Os Irmãos Park escrita por André Tornado


Capítulo 4
Aprendizagens




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Mike sabia que o Brad e o Rob tinham razão, quando lhe diziam que usar aquela capa era uma forma infalível de atrair as atenções que eles não queriam ter, mas custava-lhe largar a peça de vestuário por tudo o que esta significava.

No entanto, no primeiro intervalo, Mike concordou com a crítica de Brad que lhe disse assim:

— Andamos com esquemas para que não saibam que estamos juntos, sentamo-nos em lugares longe uns dos outros nas aulas comuns, escolhemos áreas de estudo diferentes para nos cruzarmos o menos possível, temos cada um a sua turma… e depois tens a escola toda a comentar sobre o que vestes. Sabes a quantidade de piadinhas que já ouvi com a minha audição hiperdesenvolvida? Tive de bloquear o alcance dos meus ouvidos porque já estou a ficar enjoado. Não estamos a ser muito coerentes, pois não?

— Amanhã já não a trago – disse Mike cabisbaixo. Ele também tinha ouvido tudo o que Brad afirmava ter escutado. – Mas hoje… como é o primeiro dia…

— O Mike não usou a capa no primeiro dia na escola da cidade de onde fugimos para aqui e ele acha que foi por causa disso que não tivemos tanta sorte – explicou Rob. – Nunca vi um vampiro tão ritualista e supersticioso. Devia ser ao contrário. Os humanos é que têm superstições idiotas contra… contra criaturas como vocês.

— Olha que os humanos também não gostam de bruxos – disse Brad.

— Não sou um bruxo. Sou um feiticeiro.

— Para os humanos isso é a mesma coisa.

— Não é, não!

Mike afastara-se com o aviso para terminarem a discussão, depois de verificar que a conversa deles não tinha atraído olhares curiosos. Sentenciou que teriam de continuar a limitar os encontros. Brad disse que iria tentar encontrar o laboratório onde iria ter química e Rob lamentou-se que dali seguia para uma aula de teoria do desporto, uma seca completa, pois se se tinha inscrito para aquela área era para ter atividade física, não para tirar apontamentos sobre diversas modalidades desportivas.

Mike foi à procura da sala onde iria ter Francês, uma das disciplinas específicas do seu curso. Por algum motivo achavam que os alunos de artes tinham de ser poliglotas, pois também iria aprender Alemão e Japonês, que ele escolhera de um lote de seis outros idiomas.

À entrada do pavilhão parou. Despiu a capa, dobrou-a em pregas impecáveis e colocou-a no braço. Também estava a ficar farto, admitia, dos olhares embasbacados dos outros sobre ele. Queriam saber mais sobre aquela opção estilística, mas como o reconheciam como um dos alunos novos, não se aproximavam com o à vontade que a abordagem requeria e deixavam-se ficar a inventar teorias.

Acariciou o tecido por instantes e lembrou-se da razão de insistir em usar aquela capa que era um acessório no mínimo anacrónico e esquisito para um adolescente de dezasseis anos. Sim, podia ser um ritual ou uma superstição, como dissera Rob, mas também era… um símbolo dos inícios. Porque fora quando ele estava finalmente pronto para ser um vampiro normal que aquela capa lhe fora colocada sobre os ombros – nova, pesada e perfeita. Estava na mansão e acabava de concluir com êxito a sua aprendizagem.

A mansão era uma casa enorme e decrépita que se encontrava abandonada. O seu estado era tão deplorável que ninguém se aproximava da propriedade e o local era tido como assombrado, o que correspondia à verdade. A mansão era o lar de um lote de criaturas fantásticas que aí eram acolhidas para serem reinseridas na sociedade das pessoas ditas normais e para que conseguissem sobreviver sem denunciar o seu estatuto especial. Funcionava como uma academia, uma escola, um reformatório, o que se lhe quisesse chamar. Era gerida por um mordomo, um morto-vivo fruto de uma experiência falhada com pedaços de cadáveres, assim muito ao estilo da criatura do médico Frankenstein.

O mordomo geria a habitação, cuidando, dentro das possibilidades, do seu interior, tornando-a numa casa aceitável – para os seus padrões, claro está. Mantiveram-se as sombras, as teias de aranha, os reposteiros rasgados e o tom lúgubre de cada compartimento, mas isso não significava que a casa era menos confortável. Longe disso. A casa era até bastante bonita e estava decorada com um requintado bom gosto. Dependia da perspetiva.

