Os Irmãos Park escrita por André Tornado


Capítulo 30
O baile de inverno




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Faltavam cinco dias para o Natal e a cidade estava toda enfeitada com luzes e árvores decoradas, a lembrar a todos que se estava naquela época especial do ano em que a magia se distribuía por todos, crentes e não crentes.

Rob achava piada ao Natal. Era a única vez em que podia fazer alguns feitiços que deixavam pessoas felizes, especialmente crianças ou desencantados que tinham deixado a criança morrer dentro deles. Andava com a sua varinha no bolso e usava-a disfarçadamente, escondendo sorrisos e as suas generosas ofertas. No fim, ficava muito satisfeito com as suas ações e imbuía-se do espírito natalício, para se esquecer de que as festas humanas eram, de certa forma, proibidas para criaturas como ele. Não contava a ninguém, nem aos irmãos, o que fazia, mas sabia que eles desconfiavam de que alguns acontecimentos improváveis, que até faziam notícia na comunicação social local, seriam sua obra. Em conclusão, Rob adorava o Natal.

Mike e Brad ignoravam a quadra com alguma sobranceria magoada. Tinham os mesmos sentimentos do seu irmão feiticeiro. Lamentavam terem sido arredados das festas e dos feriados que moviam a sociedade que acrescentavam colorido à rotina, que davam um propósito a tantas vidas cinzentas, o sobressalto que eles estavam proibidos de sentir nas suas existências imortais, mas jamais iriam admitir a sua falta.

No entanto, foi com alguma excitação, em parte emulada, em parte genuína, que os três se vestiram para o baile de Natal da escola. Cumpriam o ritual que os igualava aos outros estudantes e apreciaram o momento com sorrisos provocadores. Brad, como era seu costume, mostrava-se o mais empenhado. Tinha ajudado na organização da festa e queria que toda a gente apreciasse o seu trabalho, que se divertisse e que, no final, guardasse daquela noite a melhor das recordações.

— Vai tudo correr bem, Brad – afiançou Rob, julgando que a sua agitação se devia ao receio de que acontecesse algum imprevisto que fosse destruir a sua reputação de organizador do evento.

— Eu sei que vai correr bem. Tenho certeza de que vai correr bem! – retrucou Brad, eufórico. – Vai ser magnífico, meus irmãos. Garanto-vos o melhor baile de sempre! A organização esmerou-se e, comigo a fazer parte desta, certifiquei-me de que não faltou nenhum pormenor. Tratei da parte da animação musical com o Elliot e o nosso grupo, mas também fui verificando um ou outro detalhe da parte que competia aos outros grupos. Houve até quem me achasse incansável.

— Na verdade, tu nunca te cansas – concordou Mike ajeitando o laço ao pescoço, ajustando as pontas com os seus dedos sensíveis, uma vez que não podia fazer isso a um espelho. Naquela noite estava também a usar a sua capa, escovada, lavada e engomada. – Acabas por ser um excelente elemento para organizar o que quer que seja. Acredito que a festa será excelente, apenas porque tu, Brad Park, fizeste parte da comissão que preparou tudo.

— Muito obrigado, senhor Mike Park – agradeceu Brad, fazendo uma vénia zombeteira. – Muito obrigado. A tua confiança em mim e os teus elogios são deveras motivadores.

— Esse palavreado não condiz contigo – brincou Mike, largando o laço que considerava estar perfeito. – Temos de nos mostrar mais adolescentes e menos… imortais.

— O Brad está apenas feliz – disse Rob.

Os dois vampiros olharam para o feiticeiro ao mesmo tempo. Rob usava um fato espampanante em tons de verde e vermelho, com uma gravata garrida com desenhos natalícios – bolas, velas, azevinho, estrelas, bengalas doces. Qualquer traje que usasse teria de ter as inevitáveis estrelas, eram uma imagem de marca. Enquanto Brad usava um casaco num tom escuro e uma gravata da mesma cor, que combinavam com umas calças um pouco mais arrojadas num padrão escocês, Mike optara pelo fraque clássico, laço e a sua capa imponente, que lhe davam o ar distinto de um cavalheiro vindo diretamente do século romântico. Estavam todos muito elegantes.

