Filha de Gelo e Fogo escrita por Dafne Guedes


Capítulo 8
Segredo de Fogo


Notas iniciais do capítulo

A música deste capítulo é "Things We Lost In The Fire", da banda Bastille.
Lembrando que, se você é um leitor fantasma, seu comentário pode fazer o dia de uma escritora mais feliz!
Boa leitura!



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"Things we lost to the flames
Things we'll never see again
All that we've amassed
Sits before us, shattered into ash"

 

No primeiro dia, disse contou sobre como havia adquirido os ovos. Jocelyn, que parecera à princípio uma moça capaz de falar o que lhe vinha à mente, e isso Cordyra apreciava, lavou os seus cabelos e a sujeira de seu corpo em silêncio, numa tensão palpável. Cordyra precisava mesmo do silêncio para pensar, então se deixou ser afundada na água quente natural do castelo de Winterfell, e deixou que as mãos calejadas de Jocelyn limpassem seus ombros, esfregassem seus braços.

                A tensão da moça era justificável, é claro. Os quatro dragões haviam sido levados para o quarto com ela –Cordyra se recusara a soltá-los. Eles não pareciam particularmente perigosos; tinham o tamanho e o peso dos gatos do castelo, não pareciam capazes de soltar fogo. Porém, possuíam finas presas afiadas, que enfiaram na carne da própria Cordyra, embora fizessem isso gentilmente. Ela compreendeu o recado, e mandou que alguém fosse buscar alguma carne para eles.

                Além dos dragões –dos quais ela não conseguia tirar os olhos –Robb insistira que Norte ficasse ao seu lado. Não confiava nos dragões, isso ficava bastante claro em sua expressão corporal ao redor deles, mas confiava na loba, que era maior do que os dragões, e tinha dentes e garras também maiores.

                Além de Rodrick Cassel e Robb, Jocelyn era a única a ter visto os dragões. Portanto, ficou no quarto quando os outros dois chegaram com o meistre Luwin, e Theon Greyjoy. Cordyra não esperava a chegada desse último, mas ele vinha de fato sendo útil a Robb nos últimos dias, ajudando-o a dar nova forma à Winterfell que Eddard e o rei haviam deixado para trás. Então Cordyra suspirou e contou:

                Contou que os ovos haviam sido dados a ela pelo tio, mas que ele acreditava se tratarem apenas de pedra, congeladas há muito tempo nas masmorras de Winterfell, quando deixadas pelo dragão Vermax, filho de Baelerion, o Terror Negro. Contou que guardara os ovos na biblioteca, pois eles eram valiosos, e o Inverno estava chegando. Disse que, desde do primeiro momento que os tocara, pudera sentir uma chama ardendo em seu interior. Quando viu o incêndio na biblioteca, não pensou em mais nada, foi atrás deles, e eles racharam.

                O que Cordyra não contou foi sobre as horas que passara na biblioteca, sozinha com os ovos, em cada oportunidade, quando Rickon dormia, quando Sansa e Arya, antes de irem embora, não estavam brigando. Contara aos ovos como queria ir ao sul, e quanto que desejava a vida que teria ao lado de Robb em Winterfell. Como esses desejos brigavam um com o outro à noite, quando ela imaginava seu futuro na cama, e como o dever sempre ganhava, e ela dormia com a imagem de crianças de cabelos ruivos e olhos violeta gravada em sua retina.

                Também não contou sobre como, quando chegou à torre da biblioteca em chamas, seu vestido queimou, mas sua pele não. Ela podia sentir o calor, claro, e as labaredas de chamas lambendo sua pele, mas não havia dor, como também não havia queimadura. Primeiro, sentira-se exultante, mágica, a visão das chamas como uma pintura à óleo em laranja e vermelho. Depois, encontrou uma menina aos gritos, e as outras três já estavam além disso. Não fez nada, nem tentou. Havia muita fumaça para que conseguisse achar uma saída, e os livros alimentavam o fogo, e os gritos morreram na garganta de Nabo, enquanto Cordyra tentava aparar seu corpo magro e carbonizado. Quando caiu no chão, em chamas, cheirando a brasas, o primeiro ovo rachou.

