Os Irmãos Park escrita por André Tornado


Capítulo 26
Juntos ou separados




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O Brad arrastou-os para o Music and Chips naquela tarde fria de dezembro. Pelos vistos, a escola em peso encontrava-se nesse lugar onde era importante ir para conferir os mexericos. Havia grande burburinho por causa do baile de Natal, quem tinha convidado quem, quem esperava ser convidado e ainda não o fora, quem aceitara o convite para fazer ciúmes e outras histórias sumarentas que o Brad ia desfiando no caminho do Instituto até à cafetaria. O Mike continuava a não estar interessado, o Rob fingia escutá-lo, mas o Brad não se calava.

O vampiro sentia-se também importante por fazer parte da comissão organizadora, exagerando as suas contribuições. Falava das canções, da audição das bandas que iria acontecer no próximo fim-de-semana, dos animadores talentosos que arranjaram e que pareciam DJs profissionais, dos elogios que ele e o Elliot receberam dos professores por terem um gosto musical tão requintado. Tiveram ajuda da mãe do Elliot, que burilara as playlists finais, mas não revelaram esse detalhe que, bem vistas as coisas, não maculava o seu trabalho inicial de escolha da lista que acontecera no quarto novo da sua casa.

A cafetaria estava à cunha. As mesas e os assentos altos do balcão estavam todos ocupados, a jukebox debitava um tema mexido que fazia dançar um grupo de miúdas no pequeno espaço à sua frente, havia um vaivém constante no corredor, nuvens de vapor doce escapavam-se da janela que dava para a cozinha e por onde se aviavam os pedidos ininterruptos que os empregados se esforçavam por atender depressa e sem enganos. O barulho de gargalhadas e de vozearia era praticamente insuportável.

Mike estacou na porta, hesitante se queria mesmo entrar ali. Brad tocou-lhe num braço.

— Anda.

— Para onde? Está cheio.

— O Elliot guardou-nos um lugar. – Levantou um braço e foi respondido por outro braço erguido. – Está ali. Vamos ter com ele.

Contrafeito, de mãos nos bolsos das calças, Mike seguiu os irmãos. Rob observava tudo com uma atenção maravilhada, como se fosse a primeira vez que entrava na cafetaria.

A mesa do Charles Elliot ficava sensivelmente a meio. Mike engoliu os rosnados que lhe apetecia soltar, mas ficou a ronronar para aliviar a pressão que lhe comprimia a garganta e lhe tornava os músculos mais frios. Resolveu alinhar com tudo e não levantar ondas, para ver se aquilo passava mais depressa.

— Só espero não termos encontros inesperados… – resmungou.

O Brad escutou-o. Rob agarrava alegremente na ementa para fazer a sua escolha, como se saboreasse algumas das guloseimas que se vendiam ali. O feiticeiro conseguia ser o mais normal dos três e Mike experimentou uma pequena inveja, que repudiou enojado por ser tão estupidamente fútil no seu caso. Esticou os dedos para também agarrar numa ementa e inventar que escolhia o lanche, mas travou o gesto a meio ao escutar o Brad perguntar ao Elliot:

— Sabes o que aconteceu ao Johnny?

O rapaz, que tentava chamar a atenção de duas miúdas que dançavam, fazendo acenos entre o discreto e o apalhaçado, desistiu de se fazer notado. Endireitou as costas, pousou as mãos na mesa, palmas voltadas para baixo. Abriu muito os olhos e disse, carregando no tom dramático:

— Sei, por acaso sei. Vocês não ouviram falar? Foi a notícia de hoje na escola.

Brad olhou brevemente para Rob e para Mike. Enquanto o primeiro continuava a analisar a ementa como se nunca tivesse lido nada melhor, Mike manteve a expressão ausente e perigosa de um vampiro adormecido.

— Não, não ouvimos falar – disse Brad. – O que há para saber, afinal?

— O Johnny foi transferido para outra escola, na cidade pequena que fica a mais ou menos dez milhas daqui.

— Transferido? – admirou-se Brad, debruçando-se sobre a mesa.

— Sim, transferido. Essa cidade é como que um satélite da capital, onde estamos nós. O desemprego é elevado, há bairros problemáticos, muitas famílias só sobrevivem à conta dos subsídios dados pelo município. Por causa disso são uma população facilmente manobrável e o pai do Johnny tem um eleitorado bastante fiel lá, por causa de todas as ajudas que aprova. Sempre que há eleições, o pai do Johnny faz grandes comícios nessa cidade e generosas ofertas. Em consequência, votam nele. Estás a ver o esquema…

— Isso não é ilegal?

