Os Irmãos Park escrita por André Tornado


Capítulo 17
Arriscar e ganhar




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O olhar de Mike cruzou-se com o da Anna.

Foi durante um dos intervalos do final da manhã. Levantou a cabeça e captou a moça a observá-lo. Foi um momento muito breve, dois, três segundos, mas foi o suficiente para que um universo inteiro fosse criado e implodisse, desaparecendo. Mike experimentou um choque elétrico, calor, uma desestabilização ao nível molecular, a força do seu coração morto a querer arrancar e desatar a bater como antes. Sabia que ela estava a reagir de forma parecida, com o acrescento de que estava viva, de que tinha sangue a correr nas veias, de que o seu corpo aquecia, de que o seu coração batia.

No pátio, nas pausas entre aulas, os irmãos Park ficavam num canto que tinham escolhido para ser seu. Juntava-se os três aí, muitas vezes em silêncio, naquela pose meditabunda e hirta que adotavam quando se desligavam do mundo e pairavam sobre paisagens mentais estranhas para as pessoas comuns. Rob, por ser um feiticeiro, era o que meditava mais, mas os dois vampiros, por uma necessidade de recuperação de energias, também tinham aprendido a fazê-lo. Desligavam-se, simplesmente. Como não dormiam, era esse o mecanismo que usavam para se manterem saudáveis.

No pátio da escola, no meio dos outros estudantes, tinham sempre algum cuidado para não se relaxarem demasiado e serem apanhados nos respetivos transes. Dos três, Brad era o mais distraído, mas o Rob conseguia ser o mais alheado e era constantemente avisado pelos irmãos, com cotoveladas e pontapés nas canelas, para que acordasse. Mike irritava-se, Brad acalmava-o, Rob encolhia os ombros e sorria-lhes.

Ao serem três acabava sempre por haver um desequilíbrio que desempatava uma qualquer situação em que dois estavam em desacordo. Esse tinha sido um dos conselhos mais preciosos do mordomo. Quando se decidissem a sair da mansão, eles tinham que sair sempre em grupos ímpares para não se desagregarem no meio de alguma zanga ou desavença. Alguém precisava sempre de lançar juízo sobre uma situação difícil, complicada ou exigente. Mike recordava-se muitas vezes desse conselho e acabava por não ficar muito tempo aborrecido com os modos descontraídos do Rob ou com as leviandades do Brad.

E foi num desses intervalos, em que os três estavam simplesmente parados no pátio, no habitual círculo, uns de frente para os outros a fingir que conversavam, que o Mike topou a Anna.

De seguida, tocou a campainha a chamar os alunos para o próximo bloco letivo.

— Está tudo bem?

Mike olhou para Brad que lhe fizera a pergunta. O lábio superior arrepanhou-se, soltou uma rosnadela baixa e respondeu, após aclarar a garganta:

— Sim, está tudo bem. Vamos? Não quero chegar atrasado à aula de Matemática. O professor é um pouco fundamentalista em relação a atrasos…

— Não me pareceste bem.

— Porque é que dizes isso? – disfarçou Mike estugando o passo, projetando os ombros para diante como se quisesse fugir dos irmãos e entrar primeiro do que eles no edifício.

— Foi a Anna Hillinger – disse Rob.

— Ah! – exclamou Brad.

Uma sensação de quase dor atravessou-lhe o peito e Mike virou-se com segunda rosnadela. A intromissão naquela questão incomodava-o porque era como se lhe apontassem uma falha, um defeito, uma vulnerabilidade. Uma forma de o atingir, desconjuntar e destruir. Eliminá-lo. Seria a moça um ponto fraco? Ele não podia deixar que ultrapassasse esse limite. Ele não tinha qualquer ponto fraco.

— Não se passou nada com a Anna Hillinger – avisou. – E quero que a deixem em paz.

— Ei, Mike… nós não nos metemos com a Anna – replicou Brad espantado com a sua atitude.