                Em contraste à alegria sem limites que acabara de sentir, a morte de Nabo a deu uma forte sensação de derrota. O destino tirara sua família dela, e a devolvera em dragões, mas a que preço? Gostaria de fingir que a presença das meninas havia sido um acaso, uma coincidência, mas o som do corpo de cada uma delas caindo ao chão havia coincidido com o som do rachar de cada ovo. Não era estúpida. Mas jamais diria isso a alguém, ou a chamariam de bruxa, achariam que planejara aquilo de propósito. O que eram as vidas de quatro garotas em troca de quatro dragões? Eram do tamanho de gatos agora, mas em um ano teriam o tamanho de seus lobos gigantes, e em três anos, o tamanho de cavalos. Qualquer rei pagaria aquele preço facilmente, mas ela era apenas uma garota, tanto quanto as outras.

                Ela só olhara propriamente para os dragões ao chegar em seu quarto. Robb a carregara. Seu vestido estava estraçalhado pelo fogo, e usava apenas as roupas de baixo quando ele pôs um manto sobre ela e, temendo que estivesse ferida, a carregou por todo o caminho até os seus aposentos. Não haviam muitas pessoas no castelo para olhar, mas Robb cobrira também os dragões, de forma que, quem visse, veria apenas o senhor Stark, carregando sua noiva queimada no incêndio, e a criada desta seguindo-os de perto lealmente.

                Quando explicou tudo, sor Rodrick parecia desconfortável. Jocelyn parecia querer estar em outro lugar. Robb tinha uma expressão estranha, dura. Postou-se ao seu lado enquanto ela contava a história, e agora encava os outros como se os desafiasse a questioná-la. Meistre Luwin havia juntado as mãos, com os cotovelos apoiados no joelho. Todos os quatro estavam em cadeiras, ao redor de sua cama. Meistre Luwin a examinara inteira para ter certeza de que não haviam queimaduras, e parecia incrédulo. Não tocara nos dragões, porque eles haviam se esquivado de suas mãos enrugadas quando tentou, mas os observara de perto.

—Isso levanta uma questão desconfortável. –Meistre Luwin começou, parecendo envergonhado de si mesmo. –Perdoe-me, senhora Cordyra, mas dragões não nascem a crianças Stark.

                Por um segundo, o ar da sala ficou tão denso que ela pensou que esmagaria o seu peito. Bran teria uma resposta para aquilo; adorava as aulas de história que Meistre Luwin os ministrava desde sempre. Diria que havia um herói que fora tão corajoso que fizera nascer um dragão de uma pedra. Mas Bran estava desacordado na enfermaria, e ela já sentia muito sua falta para ficar desejando sua presença.

—Os Velaryon costumavam ser capazes de domar dragões. –Robb apontou, inalterado. Desde a viagem do pai, havia adotado uma pose de senhor; uma voz convincente, um rosto austero. –Também têm sangue de Valíria. Na Dança dos Dragões, a princesa Rhaenys e os príncipes Jacelyn e Lucerys Velaryon montaram dragões.

—Jacerys e Lucerys eram Targaryen por parte de mãe, e Rhaenys por nascimento. –Meistre Luwin não parecia feliz em apontar essas informações. Seu rosto estava mais velho do que fora no dia anterior. Ele olhou diretamente para Cordyra. –Acha que seu tio sabe algo sobre isso? Talvez já tenha feito algum comentário sugestivo. Afinal, foi ele quem deu os ovos. Poderíamos escrevê-lo uma carta, mas teríamos que cuidar para que não fosse interceptada.

—Seria melhor mandar alguém. –Robb decidiu. –Mas minha mãe deve acordar antes. –Cordyra abriu a boca, para perguntar se finalmente a senhora Catelyn dormira, mas não houve tempo. –Precisamos saber o que eles comem, esses dragões. E como vamos escondê-los.

—Escondê-los? –Sor Rodrick falou pela primeira vez. –Se os outros lordes souberem que os Stark têm dragões, nunca mais precisamos cobrar os impostos de ninguém. Chegarão sozinhos, junto com frutas, trigo e madeira!

                Robb franziu as sobrancelhas, e olhou para o bicho nos braços da noiva. Não havia dito a ninguém que aqueles dragões tinham nomes desde que eram ovos; segurava nos braços o mais bonito deles: era cor de rosa-chá e cobre, com escamas foscas e olhos dourados. Aquela se chamava Aurae. A sensação das escamas contra a sua pele era surpreendentemente macia, e quente, mais quente do Rickon havia sido.

—São do tamanho de gatos. –Ele passou uma mão pelo rosto. Havia um limite de tempo para ser lorde Robb, especialmente cercado de conhecidos, e pessoas que estiveram presentes em sua infância.

—Além disso, são os dragões de Cordyra, não dos Stark. –Theon mantiveram durante toda a reunião, aquele sorriso jocoso que lhe era característico, e Cordyra sentia ganas de arrancá-lo de seu rosto a tapas. –Agora que não sabemos se ela é Stark.

