Alternate Eldarya escrita por Ahelin


Capítulo 2
Jantar


Notas iniciais do capítulo

Eu tenho o estranho costume de postar nessas horas esquisitas, né? Bom, enfim.
Capítulo 2!
Aproveite e blablabla
Vai ler. Eu botei minha alma todinha nele.



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Eventualmente, você o soltou. 

Ezarel tomou um momento para se recompor e respirou fundo. 

— Você pode ir lavar o rosto, se quiser — ofereceu ele, baixinho, com um pequeno sorriso. — É a primeira porta à esquerda no corredor. Eu vou cozinhar alguma coisa para o exército de pirralhos e, depois que todos estiverem na cama, podemos conversar direito. 

Com um impulso, ele se levantou e seguiu em direção ao canto do cômodo onde haviam balcões, uma pia e um fogão a lenha. A cozinha era pequena e aconchegante, o lugar perfeito para tomar chá depois de um longo dia de trabalho.

— Deixe suas coisas onde quiser — acrescentou ele, sem se virar. — Parece pesado.

Você finalmente deslizou a mochila para fora de seus ombros, surpresa por não ter feito isso até agora, e a deixou em um canto perto da mesa antes de se levantar. Suas pernas, apesar de trêmulas por conta de todo o cansaço e emoção vividos de uma vez, conseguiram carregá-la até o corredor. À direita, havia uma sala com poltronas e uma estante dividida entre livros e brinquedos, e à esquerda, uma porta que levava a um banheiro. Havia ainda mais uma porta à esquerda e outra à frente, fechadas. Você lavou o rosto com cuidado e encarou o espelho por alguns instantes, tentando acreditar que tudo aquilo estava mesmo acontecendo. 

Ezarel estava absorto com alguma tarefa, e você não conseguiu evitar a curiosidade, deixando que seus pés a carregassem para a sala de leitura. Era como entrar em uma fantasia bucólica; havia uma lareira, e mesmo que o fogo não estivesse aceso no momento, você conseguiria facilmente imaginar suas tardes enrolada em um cobertor com um livro ali. Na estante, livros dos mais variados assuntos, desde jardinagem até alguns romances que você reconheceu da biblioteca de Eel. Um sorriso involuntário cruzou seus lábios diante da possibilidade de serem aqueles livros, visualizando Ezarel escondendo-os no casaco e correndo antes que Kero pudesse descobrir. 

O pensamento veio como uma pontada no seu peito. Kero. Valkyon. Ykhar. Miiko. Você havia perdido muitas pessoas. Algumas delas nunca voltariam. Seus dedos acariciaram a lombada de um belíssimo volume, a sensação áspera e o cheiro de grama permanente da casa fazendo um ótimo trabalho para trazê-la de volta ao presente. Um luto de cada vez.

Um brilho capturou seu olhar. No teto, havia todo tipo de penduricalhos de vidro, alguns translúcidos, outros coloridos, um detalhe que você não teria notado sem olhar para cima. Uma grande janela encarava o leste, se seu senso de direção estava certo, o que significava que a vista naquela sala ao nascer do sol devia ser de tirar o fôlego. 

Alguns bancos acolchoados e almofadas estavam espalhados pela sala, mas um par de poltronas chamou sua atenção. Estavam posicionadas bem à frente da lareira, as duas em tons de marrom que combinavam com o restante da decoração da casa. Você acariciou as costas de uma delas, sentindo ao mesmo tempo que não pertencia a este ambiente e que este era um destino que fora tirado de você. De qualquer forma, o misto de sensações opostas encheu seus olhos de lágrimas pela enésima vez naquela noite, e você saiu da sala com um gosto amargo na boca. 

Ezarel estava cuidando de uma enorme panela no fogo. 

— O que vai ter para o jantar? — você espiou o conteúdo, desesperada por uma distração.

— Você vai ficar para o jantar? — ele perguntou ao mesmo tempo que você, e um silêncio levemente constrangedor se seguiu. — Massa caseira e caldo de legumes.

Você sorriu enquanto a cena à sua frente ameaçava tirar o que restava da sua sanidade. Ele pegou uma faca de cozinha e se aproximou do balcão, começando a cortar cenouras. Havia outros legumes que você conseguiu reconhecer: cebolas, salsão, algumas ervas de tempero. 

