Os Irmãos Park escrita por André Tornado


Capítulo 12
Dois vampiros e um feiticeiro




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Eles nunca se viam ao espelho. Confiavam na sua aparência que se mantinha durante anos num nível decente e civilizado, ao ponto de não provocarem espanto e censura. Confiavam, sobretudo, na apreciação que faziam uns dos outros. De resto, para Mike e Brad era impossível utilizarem um espelho, pois não tinham reflexo. E Rob nunca estava interessado em conferir a sua imagem, por se achar naturalmente encantador.

Naquela ocasião que era especial acharam necessário saber se estavam apresentáveis. Fizeram um círculo no átrio da sua casa e puseram-se a observar-se mutuamente para verificarem se estavam vestidos e disfarçados de acordo com as exigências da festa de mascarados do Charles Elliot.

No início, Mike tentara esquecer aquela ideia e dispôs-se a sabotar a festa, dizendo que eles não iriam aparecer. Mas acabou por desistir de estar contra, pois o Brad deixou de o ouvir e o Rob nem sequer dava mostras de se interessar pela discussão. Acabou a falar para o vazio e acabou por aceitar que era uma guerra perdida. Continuava desconfiado e inquieto, mas também achava que seria pouco inteligente zangar-se com os irmãos por uma ninharia. No fim de contas, era só uma festa idiota de adolescentes.

Entreolhavam-se no átrio que continuava a ser o único lugar decente dentro de casa. As arcas, os baús e as malas permaneciam acumuladas no centro da sala, as outras divisões permaneciam em ruínas, sujas e com habitantes furtivos, como aranhas, ratos e insetos. Deixaram de ter tempo ou disposição para limpezas de que não iriam usufruir.

Conferiram que estavam apresentáveis para a festa. Dois vampiros e um feiticeiro. Na realidade iriam mostrar-se conforme eles eram, aquela era a sua verdadeira natureza, e essa provocação enchia Mike de uma certa presunção desdenhosa que lhe realçava os traços do rosto. Para disfarçar um pouco que aquele era o seu aspeto, tinham colado barbas postiças, no caso de Brad e de Rob, e pintado uma mancha enviesada escura que fazia as vezes de uma barba rala e persistente, no caso de Mike. Pareciam mais velhos e desleixados, mas os seus olhos continuavam honestos, ávidos e acutilantes.

Vestiram-se de preto. Mike foi recuperar a sua capa amada, que ele passara a levar para a escola apenas durante alguns dias, e a medalha da águia que pregara na lapela do casaco. Brad escolhera o seu fato especial, com golas engomadas, das reuniões oficiais com outras criaturas fantásticas. Rob usava a sua túnica mágica comprida, o seu chapéu pontiagudo também mágico, decorado com estrelas que se podiam mover, brilhar e piscar – embora Mike tivesse avisado que esse efeito não seria bem compreendido pelos outros convidados da festa e pediu-lhe que mantivesse o chapéu parado – e munia-se com o seu bordão que podia causar maiores distúrbios que um chapéu interativo.

Estavam apresentáveis, julgou Mike e pelo aceno de Brad e o sorriso discreto de Rob, eles achavam o mesmo.

— Prontos e bonitos! – anunciou Brad, cantarolando.

— A que horas temos de aparecer? – perguntou Mike.

— O Charles falou por volta das seis. Temos tempo, mas não queria chegar atrasado – respondeu Brad.

— Um feiticeiro nunca chega atrasado… – começou Rob.

— Já sabemos, já sabemos – atalhou Mike simulando um suspiro.

— Gostei da tua ideia – disse Brad e fez um esgar que lhe mostrou os dentes. – Vamos aparecer com a nossa dentição normal, com os caninos desenvolvidos.