A mansão, depois de devidamente arranjada, foi transformada num orfanato que acolhia criaturas tresmalhadas e que precisavam de orientação. Lobisomens que não sabiam ser lobisomens, feiticeiros que dominavam mal os seus feitiços, duendes que só faziam travessuras, vampiros que eram incapazes de limitar a sua sede, mortos-vivos com sérios problemas de pele e de carne, anões zangados, fadas arrogantes, fantasmas que apenas sabiam uivar, só para dar um exemplo.

O acolhimento fazia-se por turmas de até trinta criaturas, porque mesmo com alguma magia o espaço era limitado e continuava a pertencer ao mundo físico dos humanos. Nem era possível levar a mansão para outro sítio quando o que se pretendia era educar as criaturas para viver nesse mundo físico dos humanos – a parte prática era fundamental durante a aprendizagem.

Era o mordomo que se encarregava de tudo, desde os recrutamentos até aos ensinamentos. Ao fim de algum tempo, as criaturas passavam a vê-lo como um tutor, um mentor, uma figura paterna. Os cursos, podiam chamar-se assim, duravam de um ano a um ano e meio. Era o tempo suficiente para que as criaturas deixassem os seus vícios, os seus medos e as suas más condutas e passassem a agir de uma maneira que as fizesse passar despercebidas por entre as outras pessoas.

A entrada para a mansão podia ser feita de forma voluntária – as criaturas, assim que eram identificadas, eram aliciadas para fazerem parte da família da mansão –, mas também havia aquelas mais desconfiadas e teimosas que era preciso recrutar à força. Estavam tão feridas e enraivecidas que não podia ser feito de outra maneira. Foi o que aconteceu com o Mike. Ele não queria ouvir nada, nem ninguém, quando o mordomo o topou. Só queria satisfazer o seu apetite por sangue e sofrer com o seu azar, culpando o universo inteiro por ser um vampiro.

Então, Mike acabou por entrar na mansão arrastado, depois de ser capturado numa armadilha montada num bosque quando se preparava para atacar um grupo de campistas incautos. Mike resfolegou, urrou e berrou ao ver-se prisioneiro.

Para os casos mais difíceis começava-se pelas masmorras da mansão, uma série de pequenos quartos situados na cave. Mike passou aí alguns dias aos coices e às cabeçadas com as paredes. Quando ficou mais calmo, enfraquecido pela fome e pela sede, o mordomo foi ter com ele. Agachou-se e passou-lhe uma mão pelos cabelos. Mike rosnou, mostrando os caninos desenvolvidos a pingar de saliva amarela.

— Estou aqui para te ajudar, Mike – disse o mordomo carinhosamente. – Esta é a tua nova casa, o teu novo lar. Vais conhecer pessoas novas, pessoas que são como tu, pessoas que vais considerar como teus amigos. Espero que, daqui a algum tempo, também eu seja um dos teus amigos.

— Nunca! Nunca!

— Mike, vou deixar a porta aberta. E sabes por que razão vou deixar a porta aberta deste quarto que tem estado trancado? Porque confio em ti.

— Nunca…

— Estamos à tua espera no salão principal. Faltas tu. És o último desta nova classe. Queremos que te juntes a nós para a nossa primeira reunião de família.

O mordomo foi-se embora. Mike ficou a chorar e a soluçar, esganado por uma sede incomportável que o deixava enfraquecido e vingativo. O seu estado era tão deplorável que ele perdia o controlo e ficava inofensivo e prostrado, para a seguir ganir cheio de pena por si mesmo.

Arrastou-se para fora do quarto, que tinha sido a sua cela, decidido a fugir. Subiu as escadas contando os degraus com dores em todos os centímetros do corpo. Percorreu o corredor apoiado nas paredes, empurrando-se com o cotovelo que usava como alavanca para dar passo atrás de passo. Encontrou a porta da saída, o átrio, viu que o caminho para o salão principal era também por al.

Tinha de fazer uma escolha. E fê-la.

Entrou no salão principal altivo. Estavam lá os outros sentados em cadeiras, poltronas, no sofá e no divã, estava lá o mordomo de pé junto à lareira onde crepitavam labaredas mansas que pintavam as paredes e os rostos de laranja. Como não tinha força nas pernas, Mike atirou-se para uma cadeira vazia, a única que não estava ocupada. Cruzou os braços, voltou a cabeça e desatou às rosnadelas, inquieto e contrariado.