— Os legumes são do jardim?

— A maioria. As cenouras são compradas, nenhuma cenoura minha é desse tamanho.

Antes que ele pudesse rir da própria piada, um som de chiado levou a atenção de vocês dois para o fogão, onde o líquido da panela derramava lentamente. 

— Merda! — Ezarel largou o que estava fazendo e correu para remediar a situação. 

— Aqui, eu ajudo. — Você tirou o casaco em um movimento fluido e o deixou sobre as costas de uma cadeira, então lavou as mãos mais uma vez e pegou a faca que ele tinha abandonado.

Vocês trabalharam em silêncio, lado a lado, por algum tempo. Era difícil segurar a vontade de roubar olhares dele trabalhando a todo momento. As mangas da camisa dele ainda estavam roladas até os cotovelos, dando uma visão dos músculos delineados de seus antebraços, e a maior parte do comprido cabelo azul estava presa em um coque no alto de sua cabeça. A única coisa que poderia deixá-lo com mais cara de dono de casa seria um avental com os dizeres “beije o cozinheiro”.

Foi demais. A mesma sensação da sala de leitura voltou, agora duas vezes mais forte, e você limpou o rosto nos próprios ombros. Era tão… mundano. Ezarel provavelmente a ouviu resmungando e lançou um olhar questionador, mas você apenas apontou o queixo para as cebolas na tábua de corte.

Logo os legumes foram adicionados a uma panela enquanto a massa cozida era lavada em água fria. 

— Eu estou morrendo para saber como—

Ele não teve tempo de terminar a frase antes que a porta se abrisse com um estrondo.

— Entrega para o senhor Ezarel! — bradou o garoto de cabelos dourados, que liderava a excursão. Ele trazia nos braços um garotinho pequeno, e atrás dele vinham mais dois, os três com os mesmos cabelos esverdeados e sorriso atrevido. Além da aparência, outra semelhança que os três compartilhavam era que estavam cobertos de lama da cabeça aos pés. 

— Beri! — O elfo estava de pé à frente deles em um segundo, a panela de legumes esquecida no fogão por ora. — Como eles ficaram nesse estado?

As outras crianças entraram em seguida, em silêncio, e se apressaram para entrar pelo corredor despercebidas. Você fez uma contagem superficial e constatou, surpresa, que Ezarel não havia exagerado: eram dez, todas das mais diferentes idades e aparências.

— Como eu vou saber? — Beri colocou o pequeno no chão, rindo. — Era pra Alyssa tomar conta deles, mas ela cochilou perto do lago e quando cheguei eles estavam assim, colocando flores no cabelo dela. 

— Alyssa… não, esquece. — Ezarel pinçou a ponte do nariz entre o polegar e o indicador e suspirou, um ar de irritação o circulando. Você ouviu a panela chiar e correu para cuidar dos legumes. — Já pro banho, os três. Não quero ver nem uma sujeirinha na mesa de jantar. 

Os meninos desapareceram no corredor, soltando risadinhas por todo o caminho. Não pareciam estar muito preocupados com a ira do elfo. 

— E o resto de vocês — continuou Ezarel, erguendo a voz para ser ouvido de onde quer que as outras crianças estivessem. — Vão se lavar, também! 

— Estou com taaaanta vontade de tomar um banho — Beri piscou seus grandes olhos para Ezarel, um sorriso conhecedor em seus lábios. — A não ser que você precise de ajuda aqui na cozinha. 

Ezarel olhou de relance na sua direção por uma mera fração de segundo, mas foi o suficiente para que o sorriso de Beri aumentasse. 

— Não, por enquanto está tudo sob controle. Eu chamo se precisar. 

— Certo, certo. — Beri começou a andar até o corredor, seguindo o mesmo caminho que os outros. — Quando a minha namorada secreta aparecer de repente, você vai fazer a mesma coisa — completou, antes de começar a correr e desaparecer pela porta. 

Ezarel tossiu uma risada e balançou a cabeça.

— Eu sou uma piada. 