— Hum… – fungou Mike, apreciando ainda mais todo o desdém que acumulava dentro de si. Apreciava aquele estado, a indiferença pontilhada com uma réstia de maldade, uma reminiscência de como ele era antes de conhecer o mordomo e de entrar para a mansão. Passou a língua pelos dentes. Apreciou o relevo pontiagudo dos caninos que se espetavam, ansiosos, por sorver líquido vital, quente e fresco. – Todos vão julgar que se trata de um adereço… vão elogiar-nos o cuidado com o detalhe… e, no fim, são dentes verdadeiros. Vai ser divertido!

— Como eu também tenho dentes como os vossos – disse Rob – e sou um feiticeiro, se calhar não vão dar grande importância.

— E porque é que quiseste dentes de vampiro, se és um feiticeiro? – perguntou Brad.

— Somos irmãos, podemos ter os dentes todos iguais. Ou não? Saímos à nossa mãe… ou ao nosso pai. Já preparei a desculpa.

— Supostamente são dentes postiços, Rob. Não temos de justificar a sua proveniência genética.

— Ah…

— Deixa o Rob – disse o Mike. – Ele vai ajudar a que não desconfiem de nada.

— Na festa vai estar toda a gente mascarada. Não acredito que alguém desconfie de alguma coisa, Mike – replicou Brad ingenuamente.

— Perfeito!

— Mike… estiveste a beber sangue? – perguntou Rob. – Pareces-me… com alguma fome. Não vamos morder ninguém na festa e é melhor prevenirmos os acidentes.

Mike tornou a fingir fungar e espetou o queixo escuro da barba rascunhada em grandes listas desiguais.

— Estão com medo que eu use os meus dentes? Estão bem afiados, perfeitos para uma mordida bem dada… Sinto-me inspirado! – A seguir moderou o seu azedume e voltou a ser o Mike normal que eles conheciam. – Descansem, irmãos. Estive a beber sangue há uma hora, sim. O Brad também esteve a beber, que eu reparei na falta de umas bolsas de preparado no frigorífico. Tenho as minhas sedes e as minhas fomes controladas. Não irei morder ninguém.

— Nem aquela menina… a Anna?

Mike estremeceu com a pequena raiva que o chicoteou. Arrebitou o lábio e rosnou.

— E porque haveria eu de querer morder a Anna?

— Não sei… Lembrei-me dela por causa daquela tarde, na cafetaria.

— Brad, o Mike não pode morder a Anna, nem qualquer pessoa com uma verdadeira intenção de morder e de misturar o sangue e o ADN, senão acontece a transformação e isso é um caminho sem volta.

— Ah…

— Podemos não falar de coisas sérias, por favor? – pediu Mike apertando os ombros dos irmãos. Estavam todos abraçados naquele círculo. – Vamos sair para uma festa e, mesmo que eu não goste muito deste tipo de encontros, espero passar uma noite excelente e até divertida.

— É também o que nós queremos, Mike – concordou Rob.

— Se quiseres ficar sempre comigo, eu não me importo de cuidar de ti – propôs Brad sincero.

— Não vou precisar que cuidem de mim numa festa. Obrigado pela oferta, Brad.

Mike desfez o círculo. Avaliaram-se durante mais alguns minutos e caíram na risada, porque estavam ridículos e magníficos, ao mesmo tempo. Barbudos, elegantes, com um toque de insolência que caía sempre bem, porque eram adolescentes a caminho de uma festa que era bastante típica dessas idades, com todos os exageros agregados.

Foi Mike que abriu a porta da rua. Dobrou-se numa vénia e deu passagem aos irmãos que adotaram um passo afetado, insolente e majestoso, para saírem de casa, num cortejo inchado de vaidade. No alpendre voltaram a rir-se alto com aquele teatro.

Rob agitou o bordão:

— Como é que querem viajar, meus senhores?