O mordomo só lhes deu as boas-vindas e indicou-lhes os quartos onde iriam ficar alojados. Aconselhou a que fossem dormir, mesmo que não soubessem o que era isso ou que não precisassem do sono para repousar. Podiam só ficar deitados e deixar que a noite acabasse. No dia seguinte começava a instrução e prometeu-lhes que seria divertido.

Mike não se levantou da cadeira e ignorou que o tivessem chamado, com um entusiasmo que o deixou ainda mais irritado. Só ergueu o olhar transtornado ao se aperceber de alguém que se punha à sua frente. Era o mordomo.

— Vem comigo.

Ele obedeceu, arrastando-se pelo chão, gemendo num sofrimento que se espalhava por todas as células do seu corpo imortal, como se estivessem a implodir. Chegou a uma outra sala, mobilada com uma mesa comprida rodeada de muitas cadeiras, Mike não as conseguiu contar. Trepou para uma delas, debruçou-se sobre a mesa a arfar e a engasgar-se. Apareceu uma tigela à sua frente.

O perfume que se evolou do líquido escuro que enchia o recipiente despertou-lhe todos os sentidos. Mike endireitou-se, guinchando e silvando. Agarrou na tigela com ambas as mãos, levou-a à boca e bebeu o sangue quente com sofreguidão. Fios vermelhos escorreram-lhe pelo queixo.

Mike bebeu tudo de um só gole. No fim soltou um prolongado suspiro de satisfação, deitando a cabeça para trás, de olhos fechados. O mordomo disse:

— Esse é sangue humano, obtido em bancos de sangue de hospitais que colaboram com o projeto que estou a desenvolver aqui. Esse sangue vai te ser dado sempre que precisares dele para repores as tuas energias e para te alimentares, mas o que vamos querer que aconteça é que deixes de precisar desse tipo de sangue. Existem outras maneiras. É possível tornares-te num rapaz saudável e forte, capaz de enfrentar o mundo e a luz do sol, sem recorreres a sangue humano. Eu vou ajudar-te a percorrer esse caminho.

— Não quero…

— Esta noite não queres, eu compreendo. O sangue humano é demasiado saboroso e irresistível conforme tu és agora. Mas depois de amanhã, depois de uma semana, um mês e outros meses que se vão suceder a esse, vais desejar ser uma pessoa diferente e serás tu o primeiro a recusar sangue humano. E eu estarei ao teu lado, Mike. Sempre. Até que possas voar com as tuas próprias asas.

— Eu já voo com as minhas asas quando me transformo num morcego.

— O Brad é outro vampiro e vai partilhar contigo o quarto na casa. Vai ser o teu primeiro companheiro. Terás outros. Começarás pelo Brad e o Brad vai começar contigo. Ele é o teu irmão a partir de hoje.

— Não tenho irmãos! – gritou Mike levantando-se tão de repente que derrubou a cadeira.

— Somos todos teus irmãos a partir de hoje. – O mordomo recolheu a tigela. – Deverás subir ao quarto e amanhã começaremos o treino.

— E se eu recusar? Se eu não quiser nada disto que me estás a oferecer?

— Tu és um rapaz inteligente e tu queres o que te estou a oferecer. Queres desesperadamente, daí que estejas tão revoltado e zangado. Só que ainda não sabes que queres… Eu estarei também nesse dia em que vais perceber isso e verás que vais sentir-te bastante melhor. Estás dispensado.

O mordomo voltou costas e Mike correu para a saída. Rodou e puxou pela maçaneta, escancarou a porta. Um vento gelado veio da noite, mas ele não o sentiu. Só lhe mexeu com a franja comprida e acariciou-lhe o rosto dormente. Podia fugir, era só cruzar o umbral e estava livre novamente. No entanto, não conseguiu dar esse passo. Esperava que o mordomo o detivesse da mesma forma dramática como o tinha capturado, na floresta, em que os dois tinham lutado um contra o outro. Como o mordomo não correra atrás dele, deixou de ter piada.

Os ombros de Mike murcharam, fechou a porta. Subiu a escadaria até ao segundo piso e foi para o seu quarto, que iria partilhar com esse tal de Brad. Quando entrou, o outro estava deitado e fingia que dormia. Ele sabia que era só um fingimento, porque os vampiros não sabiam dormir, nem nenhuma das outras criaturas que tinham estado naquela reunião no salão principal, mais cedo. Então, ele também se deitou e fingiu dormir, naquele estado de suspensão em que as horas passavam mais depressa.