— Não, claro que não. É como funciona a campanha eleitoral. Se fores generoso, também são generosos contigo. Um voto troca-se sempre por algum benefício, topas?

— Mais ou menos… nunca votei. – Brad relanceou o olhar pelos irmãos que se mantinham na mesma posição. – Nunca votámos.

— Nem eu. Não temos idade, meu! Pois bem, acho que alguém devia alguns favores ao pai do Johnny e ele foi cobrá-los. Então, o Johnny foi para essa cidade. Matricularam-no na escola para ver se ele termina o secundário de uma vez por todas. Ou aceitava isso, ou ia para o exército. – Fez uma cara cínica. – É o boato que corre.

— Isso não faz muito sentido, Charles – contestou Brad. – O Johnny é filho do presidente do município. Pode ir para qualquer escola que escolher, até noutro condado ou mesmo noutro estado. Noutro país! Acredito que a família do Johnny terá dinheiro suficiente para que o Johnny estude no estrangeiro, num qualquer colégio exclusivo. Depois de ele ter feito porcaria… mandam o Johnny para uma cidadezinha de segunda categoria com todos esses problemas?

— Foi um castigo… e, ao mesmo tempo, o Johnny mantém os eleitores do pai debaixo de olho. Acho que foi essa a jogada.

— O pai do Johnny não tem o filho em grande consideração, pois não?

— Isso não te sei dizer com toda a certeza… talvez o homem preferisse que o filho fosse político em vez de um desportista… – considerou o Elliot.

— Então, quer dizer… que o Johnny deixou definitivamente de ser um problema?

— Sim, Brad. O teu irmão Mike pode ficar mais descansado.

— Ouviste isto, Mike? – exclamou Brad, virando o pescoço na direção do outro vampiro. – O Johnny nunca mais vai nos importunar. Agora temos a certeza. Ele já não é um aluno do Instituto para o Ensino e Ciências Castle of Glass!

Mike apenas moveu os olhos. O entusiasmo de Brad arrefeceu imediatamente. Pigarreou.

— O meu irmão está muito feliz com a notícia – esclareceu, constrangido.

O Elliot não ficou convencido. Esticou o braço por cima da mesa e deu uma palmada em Mike, como se assim o despertasse da letargia que lia na sua postura apática. Piscou-lhe o olho.

— Anima-te, Mike Park! Livraste-te do Johnny para sempre. Poucos alunos do Instituto se podem gabar de terem destruído o grande Johnny que atormentava os corredores da escola há anos incontáveis. Tens esse feito no teu currículo e podes inscrevê-lo no anuário do secundário, quando te graduares. Eu fiz frente ao maior valentão de todos os tempos! Uma frase épica, estás a ver? Isso mesmo. Anima-te!

O Rob finalmente baixou a ementa. Dobrou-a com cuidado e devolveu-a ao suporte central de onde a tinha retirado. Elliot perguntou:

— O teu irmão ainda não recebeu nenhum convite para o baile?

Brad mordeu os lábios e deixou de fazer o movimento simulado da respiração. Sentiu uma espécie de choque elétrico vindo de Mike que cruzou um olhar assassino com o seu.

— Eh… sim, já recebeu… não recebeste?

— Não – respondeu Mike, seco.

— Ah, isso hoje vai mudar – ufanou-se Elliot.

— Está tudo controlado – explicou Brad, mostrando as mãos para acalmar o irmão vampiro que despedia imaginárias chispas geladas através daquele olhar denso.

— Sim, está tudo controlado – concordou Rob que falava pela primeira vez.

Mike manteve-se hirto.

Elliot chamou uma das empregadas esbaforidas com um estalar de dedos. Fizeram os seus pedidos. Dois batidos de chocolate, uma tosta mista, um café preto sem açúcar.

— Bem, o teu irmão Mike está amargo e quer prolongar a amargura – observou o Elliot em tom jocoso, já que o café fora pedido por Mike.

— Ele hoje não está muito bem-disposto, tens razão… O professor de artes implicou com ele – justificou Brad, pouco à vontade. – E o trabalho do fim do semestre do videojogo está atrasado.

— Isso vai mudar – repetiu Elliot e riu-se. – Ele já fica mais animado.