O par de Brad era a irmã mais velha do Elliot, chamada Caroline, que se encantara com ele e que o reservara sem apelo, nem agravo. Brad adorara ser desejado com essa intensidade e aceitara imediatamente o convite da moça que gostava de lhe apertar as bochechas e de lhe dizer que era muito fofinho. Ele derretia-se e ela suspirava. Contava, no fim da noite, trocar alguns beijinhos com a Caroline. Tudo sem compromisso, porque ele gostava de ser livre.

O par de Rob era uma colega da sua turma que ganhara ir ao baile com o feiticeiro depois de um sorteio entre três moças que o disputavam. Era incrível como o magnetismo do Rob continuava a fazer estragos por onde ele passava, onde quer que fosse, independentemente da cidade ou da região. Havia qualquer coisa de fascinante e viciante em Rob que o fazia ter muito sucesso no público feminino. Brad já estava habituado, mas a sua curiosidade levava-o a perguntar o que fazia. Rob encolhia os ombros, abanava a cabeça e dizia, com um ar perfeitamente inocente, que não sabia. Para aquele baile, a sortuda chamava-se Cathy e, se ainda não estava apaixonada, faltava pouco para isso. No final da noite também haveria beijinhos para Rob, seguramente.

Em relação a Mike, o seu par seria, obviamente, sem qualquer dúvida ou invenções, a Anna Hillinger. Para o vampiro não haveria beijinhos. Ou talvez houvesse. O que os três irmãos sabiam é que se acontecesse um envolvimento entre os dois seria o início de algo sério e isso era mais enervante do que o encontro de uma única noite. Só que havia uma coisa que eles sabiam, que eles tinham aprendido desde o início, fora a sua primeira lição na mansão gerida pelo mordomo. Era impossível contrariar o destino. E, no caso do Mike e da Anna, estavam perante a atuação das forças ocultas manobradas pela deusa Fortuna e sabiam que não podiam, nem deviam interferir.

Era assustador e os três irmãos evitavam falar sobre isso, ou de comentar os seus respetivos pares, pois a conversa iria desembocar na Anna, e o Mike tinha-os proibido, implicitamente, de fazerem a referência. No fundo, estavam assustados e queriam aproveitar a festa. A parte engraçada de se passarem por rapazes normais, adolescentes que andavam numa escola, era precisamente de se misturarem no meio da multidão, de cumprirem os mesmos rituais e de experimentarem as mesmas pequenas maravilhas.

Brad abriu a porta e fez uma vénia bastante floreada como que a anunciar a entrada para a antecâmara do mundo esplêndido e requintado do baile de Natal. Assim que saíssem de casa, esperava-os animação, paixão e felicidade. Rob e Mike entreolharam-se e trocaram um sorriso satisfeito. Estavam preparados. Adequadamente vestidos, confiantes, perfumados e bonitos. Tentariam sentir as boas vibrações do encontro entre os estudantes, tentariam fazer parte da celebração, tentariam misturar-se. Esse era o fingimento mais elaborado, quando entravam num grupo onde não se podiam destacar pelos piores motivos. Ser como os outros, sem forçarem as reações ao ponto do ridículo.

A noite estava muito límpida e gelada. No céu sem nuvens brilhavam as estrelas com o fulgor discreto de milhares de diamantes. Nevara nos dias anteriores e os passeios bordavam-se de branco, o que ajudava a iluminar o breu noturno natural. Luzes coloridas piscavam na distância, provenientes das exageradas decorações de Natal com que alguns vizinhos do bairro decoraram as suas fachadas.

Brad saiu atrás dos irmãos e fechou a porta.

— Preparados?

— Mais do que preparados – afirmou Rob sacando da sua varinha do bolso interior do casaco.

— É só para irmos, não é verdade? Foi o que o Mike concordou.