— Não falem dela também.

— Foi ela que olhou para ti ou foste tu que olhaste para ela? – perguntou Rob.

— Nada disso. Aconteceu casualmente! – explicou Mike agitado. – Olho para outras moças no pátio e nunca se fez este escândalo.

— Ninguém está a fazer um escândalo – apontou Brad, desconfiado. – Quem está a levar a mal és tu. Podes acalmar-te? Nunca te vi tão perturbado por causa de alguém. Espera! Vi, sim. Tu ficavas agitado desta maneira com o Chester.

Mike contraiu-se, ao mesmo tempo que empalidecia e os seus olhos adquiriam uma perigosa tonalidade de um vermelho-vivo, como se fosse disparar faíscas quentes.

— Brad Park, estás a esticar-te!

Brad mostrou as mãos e recuou dois passos.

— Por favor, Mike… estamos só a conversar.

Rob meteu-se entre eles.

— Sim, Mike. Deves acalmar-te e ir para as aulas. Alguma coisa não está bem contigo, nós já percebemos. A Anna Hillinger perturba-te. Será que te estás a apaixonar? Ou será apenas um interesse… científico? Não podes beber o sangue dela, isso vai complicar-te a estadia nesta cidade e nós seremos arrastados contigo.

Com um estremeção, Mike pareceu despertar de um estado de sonambulismo e piscou os olhos, ligeiramente desorientado. Abanou uma mão num gesto indolente. Pediu desculpa num murmúrio, encaminhou-se rapidamente para o edifício, com receio de chegar atrasado. Escutou o Brad dizer nas suas costas:

— Precisamos de falar sobre isto, Mike!

E precisavam mesmo? Ele não queria que a Anna se tornasse num assunto. Um problema, como o Johnny, que era preciso resolver para que eles tivessem uma estadia tranquila naquela cidade e naquela escola. Se chegassem a esse ponto, era sinal de que se começavam a enredar numa teia que os iria encurralar e sufocar. Teriam de se afastar e de fugir. Mike abanou a cabeça. Sentia-se muito confuso com tudo aquilo. Porque a Anna mexia-lhe com os seus nervos mortos. Despertava-os, fazia com que ele quase se sentisse renascido, alegre, quente. Queria deixar-se arrastar, queria que ela exercesse todo esse poder só para saber até onde podia chegar, qual a meta que iria cruzar, a dominar os medos com a excitação feroz dos caçadores que apreciam, com um prazer sombrio, serem caçados. 

Mas havia também aquele instante em que petrificava quando se apercebia que ela queria aproximar-se. Que sabia que era errado deixá-la aproximar-se. Que ele conhecia coisas que ela desconhecia. Que ele tinha a obrigação de protegê-la de si próprio. Que todas as resoluções e o bom senso se desmoronavam quando a via e ele precisava de inventar um outro caminho naquele corredor estreito, cheio de estudantes, até à sua sala.

Olhou aflito por cima do ombro. Não encontrou os irmãos. E era normal que não os encontrasse. Iriam ter aulas específicas, nas suas respetivas áreas, em salas diferentes. Estava sozinho. Ele escolhia sempre fazer tudo sozinho. Tinha-os escorraçado no pátio, agora não podia recuar e fingir que não era nada com ele.

Fechou os punhos. Iria enfrentar a moça. Não tinha outro remédio. Precisava de perceber o que se passava, embora intuísse o que estava ali a montar-se. Um esquema para o qual ele contribuía alegremente. Quase… levianamente!

Ela estava a vir na sua direção, furando por entre os estudantes que iam em sentido contrário. Com um olhar rápido e aguçado reparou que ela deixara as amigas para trás, que tinham ficado à porta da sala a chamá-la, a dizer-lhe, provavelmente, que já estavam atrasadas e que deviam entrar, o professor já escrevia no quadro branco o sumário da lição.

— Olá.