— Eles são fofos. — Você observava o caldo fervendo com um sorriso terno, sem coragem de olhar o elfo nos olhos. 

— São quase insuportáveis às vezes — ele suspirou, mas também estava sorrindo.  

O restante do preparo foi feito bem rápido. Nenhuma palavra foi trocada, mas o trabalho de vocês era sincronizado; um simples olhar comunicava o que era preciso, assim como antes. Como se vocês dois nunca tivessem se afastado.

Com tudo pronto, você encarou a mesa de dois lugares no centro da cozinha e torceu o nariz. Não era preciso um vasto conhecimento em matemática para notar que o ambiente mal comportava todas as crianças de pé. 

Ezarel segurou a panela de caldo com a ajuda de duas luvas de forno e seguiu pelo corredor. Após um olhar dele, você pegou a bandeja de massa e se apressou atrás. 

Ele se dirigiu até a última porta e a abriu com o cotovelo, um malabarismo fluido de quem já estava acostumado a fazer este mesmo movimento. Um instante depois, dezenas de pequenas luzes davam as boas vindas ao que parecia ser um quintal.

Vocês depositaram a comida sobre uma enorme mesa de piquenique, e ele voltou para a casa, te deixando boquiaberta no belíssimo pátio. Mais árvores rodeavam o espaço, e nos galhos mais altos estavam os cordões de luzes que lhe chamaram a atenção desde o início. Pouco além havia uma segunda casa, e ao lado alguns banheiros separados. 

Era como pisar em um círculo de cogumelos e ser transportada diretamente a um mundo mágico. Bom, de novo. 

Ezarel retornou com uma pilha de pratos e talheres nos braços e os deixou sobre a mesa antes de colocar dois dedos na boca e assoviar. Então, como se ele tivesse acabado de soar um alarme, as crianças saíram da casa mais à frente e vieram correndo.

— O que tem pra jantar? — A pergunta foi feita, em sequência, no mínimo quatro vezes por diferentes pequeninos.

— Caldo de legumes e massa caseira — declarou ele, orgulhoso.

Um murmúrio coletivo de desapontamento ressoou. Aparentemente, ninguém ali gostava do tal caldo de legumes. Você teve que colocar a mão sobre a boca para segurar o riso. Crianças eram crianças em qualquer universo. 

Ez prontamente começou a reclamar, mas pareceu ter uma ideia que o parou. Ele assoviou novamente e o barulho de conversas cessou num instante. Parecia realmente um exército, olhando desse jeito. 

— Cadê a educação de vocês? — ralhou, mas tinha uma expressão divertida no rosto. — Em fila! Vamos cumprimentar a convidada. 

Eles caminharam pelo quintal, organizando-se sem muita animação, enquanto o elfo te olhava orgulhoso como se dissesse “olha só o que eu fiz”. Ele tinha o mesmo sorriso de quando ensinava truques para os mascotes, e pensar nisso trouxe outra onda de riso que você precisou segurar.

Quando todas as dez crianças estavam posicionadas em uma fila, lado a lado, da maior para a menor, ele fez um sinal com a mão.

— Eu sou o Beri — sorriu o mais velho, que você já conhecia. 

— Alyssa — acenou a segunda, tímida.

Um a um, todos disseram seus nomes.

— Aowin.

— Midori.

— Olga.

— Iven!

Alguns estavam animados, e outros reviravam os olhos e suspiravam como se estivessem cheios de fazer isso. Era claramente um grupo bem… diversificado. 

— Yor.

— Venn.

— Konnie.

Estes eram os três de cabelos verdes. Você conseguiu reconhecê-los por este detalhe e este detalhe apenas, já que limpos eles eram meninos completamente diferentes.

A menor da fila demorou um pouco, olhando para os lados, claramente tímida. Era a mesma garotinha de cabelos vermelhos que aparentemente era o motivo de Ezarel ter percebido que você não era nenhum tipo de miragem; a pequenina era a maior responsável por você ainda estar ali. Depois de algum tempo, ela finalmente olhou para você. 

— Haye.

Você sorriu com carinho e se apresentou rápido, nem um pouco interessada em ser o centro das atenções daquela plateia. 

— É um prazer conhecer vocês.