— Sim – anuiu o feiticeiro. – Um único feitiço que nos leve até à escola.

— Para voltar, é cada um por si.

— Não olhes para mim, Brad – disse Mike. – Se eu concordei com o feitiço… está concordado! Seria bastante aborrecido fazermos a distância a pé. E os outros têm que acreditar que foram os nossos pais que nos levaram no seu automóvel, tal como acontece com a maioria dos alunos. A magia do Rob vai contemplar essas duas necessidades. A viagem e a ilusão.

— Perfeitamente, Mike – concordou Brad. – A noite está muito bonita, perfeita para uma festa. Quero chegar ao baile no meu auge, com o fato impecável e com os vincos todos no seu devido lugar, sem a cabeleira desgrenhada ou os sapatos empoeirados. Levei muito tempo a engraxá-los.

— Preparados? – perguntou Rob.

E sem esperar uma resposta, agitou a varinha num meneio vagaroso. Num abrir e fechar de olhos, estavam no passeio oposto ao da entrada do Instituto. Olharam em volta e repararam que as atenções de todos estavam voltadas para os portões escancarados. Ninguém se apercebeu da sua chegada misteriosamente mágica, de uma rapidez inédita, devida à mecânica ainda impossível do teletransporte. A rua estava pejada de automóveis que vinham deixar os alunos, que desciam dos carros com mil e um cuidados, especialmente as meninas com vestidos compridos ou saias pejadas de folhos, que usavam sapatos de salto alto que não estavam habituadas a usar, que não podiam abanar muito a cabeça ou corriam o perigo de desmanchar o penteado complicado de caracóis e ganchos que lhes tinha levado uma pequena eternidade de tortura a fazer.

Os três irmãos esperaram alguns segundos a observar a azáfama dos colegas. Alguns casais chegavam juntos, a maioria reunia-se na entrada da escola, junto à escadaria. Havia quem não tivesse par, que contava encontrar alguém durante a festa, mas que mesmo assim esperava pelos amigos ou amigas, para não aparecer sozinho. O baile iria acontecer no enorme ginásio do pavilhão desportivo, mas toda a gente entrava pela porta principal. O diretor, o senhor Shaw, acompanhado do conselho diretivo em peso e do senhor Eastman, recebia os estudantes no cimo da pequena escadaria, no alpendre enquadrado pelas colunas. Todos eles eram sorrisos complacentes. Até o zelador, estranhamente, se mostrava simpático e airoso.

Rob foi o primeiro a avançar para ir receber a Cathy. Brad esperou ver o seu amigo Elliot que chegaria com o seu par, uma menina tímida e medrosa da turma das artes, e com a irmã Caroline. Reconheceu o carro dos pais dele e acenou a Mike com dois dedos.

— Diverte-te!

— Tu também, Brad. Mas já sei que é redundante desejar-te isso. Porque tu, de nós os três, serás aquele que mais se vai divertir.

— Estou com a Caroline.

— E vais dançar muito, mesmo que ela não goste de dançar.

— Adoro dançar! – exclamou Brad. – Todos os momentos musicais foram escolhidos pelo meu grupo, recebi umas lições muito valiosas do Elliot sobre as canções e desta vez não irei fazer uma figura triste.

— Tu nunca fazes uma figura triste – sorriu Mike. – Podes é ser um pouco… como dizê-lo? Excêntrico.

— O mordomo não me ensinou a dançar. Se danço é porque vou aprendendo aqui e ali… Sei que tenho momentos…

— Não tens momentos. É sempre! – corrigiu Mike ampliando o sorriso.

— Sei que tenho momentos — insistiu Brad – em que não acerto com o ritmo, nem faço os gestos adequados à música, mas tenho melhorado. Sou um vampiro curioso e atento.

— Sem dúvida. Vai lá! Estás a atrasar-te.

— Estou a ir. Cuida bem da Anna.

— Saberei cuidar muito bem da Anna – retorquiu Mike, ficando mais sério.