O cumprimento reverberou nos seus ouvidos sensíveis com uma doçura invulgar. Mike obrigou-se a manter-se estoicamente neutro, mas sem parecer desagradável ou arrogante. A Anna tremia por estar à sua frente. Ele percebia esse detalhe por causa do cheiro que ela emanava. Olhando-a não se dava conta do seu nervosismo. Era audaciosa, mas tinha os mesmos receios de qualquer miúda da sua idade. Quinze ou dezasseis anos? Mike apostou em quinze. Parecia nova, muito nova… Inexperiente, tímida, recatada, mas com uma indesmentível vontade de desabrochar e de partir à aventura.

— Olá – devolveu ele. Admirou-se por a sua voz ter saído grave.

Ela hesitou, entreabriu os lábios, pestanejou rapidamente para desanuviar os olhos húmidos. Eram grandes, castanhos, olhos curiosos que observavam o mundo. Que o observavam a ele, que queriam vê-lo para além daquela aparência. Ele teve a tentação de se encolher, para se resguardar do escrutínio, mas ela seria incapaz de o decifrar. Apesar de dotada de muitos atributos, o instinto para descobrir criaturas sobrenaturais não seria um deles.

— Tudo bem? – perguntou ela, a tentar sorrir.

Estava a fazer conversa de circunstância até tomar coragem para o que lhe queria verdadeiramente dizer. Mike semicerrou as pálpebras.

— O que queres? – cortou, ríspido. – Já tocou e devemos ir para as aulas.

Outra qualquer teria recuado, mas não a Anna que era obstinada. Tinha chegado até ali, não iria recuar. Se fosse noutra ocasião, teria pedido desculpas e ter-se-ia afastado. Ela quase que fez isso. Mike notou-lhe a vacilação, aquele pequeno milissegundo em que um arrepio a tornou mais fria.

— Bom, sabes... queres ir beber um café comigo? Vamos até ao Music and Chips.

— Estás a convidar-me para sair?

— Não.

— É que parece mesmo que estás a convidar-me para sair.

— Será só um café. Ou um batido. Uma bebida. Não vamos meter comida nisto. Se nos encontrarmos para comer, acho que pode parecer que é uma saída assim ao estilo de um encontro. Não te quero pressionar. Nem quero que penses que me estou a fazer a ti – explicou a Anna, de rajada.

O segundo toque soou no corredor que se esvaziava. Os estudantes mais atrasados corriam por ali afora. As suas sapatilhas chiavam no soalho. Em breve, iria aparecer o senhor Eastman a incentivar os mais teimosos a se despacharem, a puxar do seu caderninho e a apontar as faltas dos alunos que ele notava mais recalcitrantes. Mike não queria ficar sob o radar do zelador, nem queria que a Anna fizesse parte do infame caderninho… Escondeu um sorriso. A Anna estava a arriscar-se por ele.

— Está bem. Combinado. Encontramo-nos no Music and Chips para beber um café – concordou ele. – Quando?

— Amanhã. É o Halloween. Às sete horas da tarde.

Ela deu meia-volta e correu para a sua sala. Não fazia barulho nenhum naquela corrida, como se fosse leve como uma pena. Ele apostava que ela teria mesmo essa leveza, que seria fácil levantá-la só com um braço, fazê-la voar, dar um gritinho com a surpresa ao aperceber-se da sua força.

Ele também correu para a sua sala. Já conseguia cheirar a aproximação do senhor Eastman. Vinha ávido e pouco perdulário. Mike utilizou a sua velocidade e flutuou pelas escadas acima, entrou na sala e sentou-se, poucos segundos antes de o professor fechar a porta. Os seus colegas aperceberam-se de uma movimentação incomum. Levantaram os olhos, procuraram confusos olhando em volta, mas não souberam determinar o que tinha sido e ignoraram o suposto fenómeno. Mike estava sentado no seu lugar, a abrir calmamente a mochila e a preparar-se para a aula.