No dia seguinte, ele apresentou-se, ao lado de Brad, para a primeira lição. A obediência e a rendição não eram totais, mas quis experimentar. Primeiro, para sabotar aquilo. Depois, para se rir. Por último para atirar na cara do mordomo o seu falhanço, porque ele nunca iria ser convertido num vampiro dócil, aguado e anónimo. Ele adorava matar!

Os dias foram se sucedendo e Mike foi, aos poucos, abandonando a sua postura agressiva e insolente. As lições começaram por ser casuais e ligeiras, quase como uma brincadeira que se partilhava entre os alunos, porque descobriram que eram todos alunos ali. Quando se tornaram duras e exigentes, Mike viu-se mais envolvido e empenhado em superar os desafios, por uma questão de orgulho.

Por outro lado, o Chester chegou e o Mike ligou-se logo a esse rapaz diferente que congregou de imediato todas as atenções. Todos ficaram amigos do Chester e até Mike, que ainda não tinha estabelecido uma ligação com o Brad, aproximou-se do aluno novo que foi integrado extraordinariamente naquela turma, depois de o mordomo ter cedido aos seus apelos bastante exagerados e teatrais.

O Chester era único, uma criatura que não se enquadrava em nenhuma categoria. Até o mordomo tivera dificuldade em classificá-lo e, num primeiro momento, duvidou se o seu auxílio e orientação seriam os adequados na situação do rapaz escanzelado e nervoso que roía as unhas e pestanejava sempre que o confrontavam. O que se passava com o Chester era uma maldição, não era uma habilidade, uma condição ou um poder. Ele tinha sido enfeitiçado por uma bruxa invejosa a viver uma vida dual entre a de humano e a de animal, mas o feitiço não lhe fora dirigido e, pronto, acabara por resultar numa trapalhada. O Chester não era um rapaz comum. Era capaz de se transformar num dragão quando abria a boca e lançava um grito específico que tinha de durar dezassete segundos. Na forma de dragão, perdia a razão, podia queimar e reduzir a cinzas quem se atravessasse no seu caminho, por instinto e não por maldade. Ao voltar a ser um rapaz, não se lembrava do que tinha feito.

Foi o destino que acabou por colocar Mike no caminho do Chester quando ele se transformou um dia. Mike estava encurralado e implorou por ajuda, por pouco não era esturricado pelas labaredas que o dragão dourado cuspia. O mordomo salvou-o e Chester, quando soube do que aconteceu, chorou muito, envergonhado. O Mike esteve muito tempo com ele, a tentar consolá-lo. Foi quando Chester pediu que o ajudasse que Mike percebeu que estava num ponto sem retorno. Se escolhesse ajudar o Chester, ficaria para sempre comprometido com a mansão e com o mordomo. Disse que sim, disse que iria ajudá-lo e sentiu-se tonto por não perceber qual a razão que o movia àquela solidariedade.

Aos poucos foi abandonando a sua atitude arrogante, foi ficando menos egoísta, foi se importando menos com a sua raiva e passou a dedicar-se mais ao que havia à sua volta. Não forçou nada. Simplesmente seguiu os seus novos instintos. Tornou-se mais amigo do Brad também, começou a conversar com ele amiúde e a partilhar as suas impressões e memórias de quando ainda era humano. De cada vez que o fazia, sentia que retirava peso de cima de si.

O mordomo felicitou-o e Mike odiou-o por isso. Não fazia nada para que chegasse a algum lado e o mordomo mostrou-se, pela primeira vez, zangado. Gritou-lhe e disse-lhe que ele estava na casa precisamente para chegar a algum lado e que estava a ser vigiado de perto. Se falhasse…

— E se eu falhar? O que me acontece? Sou expulso da mansão e sou devolvido ao mundo exterior… e depois? Eu vim do mundo exterior como sou agora. Está bem, já não sou igual àquele vampiro que chegou à mansão, mas as mudanças não são assinaláveis e nem eu pretendo empenhar-me mais do que isto. Nem pelo Chester! Escusas de vir com esse argumento idiota.

