaredas rosadas. Ela sentiu sua consciência se expandir, o calor das chamas Faltine formigando por cada extremidade de seu corpo. Olhou para a porta, enxergando o selo de proteção que fora colocado nela. Nunca havia visto nada similar. Quando sentiu que havia concentrado energia o suficiente, soltou. Não conseguiu enxergar o que se passou. Sua visão foi tomada por imagens que passavam rápido demais para que pudesse compreender. Viu a Dimensão Negra, os Acéfalos, e ouviu uma voz que parecia sair do fundo de sua própria mente. Era uma voz grave e profunda, que chamava o seu nome. Sabia que aquilo aconteceria se usasse seus poderes daquela maneira. 

Despertou daquelas visões ao sentir o Manto da Levitação a agarrar, salvando-a de cair no chão. Recobrando a consciência, percebeu que o selo estava quebrado, e a porta aberta novamente. Kaecilius, é claro, já havia entrado. O cômodo atrás da porta era uma espécie de salão de banquetes. Havia uma longa mesa de madeira ao centro do salão, e, na ponta oposta àquela em que estava a entrada, Mordo estava sentado, e grandes garras escuras o prendiam à cadeira de madeira. Era ele que tossia, cada vez mais apertado por aquela criatura, mas parecia inconsciente. Agora, Kaecilius estava ao seu lado, tentando libertá-lo daquilo. 

Clea esticou o braço e, de volta a si, conjurou os Maravilhosos Ventos de Watoomb. Em resposta, o ar da sala se concentrou, e uma forte corrente de vento se direcionou para Mordo. Seguindo os comandos que Clea gesticulava, os Ventos começaram a girar em torno da cadeira, erguendo-a do chão. Kaecilius aproveitou a brecha e, com os Cristais de Cyndriarr, atacou a criatura por trás, fazendo-a se soltar Mordo e cair para o chão. À primeira vista, parecia um amontoado amorfo e orgânico, mas que, aos poucos, parecia estar despertando. Aos poucos, a criatura se ergueu. Agora, Clea conseguia ter uma visão melhor do que se tratava. Com seus membros esguios e garras compridas, o demônio de pele acinzentada se ergueu, urrando em resposta. Sua cauda era igualmente longa, mas o grande destaque era a cabeça de formato alongado, quase como um flagelo, e os imensos olhos vermelhos que agora estavam mirados em Kaecilius. Um N’Garai, pensou Clea, reconhecendo a criatura. 

Ela usou os ventos para devolver Mordo ao chão, ainda inconsciente, e, impedindo que o demônio alcançasse Kaecilius, usou-os contra a criatura, empurrando-a contra a parede dos fundos do salão. O aprendiz de Mordo invocou outra vez os cristais, provocando outro som de dor, agora mais agudo e alto, por parte do N’Garai, que reagiu. Clea sentiu os Ventos cederem. Não estava em posse da Varinha de Watoomb, o que deixava seu encantamento mais fraco. A força do demônio era imensa, e ela não sabia se seria capaz de segurar por muito mais tempo. Mesmo com os ataques de Kaecilius, a criatura não parecia enfraquecida. Era hora de mudar sua abordagem. 

Clea soltou a criatura e pulou para o lado. Foi ágil o suficiente, pois, solto, o demônio se jogou sobre a mesa, que foi empurrada na direção de onde ela acabara de sair. Mais uma vez, juntou energia e invocou as Chamas dos Faltine, enquanto Kaecilius o alvejava com os Cristais. Aquilo parecia incomodar o demônio, mas não causava um verdadeiro dano. Os dois se colocaram de lados opostos do N’Garai, agora no centro do salão, e correram em volta dele enquanto intensificavam os ataques. 

— Precisamos mudar a estratégia — gritou para Kaecilius. 

— Não me diga — ele respondeu, desviando de uma tentativa do demônio de pular sobre ele e rolando para o lado. 

Ela se fez flutuar no ar e, abrindo os braços, fez surgir uma mandala lilás à sua frente, que girava conforme começava a falar.

— Pelos poderes do Senhor das Ilusões, eu invoco as Ilusões de Ikonn. 