Conseguiu escutar tudo o que o professor disse, tirou apontamentos e resolveu rapidamente os exercícios matemáticos requeridos, mas uma parte da sua mente, uma grande parte para ser totalmente honesto, pensava na Anna e no convite que ela lhe fizera. Pensava sobretudo na data que ela escolhera, o Halloween, e ficava irritado por ter cedido e por ter aceitado. Teria de ir com cuidado. Se acontecessem perguntas invulgares teria de desmistificar as ideias dela, porque era só o que lhe faltava ter uma miúda atraída pela sua faceta sombria e misteriosa. Mentiria, se acaso fosse preciso.

Não contou nada ao Brad, nem ao Rob, o que iria fazer no dia seguinte. Esquivou-se às perguntas do irmão vampiro sobre a Anna, alegando que tinha de estudar e que precisava de apresentar um trabalho importante. Brad não acreditou nele, obviamente, mas também não insistiu. Pelos vistos, não se interessava tanto pelo problema da Anna como pelo problema do Johnny. Não a via como um perigo, um obstáculo, um empecilho.

No entanto, talvez ela fosse tudo isso. E podia ser mais do que isso, qualquer coisa que eles nunca tinham enfrentado antes e para a qual não estavam preparados. Mike pousou a mão no seu peito calado. O seu coração devia estar a bater aí. O mordomo tinha-lhes ensinado muitas lições preciosas, mas em relação ao amor, à paixão, ao envolvimento com outras pessoas nunca lhes contara muito. Esses temas estiveram sempre ausentes. Eram talvez considerados dispensáveis porque eles, qualquer um deles, mesmo aqueles com corpos quentes e com sangue a correr nas veias, com corações ainda vivos, não se podiam relacionar amorosamente com ninguém. O seu ADN estava irremediavelmente modificado. Aqueles que não eram imortais teriam vidas longas, com ritmos biológicos muito diferentes do das outras pessoas. Terem namorados, casarem-se, experimentarem ter filhos levava a complicações desnecessários que os exporiam. De qualquer maneira, Mike nunca sentira necessidade de saber mais sobre envolvimentos amorosos porque, na altura, estava tão enraivecido, que não lhe interessava conhecer as possibilidades de gostar de alguém. Ele precisava primeiro de aprender a gostar de si próprio, a aceitar o que lhe tinha acontecido. Interessar-se por outras pessoas parecia-lhe inconcebível nessa fase.

E agora havia a Anna e os seus olhos brilhantes. Os mistérios cativavam-na e Mike estava a deixar-se cativar pela fantasia que ela fazia dele. Queria perceber onde aquilo o poderia levar. Mesmo sem coração, mesmo sem vida, mesmo sem a capacidade de sentir alguma coisa, ele chegaria a alguma conclusão.

Se se tornasse demasiado estranho, ele afastaria a Anna. Isso ele sabia fazer bem – empurrar as pessoas para longe de si, isolá-las da sua existência, apagá-las, por fim. Afinal, a falta de coração justificava as suas atitudes mais radicais e insensíveis.

Por enquanto, ele estava a gostar do jogo. Ele também era curioso e intrépido, apesar de disfarçar a impaciência debaixo de uma capa de sobriedade responsável que destoava da sua aparente idade.

Às sete da tarde do dia trinta e um de outubro ele estava no passeio do Music and Chips, postado em frente à porta da cafetaria, à espera da moça. Vestia a sua capa e colocara a medalha da águia pregada na lapela do casaco formal escuro, que tapava uma camisa de flanela aos quadrados vermelhos e pretos. Usava calças de ganga, mas tinha substituído as habituais sapatilhas por uns sapatos engraxados com atacadores. A sua roupa era mais formal, em determinados aspetos, mas noutros notava-se claramente que hesitara como se devia apresentar para a ocasião que não era um encontro. Uma pequena parte de si, contudo, sabia que era mesmo um encontro e acreditava que a Anna também tinha isso em mente. Não se devia exagerar as expetativas, nem provocar uma deceção, mas defraudar a outra parte resultaria num início um tanto ou quanto ambíguo que ele queria evitar. Isso mostrava que estava interessado? Não, negou de si para si. Mostrava apenas que era um rapaz bem-educado, que tratava os outros com respeito.