Como castigo, o mordomo mandou-o realizar um exercício esgotante. Obrigou-o a viajar incógnito e rapidamente pela província sem ser detetado, apanhado ou identificado, escolhendo o dia e não a noite. Mike completara o circuito em nove dias e regressou sedento, faminto e exausto. O mordomo deu-lhe uma tigela de sangue que ele sorveu avidamente. A seguir contou-lhe que não era sangue humano, mas uma mistura de sangue de vários animais. Mike atirou a tigela contra a parede e quis fugir da mansão. O mordomo dominou-lhe o acesso de fúria. Preso nos braços do morto-vivo, deixou de se debater e choramingou que se sentia farto.

Fechou-se no seu quarto durante dois dias. Deram-lhe esse espaço. O mordomo apareceu no terceiro dia. Mike estava sentado num banco, imóvel, de frente para a janela. Vira o sol e vira a lua, vira o desenrolar dos dias, da luz e das sombras que cresceram, minguaram, que tornaram a crescer perfazendo as horas desses dois dias.

Sentiu um agasalho sobre os ombros e costas. Estremeceu. Não de frio – de compaixão. Percebia-se como miserável e solitário, percebia-se um falhanço. O mordomo disse-lhe:

— Esta capa é especial. Deves ter-me visto várias vezes a usá-la. Foi um presente de um grande amigo. Do meu tutor. Aquele que me ajudou a ser quem eu sou hoje. Sim. Como tu, Mike, eu também estava triste e zangado com o mundo por não ter tido descanso na morte. Afinal, morri, libertei-me das preocupações normais de todos os dias, de todas essas canseiras mundanas… e houve um engraçadinho que resolveu despertar o cemitério onde eu descansava com um feitiço mal feito e, pronto, transformei-me num morto-vivo. Vagueei pela terra, tentando voltar à morte, a fazer muitas maldades, mas não tive qualquer sucesso nesse propósito. Fui recolhido por um outro morto-vivo que usava esta capa, a única peça de roupa que não se rasgara, entretanto, nas suas desventuras. Ele foi meu amigo. Ajudou-me. Consegui compreender quem sou, ao mesmo tempo que aceitei quem tinha sido e que não podia voltar a ser, por muito que insistisse. No fim separei-me do meu tutor… os tutores são feitos para que nos separemos deles no final e tu também vais deixar esta casa… no momento da despedida, ele deu-me esta capa como um prémio por eu ter sido um excelente aluno.

— Porque me estás a dar a capa se este não é um momento de despedida e eu nunca fui um excelente aluno? Aliás, acho que sou o pior da turma… Não mereço esta capa.

— Mereces, sim, Mike. Tens ajudado outros nesta casa e tens feito progressos, embora tu, por teimosia, julgues que não. Aceitaste o sangue diferente e estás no processo de deixares de consumir sangue humano. Em breve, tal como os teus colegas, estás pronto para deixar a mansão e para seres feliz.

— Nunca mais serei feliz…

O mordomo não lhe respondeu e saiu do quarto. Mike encolheu-se. Enrolou-se na capa e ficou mais dois dias no mesmo lugar. O Brad não o incomodou e impedia o Chester, ou o Joe, o Dave ou o Rob, de entrar no quarto. Ao fim desses dias todos, tinham sido sete, Mike desceu para o salão principal. O mordomo esperava por ele junto à lareira acesa. O fogo era um mero capricho, pois não havia ali ninguém que pudesse sentir frio, ou mesmo calor.

— O que é preciso fazer? – perguntou Mike.

— Nada – respondeu o mordomo. – Já está feito. Tu aprendeste a lição.

— Aprendi… não tenho a certeza se…

— Vejo que estás a usar a capa. Ficas muito majestoso com a capa.

— Ah… os vampiros… eles usam capas, não usam?

— O Brad nunca me pediu para usar uma.

— E se o Brad quisesse? Também tinhas uma capa para ele e uma história parecida à que me contaste para que ele ficasse feliz e se sentisse especial com a tua atenção?

— És demasiado desconfiado.

— Fizeram-me assim depois que me injetaram o veneno nas veias que me converteu… nisto.

— Não. A capa é única, Mike, e fui sincero contigo. Não foi uma dissimulação para te acalmar. Tu és um rapaz inteligente e sensível, saberias se te estaria a enganar. Como disse, já aprendeste a lição. Precisas de reforçar alguns pontos, de repetir algumas tarefas para ficares mais seguro no que deverás fazer a seguir… mas a tua aprendizagem terminou. Nada mais tenho para te oferecer, Mike.

— Afinal, a capa foi um prémio.