As mãos de Mike encolheram-se. Se havia coisa que Mike não fazia era tocar no bordão do irmão feiticeiro. Uma vez resolvera experimentar usá-lo, às escondidas. Achava que podia mexer naquilo, dizer umas palavras mágicas e fazer uns feitiços simples, ninguém haveria de notar se fosse magia inofensiva. Mas, assim que tocou no bordão, foi projetado para trás com uma descarga elétrica, choveram faíscas e pequenas línguas de fogo, e ele percebeu que um vampiro nunca podia tocar no bordão de um feiticeiro. Lição aprendida.

— Rob, baixa lá isso! – pediu. – Nada de teletransporte, de voos ou de irmos a flutuar sobre nuvens de vapor. Vamos a pé.

— A pé, Mike?! – admirou-se Brad. – O Charles mora na outra ponta da cidade!

— O exercício vai fazer-nos bem.

— Nós não precisamos de fazer exercício, Mike, e o Rob tem desporto na escola.

— Apanhamos ar, vemos as vistas, conhecemos ruas novas, qualquer coisa dessas. Nada de magia!

— Posso fazer sem dar nas vistas – sugeriu Rob, bem-intencionado.

— Eu sei que podes, Rob. Mas vamos a pé. Está decidido.

— E quem foi que decidiu? – insistiu Brad. – Foste tu sozinho que decidiste e não fomos consultados.

— A nossa irmandade não é uma democracia.

— No outro dia, disseste que não te tinhas voluntariado para ser o nosso líder e agora estás a fazer de líder.

Mike encolheu os ombros, indicando que ignorava a questão.

Os três desceram o curto caminho empedrado que cortava o relvado impecavelmente aparado. Começaram a andar, pois quanto mais depressa andassem, mais depressa atravessavam a cidade e chegavam à festa. Mike ainda fez um elogio ao terreno da frente da casa, em como estava bonito e apresentável, mas o Brad amuara e o Rob não costumava responder a observações casuais. Ficava em silêncio e isso era o sinal comum de que concordava com tudo o que estava a ser dito.

À medida que iam andando e atravessando quarteirão atrás de quarteirão, o amuo de Brad foi-se dissipando. Ele não era de ficar zangado durante muito tempo, e começou a falar com a sua alegria e entusiasmo contagiantes. Em breve não se calava, não havia nada que o pudesse calar, e ia tecendo comentários a tudo o que via, contava pequenas anedotas, ria-se sozinho e contagiava-os com o seu riso despreocupado.

Levaram cerca de hora e meia até chegarem ao bairro onde vivia o Charles Elliot, mas nem sentiram o tempo, que para eles não era um obstáculo ou um impedimento, passar. Brad apontou para a casa mais iluminada na pequena praceta sossegada e disse que era ali. O amigo dera-lhe o endereço e ele, dois dias antes, fizera um pequeno reconhecimento do local para ter a certeza de que não se enganavam.

Mike olhou em volta. Parecia que o suborno tinha funcionado – as casas dos vizinhos aparentavam estar desocupadas, num silêncio pacífico, enquanto o barulho da música alta e de uma animação descontrolada de muita gente acumulada ia gradualmente aumentando à medida que se aproximavam.

A propriedade da família Elliot situava-se num pequeno largo onde terminava uma rua sem saída. Era sensivelmente três vezes maior do que a habitação deles, analisou Mike, com o seu olhar crítico – sempre que chegava a algum lugar novo fazia uma avaliação sistemática, rápida e detalhada, para antever problemas. Era o seu instinto a funcionar em pleno. Tinha um relvado defronte também enorme que se encontrava ocupado por grupos de jovens, a maioria dos quais alunos da escola. Os rostos diferentes, determinou ele, pertenceriam a familiares e amigos desses alunos. Estavam todos disfarçados, com mais ou menos apuro e requinte. Alguns só usavam um acessório, como um enfeite na cabeça ou um laço ao pescoço. Outros exibiam um traje completo da personagem que tinham escolhido encarnar para aquele dia. Uma rainha, um super-herói, um cientista, um ídolo do desporto, uma estrela da música.