A Anna chegou dois minutos depois das sete. Tinha estado a correr para não chegar atrasada, mas fizera o último trajeto num passo normal para dar a entender que não estava aflita com essa falta. Mike, porém, percebia a sua temperatura corporal mais alta alguns graus e o coração a bater no peito. Invejou-a. Queria também ter um coração desses, sonoro e alegre. O batimento cardíaco anormal também se podia dever à excitação de o ir encontrar em breve, ele também sentia o mesmo frémito na pele branca e gelada, como um calafriio que não era totalmente simulado.

O rosto dela estava maquilhado com sombras escuras nas pálpebras, os olhos delineados com uma linha grossa também escura, os lábios pintados de preto. Nada de rosas nas bochechas. A Anna queria parecer lívida, salientando o contorno dos ossos da cara, acentuando a alvura da sua pele. Mike observou-a demoradamente à medida que se aproximava. Movia-se com uma leveza estudada, para que parecesse que flutuasse ou deslizasse. Ela estava claramente a imitar os trejeitos comumente associados aos vampiros na cultura popular. Bem, pensou ele com cinismo, ele mexia-se daquela maneira, ele tinha essa aparência descorada, ele era um cadáver ambulante que tinha de ter muito cuidado para não denunciar que perdera as suas características de ser vivente quando fora transformado. Reaprendera tudo com o mordomo, para se poder incluir na sociedade humana e viver como eles – como os vivos.

Era um mistério para si, sempre o fora, por que razão esses vivos queriam imitar os mortos. Se eles conhecessem o castigo eterno, como era pesado e limitador, talvez não achassem tanta piada. Por instantes de maldade, considerou contar à Anna quem era, o que era. Era a noite de Halloween que se prestava a esse tipo de revelações, a histórias macabras e assustadoras. Mas o seu bom senso veio imediatamente ao de cima e Mike desistiu dessa parvoíce.

A Anna parou à sua frente. Fez um sorriso mínimo.

— Vamos entrar?

— Claro.

A resposta imediata espantou-a.

— Está frio para ti? – perguntou-lhe ela.

— Eu nunca tenho frio. Só achei que quisesses…

Despachar depressa isto? A dúvida fez Mike recuar na pressa que estava a demonstrar. Também tentou sorrir, mas saiu-lhe um esgar torto e desistiu de espelhar na cara a simpatia corriqueira de um rapaz nervoso diante de uma miúda com quem estava a sair pela primeira vez. Até porque aquilo nem sequer era um encontro.

— Achaste que queria o quê?

— Achei que querias cumprir o horário – explicou ele.

— Por passar das sete da tarde? Relaxa, Mike Park. Não controlo as horas com esse fanatismo e acho que tu também não o deves fazer. – Acrescentou, receosa: – Ou estavas a contabilizar os meus minutos de atraso?

— Não. O tempo, para mim, não é um problema.

— Então… está tudo bem.

— Está tudo perfeito – concordou ele.

Aquele início não foi muito auspicioso, mas Mike não quis pôr-se a pensar nas eventuais falhas que podiam minar uma possível futura relação – porque, considerou irritado com a sua vulnerabilidade na questão, não havia lugar a nada a partir daquela noite.

— Gosto da tua capa. É por causa do Halloween? Mas acho que não será porque te vi a usar essa capa no primeiro dia de aulas. Ou estou enganada? – disse a Anna.