— Tu sabes o que quis dizer.

— Vai com calma com a Caroline. Ela, ao contrário da Anna, não conhece os teus dotes especiais.

A atravessar a rua às arrecuas, para manter o contacto visual com o irmão, Brad abriu os braços e disse, soando falsamente tímido:

— O problema é a Caroline que não sabe ir com calma. Eu vou deixar-me levar. Ela é que manda hoje. – Terminou, piscando o olho.

Mike estalou a língua, arrepanhando o canto do lábio. Contudo, não se conseguiu zangar ou incomodar com o irmão, como das outras vezes, por Brad se mostrar tão condescendente em relação às regras, tão disposto em quebrá-las, tão propenso à irreverência e à rebeldia. Sempre que eles pisavam o risco ou ultrapassavam os limites aos quais deviam obedecer, eram castigados. Na pior das hipóteses tinham de fugir e escapar da fúria de populares que os queriam capturar para exibi-los ou purificá-los. Naquela noite, que seria de celebração, de festa descontraída com música, dança e companhia, até dois vampiros e um feiticeiro, demasiado velhos, magoados e cínicos, tinham direito a se divertirem sem culpa e sem preocupações.

Ajeitou uma última vez a capa ao corpo, passando-a por cima do ombro. As dobras adejaram nas suas costas e ele sabia que estavam perfeitamente verticais e alinhadas. Perscrutou as sombras, mas sabia que ela se aproximava, no automóvel conduzido pela mãe, só pela assinatura indelével e absurdamente inebriante do seu perfume.

— Anna… – murmurou, deixando a palavra correr lânguida pela sua língua, como o doce que já não conseguia saborear.

Acometeu-se-lhe, de repente, um tremor provindo de uma timidez paralisante e completamente inédita. Se ela o quisesse beijar… ele não saberia o que fazer. Já tinha trocado beijos com outras meninas, claro, mas foram sempre desprovidos de sentimentos, de emoção, dos fingimentos habituais de que se servia para disfarçar a aridez daquele invólucro bonito que usava para estar vivo – ou entre os vivos, seria o mais correto afirmar. Com a Anna havia qualquer coisa que se tumultuava dentro de si e Mike temia as suas reações, a falta eventual de controlo, o desejo de ir mais além, o assoberbamento, o desastre, o que não se podia quebrar e que ele eventualmente iria destruir – nele e nela.

Fechou a boca com força. Endireitou as costas e conteve-se para não crescer em altura. Estaria tudo bem porque, afinal, tratava-se da Anna e com ela já tinha partilhado alguns momentos diferentes, excessivos e confidentes. O último relacionava-se com o seu salvamento do Johnny que a tinha raptado. Ela manteve-se nos seus braços, aninhada em segurança, quando eles deixavam a povoação onde se situava a casa onde ela tinha estado trancada contra vontade durante quase cinco dias. Na viagem de regresso à cidade, utilizaram os seus poderes e voaram, a coberto do anonimato da noite. Mike não voltou a falar com a Anna, e tanto Brad como Rob deixaram os dois sossegados, seguindo atrás deles no mesmo silêncio denso que os tornava invisíveis e indetetáveis.

Só que a Anna era uma miúda, tinha as suas fragilidades, mesmo por debaixo da capa de indiferença e de fastio que usava todos os dias para se defender das agressões do mundo, que eram muito mais violentas quando se tratava de adolescentes confusos e solitários. Ao chegarem à rua onde ela morava, ao avistar a sua casa no mesmo lugar de sempre, quieta e apagada, sem ter mudado nada com a sua ausência, como se já não morasse ali, a Anna cedeu à pressão. Agarrou-se à roupa de Mike, enterrou a cara no seu peito e chorou muito, numa mistura de raiva e de ressentimento. Ele deixou-a chorar. Entretanto, os irmãos já se tinham ido embora.