A porta da frente escancarava-se, as luzes do alpendre ligadas para fornecer um ponto de referência aos recém-chegados. Havia iluminação por todo o lado, a sair das janelas contíguas à porta da entrada, a sair das janelas do segundo piso. E depois havia a música a jorrar em golfadas do interior da casa para o exterior, bastante barulhenta e exagerada.

Brad adorou o ambiente. Rasgou um sorriso e exclamou, excitado:

— Esta é uma festa como deve de ser!

Rob concordou sem muita convicção.

— Sim…

— Ah, não estejas receoso. Vamos à procura do Charles. Ele vai dar-nos as boas-vindas e vai deixar-nos à vontade. Mike?

— Sim, podemos ir entrando… não preciso de vos avisar sobre beber demais… ou sobre aceitar bebidas de desconhecidos…

Brad riu-se com a piada.

— Beber? Se nem água bebemos, como é que vamos beber outras bebidas?

— Fica o aviso.

— Lembras-te daquele baile de finalistas? – comentou o Brad a rir-se. – Apanharam-te e tentaram enganar-te com uma competição de copos, com mais coisas à mistura para te deixarem tonto mais depressa. Mas depois ganhaste a aposta, e os tipos acabaram a noite inconscientes ou a vomitar pelos cantos.

— E desde esse dia nunca mais fomos a mais nenhum baile de finalistas – completou Rob. – Porque o Mike disse que aquela história iria repetir-se sempre. Desafios e cenas lamentáveis.

— Deram por falta dos bailes de finalistas?

— Um pouco, sim – contrariou Brad e instigou Rob a assentir com uma cotovelada. O feiticeiro não se comprometeu.

— Podemos pensar em ir este ano a um baile – concedeu Mike. – Já se passou muito tempo desde esse último baile de finalistas, qualquer coisa como dez ou quinze anos. Os tempos mudaram e o Instituto parece-me uma escola com regras mais apertadas.

— Tu e as regras! – disse Brad e revirou os olhos.

Ele adiantou-se e puxou Rob pelo braço. Atravessaram a porta e perderam-se na barafunda da sala. Mike deixou-os. Não queria ser acusado, mais tarde, de lhes ter estragado a diversão. Ele também gostava de festas, ele também gostava de se distrair – mas tinha tudo que ser a seu gosto e conforme a sua vontade. Sim, era melindroso, era perfeccionista, era um chato e não se importava de o ser.

Se ele acreditasse no destino, infelizmente era crença que não alimentava havia muito tempo por toda a sua experiência pessoal, porque era um vampiro e porque tinha de lidar com a imortalidade como coisa normal, poderia ser que classificasse aquele momento como potenciado por forças superiores que estavam para além do seu controlo.

Ele controlava essas forças superiores, contudo…

Assim que entrou na sala apinhada de gente que dançava, vestida nos fatos brilhantes das suas fantasias, parou e o seu olhar encontrou o da Anna. O tal destino…

O seu coração, se porventura batesse, teria parado, ou saltado uma batida, ou tudo ao mesmo tempo numa taquicardia esquisita. O facto é que Mike sentiu qualquer coisa dentro do peito oco. Uma ânsia de ainda ter um coração palpitante para poder apreciar a alteração de ritmo e a sensação de sufoco.

A Anna não estava disfarçada. Vestia-se de preto, um xaile, rendas, as mesmas botas de todos os dias, o cabelo amarrado num carrapito, a maquilhagem sombria que lhe realçava os olhos inteligentes. Por debaixo da palidez fabricada com os cosméticos, Mike viu-a corar abruptamente, o sangue a afluir às faces e fixou-lhe, esfomeado, a veia pulsante no pescoço que seria macio e quente e irresistível…

Arreganhou os dentes e mostrou os caninos. A Anna admirou-se, entre o medo e o fascínio. Corou ainda mais e esgueirou-se por um corredor. Mike deixou de a ver.