Mike notou que ela tentava não se mostrar ansiosa e que falhava miseravelmente. Porque ele conseguia ver, sentir e avaliar para além das aparências e dos pequenos subterfúgios miseráveis das pessoas normais. Enterneceu-lhe. Normalmente, essas tentativas irritavam-no e causavam-lhe dó, mas com ela tudo era diferente. Ou começava a ser diferente porque ele assim o definia. E sentia-se inquieto e inseguro com essa escolha.

— Não, não estás enganada – esclareceu, brandamente. – Usei esta capa no primeiro dia de aulas e nunca mais a levei para a escola porque o meu irmão Brad achou que era exagerada. Daria muito nas vistas vestido desta maneira… clássica.

— Um conselho acertado – admitiu a Anna. – Foi por causa dessa capa que me chamaste a atenção.

— Então, dei nas vistas.

— Se fores medir o impacto da capa por mim… sim, deste efetivamente nas vistas.

— E isso foi bom ou mau? – perguntou, genuinamente admirado.

Ela encolheu os ombros. O seu sorriso ameaçou tornar-se enorme e ela escondeu a boca nos dedos. Baixou os olhos, num súbito acesso de timidez.

— Foi bom… Estamos aqui para beber um café juntos.

Se ainda tivesse sangue, Mike teria corado. Um rosnado baixo que ele não conseguiu controlar saiu-lhe da garganta.

— Ah. Já percebi…

Ela não quis confirmar nada e subiu as escadas do Music and Chips a saltitar sobre os degraus. Abriu a porta com um puxão bastante vigoroso. O seu nervosismo aumentara e o calor que emanava deixava Mike tonto. Ele endireitou as costas e enrijeceu os músculos já de si rígidos. Iria aplacar toda a sua vontade insana de tocar nela, de pressionar cada centímetro daquele corpo pulsante com as suas mãos geladas.

Estava a perder o juízo, considerou cada vez mais incomodado com as sensações que o atravessavam e o disputavam. Colou o queixo ao peito e, a olhar de baixo para cima, unindo as sobrancelhas sobre os olhos concentrados na maçaneta que ela segurava para manter a porta aberta e dar-lhes passagem, também subiu os degraus. Não foi primeiro do que ela. Diziam as regras da boa educação que se deixava passar as senhoras à frente. Ela hesitou, talvez preparada para escarnecer dessa regra que não se aplicava no mundo moderno, em que se desejava uma igualdade entre homens e mulheres, mas desistiu ao aperceber-se que ele iria ser intransigente e que não entraria antes dela na cafetaria.

Escolheram uma mesa do meio que, espantosamente, se revelou discreta por estar nesse local, entre grupos de amigos, na sua maioria estudantes do Instituto que, concentrados nas suas conversas e nas suas risadas, ignoravam quem estivesse fora do seu círculo, sendo que ignoravam com mais afinco quem se sentasse na mesa situada no centro da fileira de mesas.

Mike agarrou na ementa cartonada e abriu-a na seção das bebidas quentes. Disse:

— A minha capa não é uma fantasia de Halloween.

A Anna pestanejou.

— Mas parece… tem o feitio certo.

— Acredito que sim. Mas vesti-me assim para me sentir mais aconchegado. Gosto muito desta capa. Foi-me oferecida por um grande amigo que também foi o meu mentor.

— Um professor de outra escola?

— Pode-se dizer que sim.

— Uma oferta… diferente.

Ele abriu as abas da capa. Segurou na medalha com a figura da águia com a ponta dos dedos e puxou-a ligeiramente para a frente. A luz dos candeeiros do teto incidiu sobre esta e a prata rebrilhou. A Anna olhava-a fixamente, num pequeno estado de hipnose que ele desfez com um estalar de dedos. Pousou a ementa na mesa, colocou as mãos unidas sobre a ementa.