As pálpebras de Mike contraíram-se e um lampejo de vermelho perpassou pelas suas íris. Rob observava a cena com uma distração mansa. Para o feiticeiro estava tudo bem, tudo ótimo. Ele apreciava aqueles locais de convívio, as pessoas reunidas, a alegria juvenil. Ao contrário de outros rapazes subitamente convertidos em criaturas sobrenaturais, Rob nunca se rebelou, nem se deprimiu ou zangou. Fazia o esforço e retirava o melhor que podia da situação. Calado, sentia as coisas mais intensamente, mas também lhe dava a faculdade de analisar tudo antes de qualquer um. O que estaria ele a ver na atitude do Mike?

— Só vais comer uma tosta mista? – indagou Brad para mudar o assunto.

— É para começar – respondeu Elliot, admirado com o interesse do amigo. – Se tiver mais fome logo peço uma piza ou assim.

— Não vais jantar depois?

— O jantar é diferente. Agora estamos a lanchar. Sou de muito alimento… gosto de comer.

— Pois já tinha reparado. Daí que te tenha perguntado por causa da tosta.

— Dão-me licença? Tenho de ir ali falar com alguém.

— Vai lá, Charles. Connosco estás à vontade.

Os três irmãos ficaram sozinhos na mesa. Mesmo assim, Mike continuou rígido, ligeiramente ausente, com um humor terrível que se refletia nas expressões esculpidas num rosto de uma tez entre o pálido e o acinzentado. De um minuto para o outro, dava a sensação de que podia explodir, esganado com o fingimento de tudo o que o rodeava, a começar por ele próprio.

Brad recostou-se cuidadosamente no assento almofadado.

— Está a correr bem…

— Isso foi ironia? – perguntou Rob, pestanejando.

— Sim, foi ironia. Ei, Mike… não destruas este momento. Eu sei que não gostas muito de andar no meio deles, mas de vez em quando temos de aparecer ou começam a haver boatos que nos vão deixar em cheque. Se formos demasiado esquisitos, chamamos mais a atenção.

— Estou aqui e estou a portar-me bem – retorquiu Mike, átono.

Brad descaiu os ombros, derrotado. Voltou-se para o outro irmão.

— Queres ajudar-me?

— Em quê? – estranhou o feiticeiro.

Rob tinha aquele ar apatetado de quem nunca percebia nada do nada, embora se passasse precisamente o contrário. Ele sabia sempre de tudo. Ligava o passado aos cenários do futuro que vislumbrava nos seus transes, observava o presente com o prazer de um investigador minucioso. Nos seus silêncios havia mais avisos do que em rosnadelas, uivos, gritos ou ameaças. O feiticeiro Rob era temível, mas disfarçava muito bem debaixo daquela capaz de rapaz ingénuo.

— Ajuda-me com o Mike – disse Brad apontando o irmão com o polegar.

— O Mike está bem. O Mike parece-me muito bem.

— A sério?

— Estás a usar outra vez a ironia, Brad. Tu é que estás uma pilha de nervos.

— Se os tivesse, podia ser que os meus nervos se ressentissem daquela má cara dele. Mas não os tenho. Felizmente que não os tenho ou já estaria a discutir com o Mike.

— Não fales de mim como se eu não estivesse aqui – disse Mike, naquele registo monocórdico que inquietava por ser tão imprevisível.

— Falo sobre ti da mesma maneira quando estás ou quando não estás – defendeu-se Brad.

Mike inclinou-se um nadinha para diante.

— Essa história do baile de Natal está a transtornar-te demasiado – comentou, arrastando cada palavra, deixando as sílabas pesarem-lhe na língua que tinha escurecido. – Devo lembrar-te, meu caro Brad… de que existem outras questões importantes na escola e que deviam merecer mais a tua atenção do que uma festa. Os exames, os trabalhos. O teu projeto de química.

Uma pequena fúria cresceu dentro de Brad. Cerrou a boca numa linha dura.

— Não tenho descurado os meus deveres – ciciou.

— Oh! Eu acredito em ti, irmão. O problema é que acredito mesmo em ti. Sei que vais ter notas excelentes no final deste primeiro semestre.

— Então, qual é o teu problema, Mike?! – exasperou-se Brad.

Uma pequena pausa irritante.

— Nenhum. Não tenho qualquer problema. E tu, Brad Park?