Aquele pequeno instante de encanto e de perigo esvaiu-se. O barulho da festa reentrou, retumbante, a vida a preencher o pequeno vácuo que ele tinha criado involuntariamente. Mike aspirou o ar e encontrou o perfume dela. Sentia-se fremente, esganado. Queria tocá-la, sentir-lhe a tepidez da pele, cheirá-la de perto, causar-lhe arrepios…

Talvez o Brad tivesse razão e havia ali qualquer coisa que ele devia explorar. A Anna Hillinger era uma boa distração, para além da escola, dos estudos, da perseguição do Johnny.

— Mike! Bem-vindo!

A voz de Elliot devolveu-lhe a serenidade, como um estalo, como um empurrão. Mike fechou a boca, endireitou-se, ficou apático.  Recebeu uma palmada nas costas e um copo foi-lhe empurrado para as mãos.

— Os teus irmãos já se estão a divertir. Diverte-te! Não faças cerimónias. O que é que precisas? A comida está na cozinha, a bebida também. Estou a distribuir refrescos porque está muito calor e temos de nos hidratar. Se quiseres alguma coisa mais forte fala com o Brian. – Piscou-lhe o olho. – Ouviste? É com o Brian… Se quiseres outras coisas, também se podem arranjar, mas primeiro falas comigo. Não quero problemas, está bem? Os meus pais têm amigos na polícia e não se pode saber que havia coisas esquisitas nesta festa. Tudo limpo, tudo controlado. Está bem?

Mike assentiu e viu-o ir a caminho de outro convidado. Elliot estava nervoso e histérico no papel de anfitrião. Olhou para o seu copo. Era coca-cola com duas pedras de gelo a boiar. Descartou-o em cima da primeira mesa que encontrou.

O Brad estava rodeado de colegas da sua turma. Gesticulava e falava sem parar, aconchegava a barba que se descolava com o calor que estava dentro da sala, sorrindo, rindo-se deitando a cabeça para trás, tão feliz e descontraído que Mike sorriu.

O Rob segurava firmemente o seu bordão de feiticeiro, cingindo-o ao peito e ia respondendo a perguntas que duas meninas lhe faziam sobre o seu fato. Tentava não partilhar o bordão, pois mais ninguém podia tocar naquele objeto mágico, nem mesmo com a sua supervisão, mas ia demovendo a curiosidade do par de interlocutoras com um sorriso tão sincero que elas estavam a adorar a sua companhia.

Ele pôs-se a pensar se não deveria ir à procura da Anna…

Não. Definitivamente, não! E muito provavelmente teria de começar a afastar-se dela na escola também. Aquilo podia tornar-se perigoso. A Anna exercia sobre si uma influência, uma comichão, um desequilíbrio. Na cafetaria tivera outros problemas para resolver, mas notou uma pendência. Na escola, ela já lhe tinha chamado a atenção durante os intervalos por causa dos olhares que o escrutinavam até à sua alma inexistente. Ali, na festa, naquela sala quente, com os seus sentidos soltos por assumir ser o vampiro que efetivamente era, dava largas à sua imaginação. E à imaginação dela, pelos vistos.

Não. Definitivamente, não! Tinha de encontrar uma forma de afastar a Anna, de criar uma qualquer diversão, um boato que a fizesse odiá-lo… Seria para o bem dos dois, precisamente para o bem dela.

Nisto, recebeu um encontrão pelas costas. Foi projetado para diante, mas fingiu o tropeção, pois o toque não fora suficientemente forte para derrubá-lo. Poucas coisas naquele mundo humano eram capazes de o lançarem ao chão. Acabava por haver uma grande dose de teatro que ajudava a manter o seu segredo. Deu dois passos para diante, lançou os braços para evitar a queda.

— O que é que fazes aqui, inseto?!

A voz irritou-o e Mike girou sobre si mesmo. O Johnny tinha encalhado nele, talvez sem querer, muito provavelmente de propósito, pois aquele rapaz desmiolado não tinha maneiras, nem um pingo de sensibilidade, impunha-se sempre e com violência. Mike mostrou-lhe os dentes e sabia, pela ligeira pigmentação do que via, que os seus olhos se tornaram vermelhos.