Eles olharam em conjunto para Ezarel, mais uma cena cômica para adicionar ao repertório da noite.

— Até parece que vocês são bonzinhos assim. — Ele ergueu uma sobrancelha, esperando por alguns segundos, mas nenhum deles se moveu. — Certo, vocês estão me assustando. Vão comer, pestinhas. 

E eles foram.

A mesa de jantar foi uma das mais animadas e caóticas em que você já teve a oportunidade de sentar. Todos falavam ao mesmo tempo, alguns mais alto que o necessário, pequenos pedacinhos de cenoura voavam de dez em dez minutos. Todos queriam compartilhar histórias de seus dias, alguns rindo, outros chorando, alguns comendo rápido demais e outros beliscando emburrados. E, ainda assim, a sensação de estar em casa era forte o suficiente para inundar todos os seus sentidos.

Você se lembrou dos Natais na casa de sua avó, em que você se sentava na mesa das crianças por ser a prima mais velha mas não oficialmente adulta ainda — uma piada de péssimo gosto, já que sua prima dois anos mais nova se sentava com os adultos apenas porque já tinha um namorado — e da alegria de estar com sua família. 

Você se lembrou dos almoços antes de uma missão importante, em que todos os membros da Reluzente — e você, por tabela — se reuniam na cantina para aproveitar o que poderia ser a última refeição em conjunto. 

Você se lembrou de olhar para Ezarel sentado ao seu lado e de desejar poder ter as duas coisas ao mesmo tempo.

E, mesmo com todas as memórias evocadas, você não se sentiu triste. Era quase como se aquele pátio cheio de mini pessoas barulhentas reclamando do caldo de legumes feito pelo elfo enquanto ele rebatia as reclamações à mesma altura que as crianças de oito anos fosse… o melhor de dois mundos.

Alguns até fizeram um esforço para conversar com você, e isso somado à visão de Haye no colo de Ezarel sendo ajudada a comer as porções maiores quase foi o motivo do seu colapso. 

— Ótimo, agora que está todo mundo limpinho e de barriga cheia, já pra cama. — Ezarel bateu palmas para chamar a atenção de todos, e outro murmúrio infeliz percorreu o quintal. — Sem reclamar! Vocês têm escola amanhã.

Aowin se levantou em silêncio e começou a recolher os pratos, junto com Midori. 

— Vamos lá. — Beri cutucou afetuosamente os menores, que o seguiram arrastando os pés. 

Alyssa se aproximou de Haye, ainda no colo de Ezarel, e a pequena aceitou ser carregada em seus braços com alegria. 

— A gente coloca eles na cama hoje. — Alyssa sorriu para Ezarel, e os olhos dela se viraram para você.

Ele apenas suspirou, rindo baixinho, e balançou a cabeça. 

— Que legal, quando vocês querem brincar de cupido todo mundo fica morrendo de vontade de ajudar. — Ele se levantou e bagunçou o cabelo das duas garotas. — Boa noite. Se precisarem de alguma coisa, minha porta vai estar aberta, como sempre.

Ela acenou com a cabeça e partiu. 

Você recolheu o que restava na mesa, ansiosa demais para deixar suas mãos paradas, mas ao chegar à cozinha percebeu que a maior parte da louça já tinha sido lavada pelas duas crianças. 

— Pode deixar! — Midori correu para pegar o que você havia recolhido, sem te dar tempo para uma reação. Elu inclinou a cabeça ao ver Ezarel entrando na cozinha. — Estamos quase acabando, Ez. 

— Ok. — Ele havia desistido de lutar. Colocou uma chaleira no fogo e sentou-se à mesa, indicando a outra cadeira com o queixo.

Você tomou o lugar com cuidado. Aowin e Midori quase que instantaneamente terminaram o trabalho e correram para o corredor — não antes que Aowin abraçasse Ezarel com força —, suas risadinhas ecoando até o a porta se fechar. 

— Você cozinha bem — você começou com um assunto neutro, sem saber o que dizer. Ficar sozinha com ele trazia a onda de emoções outra vez, emoções com as quais você não estava pronta para lidar ainda. 

— Eu tive ajuda. Claro, depois que você terminou de bisbilhotar por aí. — Ele ergueu uma sobrancelha.