Várias duplicatas de si própria começaram a brotar ao seu lado. As novas Cleas correram em direção à criatura, e, sem efetivamente atingi-la, invocavam falsos encantamentos que a distraíssem. Isso permitiu a Kaecilius se afastar. O demônio atingiu uma das cópias, atravessando-a e fazendo com que ela se desfizesse, e passou a correr atrás das demais, que fugiam. Com isso, a Clea original tentava ganhar tempo para pensar na melhor forma de agir. Notou que Kaecilius havia ido falar com seu mestre, que parecia começar a despertar de seu estado inconsciente. Clea não conseguia deixar de pensar o que a criatura estava fazendo ali, e por que não matara Mordo. Quando chegaram, ela parecia estar presa ao corpo dele, como que tentando absorver algo.  

Kaecilius estava tentando ajudar o Barão a se levantar. 

— Vamos, mestre. Vou tirá-lo daqui. 

Mordo vestia suas tradicionais roupas com um esquema de cores verde e amarelo, o que era bastante chamativo. Tinha também uma longa capa negra, quase tão negra quanto seus cabelos longos. 

— Não deixe a criatura escapar — disse Mordo, a voz baixa, soando quase que frágil. — Ele consumiu uma parte de meu poder. 

O aprendiz ficou surpreso com aquilo. Lançou um olhar para o demônio, que seguia perseguindo as duplicatas de Clea. A feiticeira lançou mais chamas sobre ele, que se mostrou incomodado e se voltou em sua direção. As cópias tentaram lançar seus falsos feitiços para atraí-lo, mas não adiantou. Seus grandes olhos vermelhos estavam focados em Clea. 

— Merda — disse ela, flutuando para trás como forma de ampliar a distância que os separava. 

A criatura deu alguns passos atrás, flexionando seus longos e esguios membros, e então saltou. Subiu alguns metros de altura, espantando Clea, mas, antes que pudesse atacar, algo o puxou para o chão. Enormes tentáculos feitos de energia, de um tom azul-claro, brotavam agora do chão de pedra do salão, arrastando o N’Garai, que com suas garras arranhava o piso em uma tentativa de escapar, em sua direção. Eram os Tentáculos Gelados de Ikthalon, um encantamento de magia negra que se usava da força de um poderoso demônio. Kaecilius os havia invocado. 

Os Tentáculos ergueram o demônio novamente e, se desfazendo em um misto de névoa e partículas de energia, impediram Clea de ver o que se passava. Quando a fumaça sumiu, a criatura estava congelada, flutuando dentro de um enorme globo de energia azul-claro. 

— Obrigada — disse para Kaecilius, enquanto voltava ao nível do chão. 

— Não fiz por você — ele respondeu. 

Ela olhou novamente na direção da criatura. Mordo, agora de pé, havia se aproximado do globo. 

— Em nome do Terrível Dormammu — começou o Barão — eu ordeno que devolva o que não te pertence. 

Clea estremeceu ao ouvir aquilo. Mordo estava invocando um feitiço que, ela sabia, cobraria um grande preço sobre si próprio. No entanto, pareceu funcionar. Um enorme fluxo de energia saiu do globo, atingindo Mordo em cheio. Ele a absorveu, e, como num passe de mágica, ajeitou a própria postura. Parecia revigorado. O Barão abriu os braços, e, com seu poder restaurado, fez surgir duas enormes mãos demoníacas, feitas de pura energia alaranjada, como fogo, e dotadas de longas garras, que agarraram a esfera de gelo, pressionando-a. Ela reconheceu aquele encantamento sombrio: eram as Garras Demoníacas de Denak. A esfera se rompeu em mil pequenos pedaços, mas o N’Garai se viu preso pela invocação de Mordo.

As mãos envolveram o demônio. Mordo invocou outro feitiço, agora as Adagas de Denak, e múltiplas lâminas daquela mesma energia brotaram no ar em torno do demônio. Em um rápido instante, as mãos desapareceram, deixando o N’Garai brevemente livre, e as várias adagas choveram sobre ele, penetrando em sua pele enrugada. Sem conseguir escapar, o demônio caiu morto no chão. 

Kaecilius e Clea assistiram aquilo sem dizer nada. Mordo respirou fundo e, já plenamente disposto, virou para trás, olhando para Clea. Ela notou uma pequena linha negra que circundava seus olhos. Era efeito do uso dos poderes de Dormammu. 

— Filha de Umar — disse Mordo. — Peço perdão pela falta de cortesia. Me daria a honra de me acompanhar até minha biblioteca? Estamos diante de uma emergência que, creio eu, exige que deixemos no passado nossas desavenças.


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