O Johnny, porém, não se intimidou, porque julgou que fazia parte da fantasia. Deu-lhe outro empurrão, desta vez pressionando a mão no ombro e fazendo força. Mike deu uma guinada.

— Não me estás a ouvir, inseto?

— Estou a ouvir-te muito bem. Que mania que tu tens de que sou surdo!

— Então, responde!

— Fui convidado, como toda a gente que aqui está. Tenho todo o direito de estar na festa do Elliot.

— Eu não gosto de te ver aqui. Vai-te embora! A tua cara feia incomoda-me.

Os rapazes que estavam com o Johnny riram-se. Mike rosnou.

— Uh! Que medo do Drácula! – troçou o brutamontes. – Pensas que me metes medo, inseto? Não passas de um inseto ridículo que vou esmagar debaixo do meu sapato. Estou a aturar-te demasiadas vezes. Na escola, no Music and Chips, nesta festa…

— Tenta lá, seu anormal!

— Mike!!

Brad aproximava-se. Afastou os curiosos, que começavam a juntar-se para verem o que estava a acontecer, para alcançar o irmão.

— Mike, deixa-o estar. Anda comigo – insistiu.

— Ele não vai a lado nenhum – ameaçou o Johnny. Agarrou numa ponta da capa do Mike, puxou-a e fez um rasgão. – Ele agora vai ser delicadamente escoltado até à rua… por mim. Ganhou esse privilégio.

A sua capa estava rasgada. A sua capa fora arruinada por aquele rapaz estúpido. Mike começou a tremer, a resfolegar, a sentir-se gelar. A sua raiva crescia e o Brad apercebeu-se. Tentou intrometer-se, mas um dos rapazes que acompanhava o Johnny intercetou-o. Brad mostrou as mãos num sinal de rendição. Deu meia-volta e foi à procura do Rob. O feiticeiro estava na cozinha, ainda com as duas meninas que estavam completamente enfeitiçadas pelo seu magnetismo pessoal. Ou muito provavelmente seria somente um feitiço básico que estimulava as feromonas.

— Rob! O Johnny está na festa e está a embirrar com o Mike!

Uma das meninas cobriu a boca com os dedos. A outra encolheu-se. Ficaram fofas naquela posição porque estavam mascaradas de coelhas. O Brad reviu as suas hipóteses. Podia ficar no namoro com as meninas, ao lado do Rob, ele não se importaria de partilhar as amigas, de certeza, ou podia regressar à sala e ajudar o Mike.

Decidiu-se por ajudar o Mike e arrependeu-se no segundo seguinte, pois que significava que a festa terminava para eles.

— Onde está o Mike? – perguntou Rob.

— Levo-te até ele. Mas nada de usares feit… nada de seres radical. O Mike pode não aprovar, mesmo que esteja metido numa grande alhada, neste momento. – Voltou-se para as meninas e mentiu-lhes – Ficam aqui à nossa espera? Nós voltamos já.

As duas acenaram que sim em simultâneo e as suas orelhas compridas de coelha oscilaram.

— O que queres que eu faça? – perguntou Rob a ser arrastado por Brad até à sala.

— Vamos fazer barulho, sei lá. Criar uma distração de modo a conseguirmos afastar o Johnny do Mike. O Johnny… ele. Ele rasgou a capa do Mike.

— O quê? E o Mike ainda não o mordeu?

Na sala, havia um ruído ululante que se sobrepunha à música alta que animava o ambiente. As pessoas convergiam para o círculo onde, qual arena improvisada, estavam os dois rivais. Naquele ponto, já toda a gente tinha percebido que o Johnny e o Mike eram rivais, por implicância do primeiro e desafio do segundo.