Você riu, nem um pouco constrangida.

— Você não pode me culpar. Eu queria ver… a sua casa.

A última parte foi mais difícil de dizer que o resto. Um lapso quase a fez trocar “sua casa” por “nossa casa”, e isso teria sido estranho.

— Isso não me surpreende nem um pouco. Sua especialidade sempre foi enfiar o nariz em todos os cantos possíveis.

A água ferveu, e ele se levantou para servir duas xícaras de um chá que cheirava a flores. Vocês continuaram conversando, aos poucos estabelecendo um ritmo confortável, decidindo o que dizer e o que não dizer, trocando piadinhas e casualidades. 

— Como você passou desde… Você sabe. De verdade. Como foi? — Você finalmente teve a coragem de perguntar. Já era sua terceira xícara de chá, sua cadeira estava virada de frente para ele, seus pés sobre ela e seus joelhos puxados em direção ao peito. 

Ele se espreguiçou, consideravelmente mais relaxado que antes, praticamente jogado sobre a própria cadeira. 

— Foi há alguns anos, eu parei de contar. Quando fui embora, entrei em pânico com a ideia de começar do zero de novo, então… eu aproveitei alguns planos antigos. — Ele apoiou o queixo na mão, seu cotovelo sobre a mesa, o olhar distante. — Conhecia esse lugar nas montanhas há muito tempo, e já tinha visitado a vila uma ou duas vezes. Morar aqui sempre foi meu plano B, e sempre tive aquela vontade secreta de deixar tudo para trás. Viver perigosamente, ser importante, fazer grandes coisas, nada disso era como eu gostaria de levar a vida. Mas você sabe dessa parte. — Ele sorriu, mas o sorriso não alcançou seus olhos. — Então eu me concedi o direito de fazer exatamente o que queria. Peguei o que tinha guardado, o salário de anos trabalhando na Reluzente, e consegui pagar algumas pessoas daqui para me ajudarem a tirar o chalé da planta. Todos foram muito gentis e ninguém nunca fez muitas perguntas, o que eu aceitei com prazer.

— É lindo. — Você descansou o queixo sobre seus joelhos. — Dá pra ver de longe que foi você quem decorou. Cada pedacinho é tão… você

Ele riu, um pouco mais animado.

— É, você saberia disso, não é? — brincou, massageando o próprio ombro como quem sente uma ferida antiga. — Eu pendurei as cortinas daquele seu quarto sozinho. E todo o resto, por sinal. Você dava trabalho. 

E você amava, você quis dizer, mas se segurou. Palavras como amar não seriam adequadas no momento. 

— Era meu passatempo favorito. — Uma alternativa satisfatória que não acabou com o clima da conversa. — E seus filhos? — Você se absteve do comentário indelicado de que eram dez filhos. Apesar do que ele havia dito antes, este também foi um jeito mais suave de perguntar se ele havia se envolvido com outra pessoa. 

Ezarel arregalou os olhos por um momento, incrédulo. 

— Você estava falando sério antes, então? — Ele riu, alto dessa vez. — Eu disse. Não são meus filhos. Bom… — Seu sorriso se tornou carinhoso, e a expressão era indecifrável, quase culpada. — Claro, depois de um tempo acabamos virando uma família, de uma forma ou de outra. Um tempo depois que eu cheguei, os pais de Ao sofreram um acidente. Houve uma enorme comoção sobre o assunto, as pessoas tomando turnos para cuidar dela, mas era desconfortável para a menina ficar pulando de casa em casa. Eu estava sozinho, miserável, subindo pelas paredes de tédio e a dois experimentos de criar uma nova espécie de planta carnívora, então depois de muita conversa, ela acabou vindo para cá. Foi amor à primeira vista, e quando chegou o tempo de mudar de casa de novo, eu percebi que gostava de cozinhar para outra pessoa, de levá-la à escola e de cuidar de alguém. Para ser justo, acho que ela cuidou tanto de mim quanto eu dela. Depois disso, uma coisa levou à outra. 

— Ela parece mesmo adorar você. — Você sorriu.