No fim do choro, envergonhada, a Anna pediu-lhe desculpas. Limpou o nariz com as costas da mão e foi, descalça, até à sua casa, ensopando as meias no caminho molhado da chuva e da neve derretida. O Johnny não lhe tinha devolvido as botas. Ele perguntou-lhe:

— Ainda queres ir ao baile de Natal comigo?

Ela voltou-se. Encarou-o com um espanto triste. Fechava os punhos nos braços às ilhargas.

— Sim. E tu, também queres ir ao baile de Natal comigo, mesmo depois de veres o pior de mim?

— Claro que sim, Anna Hillinger.

— Muito bem, Mike Park. O convite para o baile de Natal ainda é válido.

Agora, Mike atravessava calmamente a estrada, desviando-se dos automóveis que passavam na via e que vinham deixar os alunos ansiosos. Postou-se no passeio, no local certo, um pouco cinematográfico, para que fosse a primeira pessoa que a Anna visse assim que se dirigisse à entrada da escola. Sim, o convite para o baile de Natal ainda era totalmente válido.

Ela apeou-se do carro da mãe, ignorou os conselhos da progenitora que lhe gritava desde o volante, fechou a porta. Começou a avançar pelo passeio a ajeitar o gancho que lhe apanhava uma madeixa de cabelo por cima da orelha esquerda. Usava um vestido preto comprido, de saia rodada, o corpete rendado ajustado ao corpo, que ela disfarçava com um xaile porque não queriam que notasse como tinha curvas harmoniosas e lindas, pois nos outros dias escondia-se atrás de blusas largas e de casacos malfeitos. Nos pés calçava as botas habituais, não substituíra o seu conforto por uns sapatinhos de princesa incómodos que destoavam do seu estilo. A maquilhagem era menos carregada, mas não menos cativante. Num rosto alvo e perfeito estavam os lábios escuros realçados e um risco grosso em redor dos olhos que os tornava maiores e acesos. Mike inflamou-se. Quase que jurava que o calor que o invadia era devido a um reacender do sangue nas veias, ao ressuscitar do seu coração.

E aconteceu como ele esperava. A Anna ajeitou a pequena bolsa que trazia a tiracolo, levantou a cabeça e encontrou-o. Parou, varada pela surpresa de o ver à sua espera, na postura digna de um bondoso príncipe das trevas. O rubor espalhou-se pelas suas faces, tornando-lhe o rosto ainda mais atraente, adensando o seu perfume delicioso.

Mike fez-lhe uma reverência dobrando subtilmente o pescoço.

— Boa noite, menina Anna Hillinger – cumprimentou.

Ela pigarreou. Gaguejou, atrapalhada:

— Mike… Boa-boa noite. Pensava que nos iríamos encontrar lá dentro e eu… eu… Bom, eu acho que…

Ele estendeu-lhe a mão que ela agarrou automaticamente. Ele roçou a boca pelos dedos dela que se arrepiou, a disparar uma série de novas feromonas. Mike sorriu-lhe, a contemplá-la de baixo para cima, de costas dobradas. Pôs-se direito, deu-lhe o braço que ela agarrou avidamente. Depois deve ter-se detestado por se mostrar tão carente e emendou a postura. Tomou-a uma lassidão hesitante e deixou-se arrastar.

— Achas que?

— Esquece que eu abri a boca e comecei a gaguejar – pediu a Anna.

Foram juntos, de braço dado, até ao ginásio, para onde convergia a maré de alunos. O corredor que atravessavam e que, em tempos de aulas, se mostrava sempre tão desengraçado e impessoal, estava todo decorado para simular um portal estelar. Muitas estrelas, cometas e nebulosas, lasers que cruzavam o teto, fitas com pequenas lâmpadas de led que piscavam sucessivamente em que a luz parecia pingar até ao chão. A Anna olhava para tudo maravilhada e Mike percebeu, com uma vaidade enamorada, de que ela não se coibia de mostrar o seu encantamento pueril porque confiava nele para guardar o segredo dessa parte mais vulnerável e secreta da sua personalidade.