— Queres que diga que o problema és tu? Não o vou dizer, porque não é verdade. E também não vou admitir que tenho um problema com o baile de Natal! Ou com o meu desempenho académico. Ou com o que quer que seja que estejas a pensar nesse teu cérebro cheio de minhocas. Figurativa e literalmente! É isso, Mike Park! – exclamou, dando-se conta de que a sua dedução estava a secar aquela discussão pateta. – Estás com o cérebro infestado de bichos que te estão a turvar o raciocínio! Tens de beber uma poção que o Rob não se vai importar de preparar para te limpar de parasitas e de ideias disparatadas.

Foi para rir-se, mas interrompeu-se a tempo com a chegada da empregada. Ela deixou na mesa a comida e as bebidas com gestos impacientes. Havia que servir outras mesas e não podia mostrar-se vagarosa, ou recebia uma advertência do supervisor que, naquela tarde, estava particularmente exigente e pouco perdulário. Deixou também, no suporte, o talão com a conta, onde constava o que eles tinham pedido até ali. Se quisessem comer ou beber mais seria acrescentado ao pedido inicial, com outro talão. A caixa registadora situava-se junto da saída e era comum verem-se rapazes com um molho de papéis na mão e a puxar de uma nota ou de um cartão de crédito dourado das suas carteiras para fazer o pagamento. No fim, juntavam os lanches de amigos e faziam uma graça ao se mostrarem generosos.

Rob trouxe o copo do batido para si e levou a palhinha à boca. Brad agarrou também no seu batido. Não começou a bebê-lo. Limitou-se a olhar o monte de natas batidas salpicadas de confeitos coloridos com o ar de quem estava a contar as calorias.

— Se o Mike bebesse uma maravilha destas, fazia o mesmo efeito da poção – sugeriu Rob, afastando a palhinha dos lábios.

Agora, Brad não reteve uma gargalhada.

— O que dizes? Estás a comparar esta guloseima com as tuas poções cuidadosamente preparadas? Isso não é um crime no mundo da magia, ou assim?

— Tenho uma mente aberta. Faço adaptações. Não, Brad. Não é crime achar que uma boa dose de açúcar pode ser mais eficaz do que uma mistela elaborada a partir de ingredientes nojentos escritos num livro antigo cheio de pó. A magia adapta-se aos tempos.

A explicação atrapalhou Brad que se limitou a gaguejar:

— Ah…

Mike deixou a chávena do café fumegar, as suas espirais de fumo branco a formarem uma teia dançarina entre ele e o irmão. O seu olhar, que cruzava aquele nevoeiro aromatizado, artificial e frágil, estava menos denso. A tosta mista do Elliot arrefecia no prato, do pão torrado emergia o aroma gordurento da manteiga e do queijo derretido. Brad desistiu de provocar o irmão. Resolveu experimentar o seu batido. Não tinha o mesmo gosto do que aquele sentido pelo Rob, de certeza, mas era capaz de saborear algumas subtilezas das bebidas diferentes de sangue. Seria impossível, porém, retirar prazer disso.

Elliot regressou à mesa de repente. Brad sobressaltou-se e engoliu uma grande porção de batido, sem querer. Ficou a tossir e a fazer caretas, atarantado com o sabor azedo do leite que lhe bateu no estômago como uma bofetada. Não podia ingerir bebidas ou comidas sem estar preparado ou dava-lhe para o enjoo. Rob continuava entretido com o seu batido, para o feiticeiro era mais simples degustar alimentos, ao passo que Mike semicerrou os olhos numa crítica subtil e afiada àquela atitude irresponsável.

Brad arrotou para impedir o vómito e pôs-se a hiperventilar, a engolir ar mais do que o respirava, para dominar a sensação crescente de mal-estar. Elliot empurrou-o para o lado da janela, sentou-se perto do corredor. Agarrou na tosta com as duas mãos.

— Então, Park? Estás engasgado?

— Isto… já… passa… – assegurou Brad com a voz rouca.

— Queres uma palmada nas costas?

Brad fez que não com a cabeça. O Elliot deu uma generosa dentada na sandes. Com a boca cheia, olhou Mike de frente e disse:

— A Anna está à tua espera no parque de estacionamento. Quer ver-te.

Brad guinchou, mas a barulheira no interior da cafetaria abafou aquele ruído estranho. Foi a vez de Rob semicerrar os olhos. Mike colocou as suas mãos brancas sobre a mesa, uma de cada lado da chávena. O Elliot mastigava como se estivesse esfomeado. Deu uma segunda dentada enorme.