— Eu espero que sim — ele olhava para longe, pensativo. — Beri chegou viajando sozinho não muito depois, e eu não fiz perguntas. Ele é um garoto adorável e deve ter tido um excelente motivo para fugir de casa. Os avós de Alyssa já são idosos e não conseguem cuidar dela com o máximo de atenção, Midori tinha alguns problemas de comportamento e seu pai decidiu que seria uma boa ideia sair sem olhar para trás, Olga precisa de alguns cuidados de saúde que eu consigo prestar melhor se ela estiver sempre perto. Os pais dos trigêmeos são viajantes e eles sempre passam alguns meses do ano comigo. A mãe de Iven está longe, tratando uma doença grave, e ela está comigo desde então. Haye foi a última a chegar, um incêndio destruiu sua casa. Não se preocupe, os pais dela estão ótimos, mas eles estão trabalhando em algumas cidades maiores um pouco longe daqui para conseguir o dinheiro para reconstruir rápido e eu estou cuidando dela enquanto isso. 

Você ouviu tudo com atenção, apaixonada por cada detalhe da história, e ofereceu um sorriso emocionado o tempo todo. Nunca, em todo o seu tempo com Ezarel, você o teria imaginado tomando conta de um orfanato, mas agora aquela realidade parecia ser feita para ele. Ele falava das crianças com tanto carinho que não era possível desvincular seus novos sorrisos dos novos habitantes da sua casa. 

— Você montou o pátio lá atrás pra eles?

Ele deu de ombros.

— A casa foi planejada pra duas pessoas desde o começo. Bom, uma. — Ele olhou para o chão, engolindo em seco. Você não perdeu o tom triste e súbito da voz dele, mas ele se recuperou rápido. — Então eu continuei construindo. Mais quartos, mais banheiros. Aqui acabou virando a entrada de um lugar muito maior. 

Você colocou a mão sobre a mesa, levemente na direção dele. Um convite. Apenas o suficiente para que ele se aproximasse, se quisesse, mas sem compromisso. 

Ezarel descansou a mão ao lado da sua, os dedos a um sussurro de tocarem os seus. Era possível sentir o calor dele através daquele pequeno gesto. 

Vocês passaram algum tempo em silêncio, os olhares fixos naquele quase contato, os pensamentos acelerados. Foi com um esforço visível que ele levantou os olhos, tentando segurar um bocejo, e encarou a janela. 

— Você devia descansar. — Você sorriu, e com movimentos lentos e arrastados conseguiu levantar da mesa. Colocar a mochila nas costas foi uma tortura, e subitamente o caminho até a pousada parecia longo demais, mas em algum lugar bem no fundo você encontrou a coragem para se despedir dele pela noite. 

Ele observou seus movimentos, sua inclinação em direção à porta, e suas sobrancelhas se uniram em confusão. 

— Onde você acha que vai?

Você riu, surpresa, levada ao passado pelo tom de voz dele. Era tão familiar. Ele havia falado assim um milhão de vezes antes.

— Esse é o seu jeito encantador de me pedir para passar a noite aqui? — Você balançou a cabeça. — Eu prometo que volto amanhã bem cedo. 

Ele se levantou rapidamente. 

— De jeito nenhum. — Sem esperar por você, ele seguiu pelo corredor e entrou na segunda porta à esquerda. Você o seguiu com certa relutância. — Eu ainda mal acredito que você está mesmo aqui, então por favor me poupe o trabalho de acordar de manhã com a sensação horrível de que foi outro sonho. 

Você piscou algumas vezes, deixando que a vista do quarto ficasse marcada em sua memória. Cada pedacinho tinha ezarel estampado, nos mínimos detalhes, ainda mais que no restante da cabana. Havia outra lareira, menor que a do outro lado do corredor, e uma cama com dossel. Grande o suficiente para duas pessoas, mas não o suficiente para que tivessem muito espaço entre elas.  Os penduricalhos de vidro também povoavam o teto, assim como na sala de leitura, e estavam além disso em volta da cama e na borda da lareira. Parecia tanto com um refúgio de lua de mel que você quis chorar. Viver aqui teria sido um sonho. 