Perto das portas do ginásio que se encontravam abertas de par em par começava a escutar-se a música animada posta pelo DJ que fazia a receção sonora dos alunos. Nessa zona também estavam algumas professoras que vigiavam o movimento e que impediam algum exagero. Não havia nada a temer, comprovou Mike satisfeito. As vibrações que pressentia eram todas positivas, algumas mais nervosas do que outras, mais espicaçadas do que outras, mas fazia tudo parte da paixão e das expetativas para aquela noite de alguns jovens que pensavam declarar-se ou firmar um namoro. A melhoria devia-se, sem dúvida, ao facto de o Johnny não estar presente. Os seus amigos estavam no baile, analisou Mike cuidadosamente, o Sean e o Tommy, mas estavam calmos, constrangidos e um pouco contrariados. Não constituíam nenhuma ameaça sem o valentão por perto a liderar a sua pequena corte que se tinha dispersado naturalmente. Mike sorriu, contente. Só tiveram de esperar um semestre para fazerem a revolução do Brad acontecer – tinham afastado o valentão e terminado com o clima de terror na escola.

Com uma verificação rápida encontrou os irmãos. Estava cada um no seu canto, entretidos com as suas parceiras para a festa, nos seus respetivos grupos. «Está tudo bem?», perguntou. Brad zangou-se. «Mike, deixa-nos em paz por esta noite, por favor! É claro que está tudo bem. Não há razão para não estar.» Mike concordou, «Sim, tens razão.» Rob interveio, «Mike, aproveita. É uma noite única. Depois, vai ser tudo diferente.» O vampiro empertigou-se. «O que queres dizer, Rob?» Brad respondeu pelo feiticeiro. «Ele não vai dizer nada. Não vai gastar o seu tempo na festa a explicar-te uma das suas visões do futuro. Por isso, Mike… Desliga a comunicação. Se insistires, vou bloquear-te.» Mike ainda tentou. «Tu não vais ousar fazer isso. Brad. Brad?»

— Passa-se alguma coisa?

A voz da Anna puxou-o para a realidade.

— Não. Está tudo bem.

— Vamos buscar uma bebida fresca? A pista de dança ainda nem abriu, nem o bailarico começou, e já estou cheia de calor. Vai ser uma noite muito longa.

— Eu não bebo, Anna.

— Ficas só com o copo na mão.

— Se quiseres ir embora mais cedo, saímos e eu levo-te a casa.

— A voar?

— Preferia fazê-lo a pé.

Ela serviu dois copos de ponche frutado que não tinha qualquer gota de álcool, afiançou-lhe a moça que vigiava aquela taça. Contou-lhe ao ouvido que os alunos do último ano andaram a misturar álcool no ponche, eram uns criançolas, sempre se fazia aquilo em todos os bailes, nem sequer eram originais, mas que aquela taça estava imaculada e o ponche podia ser bebido sem temer efeitos secundários derivados de uma embriaguez inesperada. Mike fez sinal à Anna de que a moça dizia a verdade, aquela taça era a única que não tinha sido adulterada pelos brincalhões de serviço.

O DJ afastou-se da mesa e entrou a banda que ganhara o concurso. Vinham vestidos a preceito, todos com fatos prateados iguais e gravatas azuis decoradas com grandes estrelas, em alusão ao tema do baile. Após uma curta apresentação, deram início à parte dançante da festa. A Anna bebeu dois copos de ponche e observou divertida Mike a bebericar o seu, molhando os lábios com algumas gotas. Houve uma que se desprendeu e começou a escorrer-lhe pelo queixo. A Anna limpou-a com um dedo. Depois, achou o gesto demasiado ousado. Ofegou e baixou a cabeça pedindo-lhe desculpa.

Mike agarrou na mão dela que o tocara. Convidou-a para ir dançar e levou-a para a pista.

A banda tocava um reportório muito eclético. Canções mexidas e baladas, temas recentes e temas antigos, tudo êxitos que toda a gente reconhecia. O vocalista interagia muito com o público, falava no meio da sua prestação, incentivava todos a se aproximarem do palco, a perderem a timidez, a tornarem aquela noite especial com a pessoa que tinham ao seu lado.