— Não faças a moça esperar – avisou. – Ela quer ver-te, mas disse-me que não queria vir cá dentro. Está muita gente.

— Vais ter com ela… Mike? – perguntou Brad, cauteloso.

Mike levantou-se sem dizer uma palavra. Deu meia-volta e encaminhou-se para a saída da cafetaria, esgueirando-se por entre os clientes e as empregadas atarefadas que bufavam e transpiravam por causa de todo o trabalho que lhes caía em cima, ininterruptamente. Rob relaxou e recostou-se no assento. Reparou, de soslaio, que a chávena de café permanecia intocada. Arrefecera, entretanto, e uma camada ténue de vapor coroava o líquido escuro bordejado de espuma.

— O que é que andas a armar, Charles? – perguntou Brad agitado, voltado para o amigo.

— Estou a dar uma ajudinha ao vosso irmão.

— Uma ajudinha…

— Assim como o Cupido, estás a ver? Eu disse que o Mike iria ter um convite para o baile. Estive a tratar disso. Também não me custou muito, digo-vos já. A Anna andava à procura do Mike. Só servi de intermediário para que ela não desse uma volta demasiado grande.

— O Mike vai ao baile, Rob? – indagou Brad.

O feiticeiro, a esconder um sorrisinho, assentiu.

— Afirmativo.

— Bolas… – suspirou Brad. – Se tivesse um coração, ele estaria agora parado. Estas emoções vão matar-me um dia… Se também pudesse morrer de ataque cardíaco!

— Ei, vou pedir uma piza. Importam-se de partilhá-la comigo? – propôs o Elliot, completamente alheado ao que o Brad acabara de dizer. – Esta tosta abriu-me o apetite… – Sem esperar uma resposta acrescentou: – Vou também pedir umas batatas assadas. Alinham?

No exterior estava mais fresco e muito mais silencioso, apesar de a música e da vozearia da cafetaria permear o ar, um farol de som que guiava aqueles que acabavam de chegar e que queriam comer, conversar e divertir-se ali. Mike ajeitou o cachecol no pescoço. Usava aquela peça de roupa por causa do estilo, porque não sentia verdadeiramente o frio daquele dia de dezembro.

Encaminhou-se, com passos seguros, para o local do parque de estacionamento onde se encontrava a Anna. Não precisava de fingir que a procurava, porque já sabia onde ela estava. Guiava-se pelo seu olfato. O perfume dela, o verdadeiro odor da sua pele, continuava a transtorná-lo e a espicaçá-lo. Agora, obrigava-se a uma maior contenção, a outro tipo de refreamento, porque ela… sabia. Ela conhecia a verdade e Mike percebeu-se emaranhado num nó ainda mais apertado. Temia o que pudesse ela dizer-lhe ou exigir-lhe. Não estava em condições de reagir. Por cada passo que dava, parecia-lhe que se desfazia numa cauda que o ia espalhando pelo cimento do chão que pisava.

A Anna apertava os braços contra o corpo. Encolhia-se por causa do frio, mas também por causa da sua apreensão que desequilibrava o seu cheiro maravilhoso, acrescentando-lhe uma nota repulsiva que não chegava a ofender-lhe as narinas.

Mike foi avançando, devagar, no silêncio, temendo assustar-se mais do que a miúda que suportava a espera com uma valentia de certo modo intrigante. Tinha de ser corajosa para admitir encontrar-se com um vampiro no escuro, num local com menos gente do que o interior da cafetaria.

Ela pressentiu a sua chegada. Voltou-se sorvendo uma grande porção de ar. E depois ficou a arfar como se não conseguisse oxigenar convenientemente o cérebro. O calor do seu sangue acendeu-lhe as veias, deixou-lhe o corpo preenchido de apetecidas finas estradas vermelhas. Mike hesitou. A tentação manietava-o, numa miríade de pensamentos proibidos. Forçou-se a acalmar antes de se aproximar dela. Hesitou. A Anna olhava-o espantada, de boca entreaberta, ansiosa, amedrontada, como se contemplasse um anjo caído dos céus ou um alienígena acabado de desembarcar do seu disco voador.

— Boa noite, Anna – cumprimentou Mike numa voz rouca arrastada.

Ela enrijeceu automaticamente. Parou de hiperventilar e de tremer. O seu sangue esfriou.

— Olá, Mike. Desculpa ter-te chamado assim, mas… não queria que nos víssemos lá dentro.