O mordomo sorriu-lhe enigmaticamente.

Nos dias seguintes, Mike aprendeu a fazer a mistura do sangue de animais para desabituar-se do sangue humano, aprendeu a evitar as queimaduras do sol, aprendeu a dominar os seus poderes. Aceitou ter aulas sobre matérias prosaicas como línguas, ciências, matemática. Participou em jogos coletivos e individuais para exercitar o físico e para se acostumar a funcionar em equipa. O mordomo tinha-lhe dito que ele já tinha aprendido tudo, mas depois daquela crise e de ter recebido a capa, Mike achou que só começara a aprender no momento que traçou uma linha entre o antes e o depois.

Havia um Mike antes e havia agora um Mike depois. E ele preferia, claramente, o Mike depois.

O Brad também gostava mais do Mike atual. Colava-se a ele, dizia que eram irmãos. Mike irritava-se, porque não eram irmãos. Eram o mais diferente um do outro que podiam ser. O Joe meteu-se na discussão e disse-lhe que eram irmãos, sim. Não só o Brad e o Mike, mas ele próprio, o Chester, o Dave e o Rob incluídos. Os seis eram irmãos uns dos outros. Mike riu-se. Rob lançou um feitiço que criou laços invisíveis entre eles e o Chester fez uma festa. Nessa noite estiveram todos em cima do telhado, a partilhar uma garrafa de sumo de uva – era mesmo sumo de uva, não era vinho – a contar anedotas e a criar histórias para as constelações que as nuvens deixavam ver, enquanto passavam naquela enorme tela escura, empurradas pelo vento.

Mike usara a sua capa na ocasião e todos lhe admiraram a vestimenta, entre a simpatia e a inveja. Joe ainda lha pedira emprestada e ele recusara-se, com uma veemência tal que os seus olhos ficaram vermelhos e os seus caninos surgiram, pingando saliva. Rob advertiu:

— Essa capa é sagrada para o Mike. Nunca ouses tocar no seu tecido com a ponta dos dedos, nem inventar de querer usá-la como se fosse uma peça de roupa banal que se pode partilhar. A capa do Mike é especial. Tem uma magia que nem eu, ou qualquer mago mais poderoso do que eu, seria capaz de conjurar.

Mike acalmou-se e não explicou o motivo da sua reação, nem esclareceu melhor o que o Rob dizia porque, no fundo, correspondia à verdade. No fundo também, todos conheciam essa verdade. Eles perceberam, porque eram amigos e eram irmãos. Choveram piadas sobre a atitude do Joe, que amuou e que se colocou de parte do grupo, para ser novamente integrado, com mais piadas.

Havia, portanto, muitas memórias associadas àquela capa e Mike sentia-a, agora que já se tinham passado tantos anos sobre a sua estadia na mansão, como parte indelével da sua pessoa. Carregava o que ele fora e no que ele se fizera, exatamente como o mordomo tinha dito.

Mesmo que toda a gente à sua volta, incluindo o Brad e o Rob, que sabiam de toda a história, troçasse dele e da mania de usar aquela capa antiquada, pesada e nada adequada a um adolescente de dezasseis anos, ele haveria de fungar com um desdém e um orgulho enormes, sorrir com condescendência e achá-los todos uns idiotas. O Brad e o Rob metidos no meio, que ele não reconhecia ninguém sempre que o deixavam zangado.

No entanto, percebia os argumentos do Brad e também do Rob, que evitava sempre as discussões. Eles tinham, de tempos a tempos, de recomeçar noutra cidade que não os conhecesse, ou simplesmente recomeçar quando terminavam o secundário – já que  não podiam envelhecer e dava muito nas vistas estarem sempre iguais depois de dez ou quinze anos passados. Era preferível e recomendável que não os reconhecessem. Ao usar a capa, Mike tornava-se num alvo, pois estava a repetir um comportamento que, naquela era da internet, das fotografias a tudo e mais alguma coisa, das redes sociais e das notícias rápidas, podia ser facilmente captado e analisado, estabelecendo-se um caminho infalível até eles que os identificaria sem sombra de dúvidas como… rapazes diferentes.

Mas ele era arreigado às suas crenças, às suas amizades, aos seus princípios. O mordomo dissera-lhe, naquele último dia, mãos pousadas sobre os seus ombros que a capa vestia:

— Mike, continua assim. Nunca mudes.

E ele não iria mudar.

Sorriu e a aula de Francês começou.


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