Mike e Anna dançaram uma canção romântica que tinha o ritmo de uma valsa. Ela estava muito corada, ele estava concentrado para não errar nenhum passo e pisá-la. Não contara aos irmãos, mas dias antes do baile estivera a ver vídeos da internet, num computador da biblioteca que usou fora de horas, para saber como se fazia. Tal como Brad, ele nunca sentira necessidade de dançar. Com a Anna, porém, percebia que tinha de a entreter e de a encantar com os seus dotes de bailarino recentemente adquiridos.

Ela também não era nenhuma bailarina exímia e qualquer prestação dele acabaria por ser maravilhosa. E ela estava, de facto, entretida e encantada. No fim da canção, bateram palmas – acontecia sempre um aplauso entre os temas. A banda queria ir descansar, mas estavam constantemente a pedir mais músicas e o vocalista dava-se por vencido, ao mesmo tempo que apreciava orgulhoso o sucesso, juntamente com os seus companheiros.

Mike propôs irem refrescar-se. Sem bebidas, acrescentou. Saíram pelas traseiras do ginásio utilizando uma porta que estava trancada, mas que ele abriu com relativa facilidade e sem destruir o trinco. A frescura da noite foi muito agradável. A Anna aconchegou o xaile nos ombros. A sua franja colava-se adoravelmente à testa.

Para a direita havia uma estrutura em metal de uma escadaria que levava ao topo do ginásio. Mike levou-a até lá, mas quando ela colocou o pé no primeiro degrau, foi arrebatada e, com um salto, aterrou na cobertura nos braços de Mike. Ela nem teve tempo de se surpreender. Abriu um sorriso largo com a delicadeza com que ele a pousou na placa de cimento revestida com um isolamento que a tornava rugosa. Mike cobriu-a com a sua capa para que não sentisse qualquer frio, porque o vento, naquele lugar, estava desagradável. Sentaram-se ao lado um do outro. Olharam, calados, para o negrume da noite. Era uma paisagem que ela apreciava.

A Anna pousou uma mão na face de Mike. Não se impressionou com a pele gelada e morta. Ele já não disfarçava nada ao pé dela, nem sequer fingia que respirava. Mike envolveu-lhe a mão com as suas. Ela disse:

— Vocês salvaram-me. Tenho uma dívida e quero pagá-la. Irei salvar-vos também.

— Não estás a dever-nos nada… – murmurou, deliciado com a macieza perfumada dos dedos dela. Apreciava tocá-los com os olhos fechados e era como estava agora, de pálpebras cerradas.

— Claro que estou. Se passasse mais tempo, o Johnny poderia magoar-me e… nem quero pensar nisso.

— Se o Johnny te magoasse, a esta hora já não estaria vivo.

— Oh! Isso seria terrível, Mike!

— Perder-te seria muito mais terrível.

— O Rob disse-me que te posso salvar e eu quero fazer isso.

Mike tinha considerado fazer mal ao Johnny. Desfazê-lo com as suas mãos e saciar-se com o seu sangue. Julgava que a sua salvação viria desse ato extremo de violência, mas estava enganado. Não era a maldade que salvava. Era o amor.

— Anna… – lamentou-se.

— Sou eu que quero, Mike – insistiu a Anna, determinada. – Não me queres converter naquilo que tu és. Então, quero que sejas aquilo que eu sou. De outra maneira, não podemos ficar juntos. Sabes isso, não sabes?

— Sei. Infelizmente, sei-o muito bem.

— Então, não temos outra escolha.

Entreolharam-se. Mike puxou uma ponta da sua capa, embrulhou-se nela também, juntando-o mais à Anna. Inclinou-se e deixou nos lábios dela, carnudos, vermelhos, proibidos, vivos e palpitantes, um beijo casto.

A descarga elétrica que experimentou mentiu-lhe que o seu coração tinha voltado a bater.


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