— Esta medalha também me foi dada pelo meu mentor. Quando a uso, juntamente com a capa, lembro-me de quem sou, do que ele me ensinou a ser, de como a vida pode ser extraordinária se tivermos o desejo de a fazer extraordinária. Só ponho a capa e uso a medalha em ocasiões especiais. Aconteceu no primeiro dia de aulas, porque é um dia muito importante no meu percurso escolar, estava a começar o secundário. Uso-a hoje, não porque é o Halloween e quero impressionar-te. A razão é que gosto de me sentir… seguro daquilo que estou a fazer e contigo, Anna Hillinger, não tenho bem a certeza. Ou ainda não descobri, mas estou apostado em descobrir.

Ela recostou-se no assento acolchoado.

— Uau… Isso foi uma declaração impressionante, Mike Park. Lamento desapontar-te, mas não sou assim tão eloquente e precisa. Tu sabes o que queres. Mas eu… não. Acho que ainda tenho uns bons anos para definir esse caminho e essa… vida extraordinária.

— Fui muito sério – constatou, a atrapalhar-se. – É um dos meus defeitos. Ser demasiado sério.

— Foste contundente. E eu gosto de pessoas que dizem coisas que interessam.

— O que queres beber. Já decidiste?

Ela voltou a pestanejar, por ele ter mudado o rumo da conversa tão de repente. Um pequeno lampejo de contrariedade passou-lhe pelo olhar, mas fez um esforço para não pegar nessa ponta e iniciar uma discussão. Então, respondeu de forma natural:

— Um café machiatto aromatizado de baunilha.

— Também vou beber o mesmo. Eu pago a conta no final.

— Tão cavalheiro. Abres-me a porta, pagas o lanche…

— Também queres alguma coisa para comer?

— Não, obrigada. Quero manter-me fiel à minha proposta. Beber um café contigo. Mais nada.

— Certo. Porque se comêssemos…

— Certo – anuiu ela, interrompendo-o.

— Sou educado com os outros, gosto de deixar uma boa impressão. Podes considerar que isso é ser um cavalheiro, tudo bem. 

Ela assentou o queixo na mão. Observou-o longamente. Ele guardou as ementas no suporte, ajeitando-as de maneira a ficarem perfeitamente alinhadas.

— E que outros atributos possuis, Mike Park? Para além de um gosto impecável no vestir e de seres cuidadoso com as outras pessoas?

Ele também se recostou no assento. Devolveu a observação e a Anna arrepiou-se.

— Não gosto de me elogiar. Não sei ver-me… ao espelho.

— Ah… queres que eu te elogie, é isso?

— Não é preciso. Esta noite já o fizeste bastante. Conta-me, Anna Hillinger. O que estás a estudar no Instituto para o Ensino e Ciências Castle of Glass?

— Economia. Quero mudar o mundo ao distribuir melhor a sua riqueza.

— Um excelente propósito.

— Mas também quero escrever livros para crianças.

— Outro excelente propósito.

Conversaram durante uma hora, ininterruptamente. A Anna bebeu o seu café, Mike apenas o beberricou. Falaram sobre a escola, os colegas, as aulas, os professores, o que esperavam no fim do secundário, filmes de que gostavam mais. Mike nunca se sentiu pressionado e a Anna apreciou a sua companhia. Acabou por ser um encontro muito agradável e simples.

No fim, ele levou-a a casa. Quando chegaram ao bairro dela, grupos de crianças andavam a bater de porta em porta a pedir “doces ou travessuras”, disfarçados, a carregar cestos ou a segurar sacos que esperavam encher de guloseimas. Mike ria-se sempre que um pequeno vampiro passava por eles.

Junto ao relvado da sua casa, a Anna voltou-se para ele e agradeceu-lhe por a ter aturado. Mike não percebeu, porque para ele fora muito fácil passar aquele tempo com ela. Podiam repetir, se ele não se importasse.

— Não me importo, Anna Hillinger.

— Gosto quando dizes o meu apelido – confessou ela e envergonhou-se.

Deu-lhe um beijo de raspão na face e correu para a porta.

Ele girou sobre os calcanhares, aconchegou melhor a capa ao pescoço e também foi para a sua casa.


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