Brad foi empurrando, empurrando, ao mesmo tempo que trazia Rob consigo preso numa ponta da túnica. Conseguiu furar a pequena multidão e chegou-se à frente.

O Johnny segurava o Mike pela gola da blusa e agitava-o como se fosse um boneco de trapos, enquanto se ria, praguejava e fazia uma sessão de exibicionismo dos seus músculos poderosos. O Mike estava como que desmaiado e havia uma mancha arroxeada na testa, outra na face, perto do ouvido esquerdo.

— Larga-o imediatamente! – gritou Brad.

— E se eu não o largar, o que me fazes? – riu-se o brutamontes.

— Dou-te uma dentada e deixo-te sem sangue, desgraçado!

— Não tenho medo dos vossos dentes postiços! Vocês são todos uma cambada de imbecis! O idiota do teu irmão também me tentou morder e eu acabei logo com a brincadeira.

— O Mike nunca… ele não faria isso se não tivesse sido ameaçado. Larga-o ou vais levar uma dentada que nunca mais te esqueces.

— Brad, eu poderia fazer com que ele perdesse as forças – sussurrou Rob.

— Larga-o! Ouviste-me? – tornou Brad.

— Vá, vem cá morder-me! A ver se deixo.

Brad encurvou as costas e ia preparar o salto quando o Mike despertou.

— Não, Brad.

O Elliot apareceu, furando por entre os seus convidados.

— O que é que se está a passar? Johnny… larga o Mike. Por favor.

— Ah, o dono da casa. Devo o meu respeito ao dono da casa. E porque pediu com jeitinho – zombou o Johnny. Abriu a manápula e o Mike caiu no chão com um gemido.

— Somos todos amigos, ou quê?

— Claro que sim, Elliot.

— Estiveste a beber, Johnny?

— Como podes dizer uma coisa dessas? – escandalizou-se o Johnny, espalmando as mãos no peito. – Sou muito respeitador das regras do dono da casa e disseram-me, ali à entrada, que aqui não há bebidas alcoólicas.

Fechou essa declaração com uma gargalhada. Fez sinal aos seus seguidores e saiu da sala, com modos bruscos. Todos se afastaram para o deixar passar, incomodados. Baixavam os olhos, murmuravam comentários, esboçavam sorrisos amarelos para mostrar o seu apoio e divergir a sua fúria, pois ele era bastante errático e podia, de repente, implicar com qualquer um que ali estivesse. Toda a gente conhecia a sua reputação.

— Mike, o que foi que aconteceu? – perguntou Rob, passando uma mão pela testa marcada do vampiro.

Ele e Brad tinham-se ajoelhado junto ao irmão.

— Quis atacá-lo… quase que o ataquei, mas depois… recuei. E quando recuei, ele apanhou-me.

— O Johnny bateu-te.

— Dois murros. Toda a gente viu.

— Podemos fazer queixa dele! – declarou Rob veemente e bateu com o seu bordão no soalho. Saltaram algumas faíscas.

— Estamos numa festa particular, Rob – lembrou Brad, desapontado. – Não podemos fazer queixa na diretoria da escola. E quanto a ser um caso de polícia… precisamos de testemunhas e não acredito que alguém daqui queira denunciar o Johnny. Vê só como o Charles se acobardou diante dele.

Mike pôs-se de pé. Enrolou-se na sua capa e disse que tinham de ir embora. A festa terminara para eles. Brad ficou tristonho com aquele desfecho, porque estava a divertir-se, mas também compreendia que depois do ataque ao Mike já não seria tão divertido fingir que estava tudo bem. O Johnny podia voltar, e podia ser ainda mais violento e estúpido. Olhando para o Rob, notou que o feiticeiro concordava com o Mike. Assim, os três deixaram a festa do Charles Elliot, saindo por uma das portadas da sala, para não darem de caras com o Johnny que urrava bestialmente no relvado da frente, gabando-se, muito provavelmente, da lição que dera ao irmão Park que não passava de um reles inseto.


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