— Compreendo. Também não gosto de confusões.

— Normalmente, não me importo. Só que hoje queria… conversar… contigo… E com muita gente à volta… não era… possível. Não me irias conseguir escutar… não… é?

Ela sugou as palavras para impedir o disparate de se espalhar ainda mais. Fixava-lhe uns olhos ávidos, escancarados. Não desviava o olhar, aguentava a prova, embora estivesse à beira do pânico. Ele resolveu ser brando e ignorar os sinais que ela enviava. Aquele encontro teria de ser o mais normal possível, o mais semelhante aos outros que tiveram antes de ela saber que ele era uma criatura perigosa, sanguinária e sobrenatural.

— Compreendo – repetiu Mike. – Eu também me confundo em ambientes demasiado ruidosos.

— Estou aqui com as minhas amigas.

— Eu vim com os meus irmãos. Estamos com o Elliot.

— O Charles…

— Foi o Charles Elliot que te pediu para falares comigo?

— Não, Mike – respondeu a Anna negando lentamente com a cabeça. – Eu ando há alguns dias para falar contigo. As aulas têm sido complicadas.

— É o fim do semestre.

— Sim. E hoje soube que estarias aqui.

— Soubeste? Como?

— Bem, apenas… soube. E resolvi aproveitar a oportunidade. Espera! Deixa-me continuar. Senão… perco a coragem. É tão esquisito, é tão… diferente. Nunca fiz nada como isto – confessou num sussurro. Respirou fundo. – Mike, gostaria de te convidar para o baile de Natal. Aceitas ir comigo ao baile?

— Foi o Elliot que também te pediu me convidares? – indagou ele, a esconder a sua irritação.

— Não, não foi o Charles. Eu já te queria convidar antes… Antes do anúncio no cartaz… Antes de…

De saberes que eu sou um vampiro, completou Mike imediatamente. A Anna mordeu os lábios, voltou a respirar fundo, mas agora havia alívio disfarçado no seu alento. O seu perfume corporal também filtrara o medo e estava límpido, fragrante e magnífico, como Mike gostava.

— Bem… aceitas o convite ou não? É que se não quiseres ir comigo, diz-me já, para não criar muitas expetativas.

— Aceito, Anna. Irei ao baile de Natal contigo.

— Obrigada, Mike. Não me pareces muito feliz…

— Eu nunca… nunca fui a um baile – admitiu, num tom fragilizado. Odiou-se por parecer tão desamparado. Era como se pedinchasse pela atenção dela.

— Nem eu. – Ela sorriu, finalmente. Gostara da carência dele. – Um baile não é bem a minha cena. Não é mesmo do meu feitio frequentar locais dançantes cheios de parzinhos e de namoricos ocasionais. Só considerei ir se fosse contigo. Tive essa ideia…

— Então, eu seria o responsável pela tua ausência.

— E parece-me que eu seria a responsável pela tua ausência.

— Correto. Bailes também não são… a minha cena.

— Então, vamos ao baile, mas não nos comportaremos como se fôssemos ao baile.

— Prefiro assim.

— Eu também, Mike.

— Estamos em sintonia.

— Acho que sempre estivemos, Anna.

— Eu não me queria ter afastado, mas tu sabes…

— Sei. Agora sei.

A Anna esticou um braço timidamente. Passou a mão pelo braço dele. Mike viu-lhe os dedos brancos, as unhas pintadas de preto. Ela não disse mais nada. Afastou-se a deslizar como se fosse uma sombra igual a ele. Mike admirou-a mais. Fechou os olhos e forçou-se a cheirar. Sim, ela era deliciosamente perfumada.

Pronto, já tinha o seu convite para o baile de Natal. Experimentou uma amargura revoltada. O Brad iria gostar de saber daquilo, o Charles Elliot iria gabar-se a toda a escola que tinha alcançado a proeza de fazer a Anna esquisitoide convidar alguém para a festa, o Rob faria uma das suas análises mágicas que guardaria para si e ele… ele teria de fingir, mais uma vez, que também apreciava a conquista.

Enfiou as mãos nos bolsos das calças e rumou para casa. Ninguém iria notar a falta do seu mau humor na cafetaria. Lá dentro, o Rob estava a dançar e o Brad tagarelava alegremente com os seus amigos. A Anna também optara por se ir embora. Fora de boleia no carro da irmã mais velha de uma das suas amigas.


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