Um objeto em específico chamou sua atenção, como se seu olhar fosse puxado a ele automaticamente. Você atravessou o quarto a passos largos, desviando de Ezarel, e andou até a cama. Na estrutura do dossel, havia um penduricalho diferente dos outros. Era um colar, com dois anéis dourados servindo de pingentes. As alianças de Yêu e Tinh. 

— Então é aqui que isso veio parar! — Você encarou o elfo, boquiaberta. — Eu procurei por toda parte! Seu bandido, eu devia ter imaginado que estaria com você.

Ele sorriu, percebendo seu tom brincalhão, mas a voz dele assumiu um tom triste. 

— Era uma boa lembrança. Você pode pegar de volta, se quiser. É seu, afinal. 

Você balançou a cabeça. 

— Sempre foi nosso. Eu gosto dele aqui. Ficou bem na decoração. — Seus passos foram curtos saindo do quarto. — Eu realmente devia ir até a pousada. 

Ele segurou seu braço suavemente. Um pedido. 

— Você poderia ficar. 

Seus olhos se encontraram. 

— Não estou vendo nem uma unidade de sofá nesta casa, não tem nenhum quarto de hóspedes, e suspeito que não tenha uma cama sobrando por milagre nos quartos das crianças. 

— Eu não vou atacar você! — Ele riu, o clima da conversa instantaneamente mais leve. 

— Ez. — Você ergueu as sobrancelhas. — Nós não vamos brincar de “só tinha uma cama”. 

Ele cruzou os braços sobre o peito, te soltando.

— Eu posso dormir no chão, como um bom cavalheiro.

Como se ele algum dia tivesse sido um cavalheiro. Você se aproximou dele e, sem pensar, ergueu a mão para segurar seu rosto. Ele inclinou a cabeça, deitando-se no seu toque, e suspirou. Parecia cansado.

— Ez, eu sei exatamente o que vai acontecer aqui. Se eu deitar na sua cama, eventualmente ficarei com pena de você todo enrolado no chão e te obrigarei a subir. Nós vamos dormir por um tempo. Você pode acordar no meio da noite, com certeza de que é algum sonho, e se aproximar. Se você me beijar, me segurar nos seus braços, como faria comigo em seus sonhos, como fazia comigo antes… — Uma pausa, um pequeno silêncio, enquanto ele te ouvia com atenção. 

— Seria tão ruim assim?

— Eu me recuso a me aproveitar de você em um estado tão vulnerável. Então, por favor, me poupe o trabalho de ter que te rejeitar quando tudo o que eu mais quero é você. 

— Você está sendo contraditória. — Ele colocou uma mão sobre a sua e fechou os olhos. Não estava realmente discordando; ele sabia que era a verdade. 

— Se daqui a duas noites você ainda quiser que eu fique aqui, vou pensar no seu caso.

— Isso quer dizer que você planeja ficar por perto mais de duas noites? — A voz dele era tentativa, esperançosa.

— Enquanto eu for bem-vinda, não pretendo ir a lugar algum. Proponho um meio-termo. — Você deu um passo para trás. — Vou dormir em uma das poltronas na sala de leitura.

Ele fez uma careta. 

— Elas não são muito macias.

— Eu passei os últimos três dias dormindo no chão — você rebateu, em um tom de brincadeira, mesmo sendo verdade. — Qualquer coisa acolchoada parece com uma cama de nuvens depois do saco de dormir que comprei com o Purral.

— Você devia dormir em um colchão de verdade.

Sua risada foi rapidamente seguida pela dele, mostrando que ele tinha lembrado da mesma coisa.

— Quem diria que você estaria tão interessado em me dar um colchão para dormir! Logo o senhor, que me chamou de fresca quando eu ousei pedir uma cama de verdade no QG!

— Você já me puniu o suficiente por isso, não acha? — Ele rolou os olhos. — Na falta de um colchão, eu mobiliei e decorei seu quarto sozinho.

— Sim, você disse isso mais cedo. — Você sorriu. — Boa noite, Ezarel.

Sua última visão antes de sair do quarto a foi dele soltando os cabelos e correndo os dedos por eles, enquanto balançava a cabeça alegremente. Finalmente ele se deu por vencido. 

— Boa noite.


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Notas finais do capítulo

Eu e minha casa servimos Ezarel!



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