—Claro que é Stark. –Robb rosnou. Foi um som mais assustador do que se tivesse trovejado, e o deixou muito parecido com lobo que nomeara como Vento Cinzento. Seus olhos eram tempestuosos. –É filha de Brandon Stark, ou acha que o senhor meu pai trouxe uma Targaryen para casa porque é um traidor, não porque fosse família? –Todos ficaram em silêncio, contemplando como Robb colocara em voz alta as duas questões que permeavam o nascimento dos dragões, quando ninguém além dele tivera coragem. Mas o jovem senhor queria uma resposta. –Theon?

—Claro que lorde Eddard não é um traidor. –Theon ainda sorria, mas agora era um sorriso tenso. Cordyra devia ficar feliz, vivera para ver o dia em que Theon seria posto em seu lugar, mas estava apenas cansada. Jocelyn havia perfumado seus cabelos com óleo de lavanda, mas ela pensava que ainda conseguia sentir o cheiro dos corpos queimados.

                Sor Rodrick parecia satisfeito; não nutria nenhum amor em particular por Theon, e era muito sério para apreciar seus gracejos, especialmente quando vinham em momentos inoportunos.

—Preciso verificar a biblioteca, se restou alguma coisa nos livros que seja sobre esse assunto. –Meistre Luwin declamou. –Se não cuidarmos bem desses bichos, levarão o castelo às cinzas. Se ainda houvesse um especialista em dragões no mundo...

—Tyrion Lannister tem muitos livros sobre dragões. –Lembrou-se Cordyra, falando pela primeira vez. Sua garganta doía por causa da fumaça inalada, e por ter chorado pelas meninas mortas. Havia se obrigado a contar a história dos ovos, mas sua energia parecia ter acabado ali, até esse momento. –Talvez possamos pedir alguns a ele.

—Me parece que ele ficaria desconfiado. Não podemos atrair desconfiança. Vai demorar pouco até que as pessoas comecem a falar. –Meistre Luwin já estava se levantando.

—Não vai desconfiar de mim. –Cordyra insistiu. –Falamos sobre esse assunto, eu disse a ele que tinha interesse, que tinha sonhado...

—Sonhou com dragões? –Meistre Luwin a interrompeu. –Com o que mais sonhou? Contou a alguém sobre isso?

                Ela hesitou. Os olhos de Robb sobre ela eram cheios de expectativa. Ela jamais dissera nada a ele, mas apenas porque os sonhos não pareciam ter muita importância.

  -Sonhei com a morte do Príncipe Rhaegar. –Admitiu. –Quando o martelo do rei Robert bateu em sua armadura, choveram rubis nos rios. Sonhei com o Sul, e com uma terra desolada de vulcões e fogo.

—Sonhou com Valíria. –Meistre Luwin diagnosticou, pasmo. –Quem sabia?

—Meu tio sabia.

                O herdeiro de Winterfell se agitou em sua cadeira ao lado da cama.

—Então meu pai devia saber, não é? –Robb olhava para o meistre, como se pedisse que aplacasse suas próprias dúvidas.

—Devia ao menos desconfiar. –Meistre Luwin concordou. –Lembro-me de quando a senhora Alyssa esteve aqui, com o bracelete de Brandon, para deixar você. Os olhos dela eram cor de lilás, não violeta. Mas não devemos tomar respostas definitivas. Devo pesquisar. Escrever. Procurar os livros certos. Com licença.

                Ele estava perto da porta, e também, aos múrmuros, saiam Theon e Rodrick, quando se virou e deu uma olhada para Robb e Cordyra.

—Compreendo que devem ter muito a discutir esta noite. –O olhar era severo. –Mas não fique muito tempo aqui, Robb, ou vão surgir rumores, e você não quer sujar o nome da senhora Cordyra.

                Um pouco vermelho, Robb assentiu, e, ainda mais vermelha, Cordyra evitou o olhar dele, focando-se em Jocelyn. Ela parecia não saber bem se ia ou se ficava. Cordyra resolveu o problema dela:

—Jocelyn, pode ir. Mas volte quando Robb sair. Temos de falar. –Era difícil dizer se a menina, apenas um pouco mais velha que ela, ficara aliviada ou não com aquela determinação.

                De qualquer forma, ela se foi, então estavam apenas ela, Robb, Norte, e os dragões.

                O rosto de Robb se desmontou. Não parecia mais em nada com o lorde de Winterfell que virara em público; o rapaz capaz de repreender Theon, e de dar ordens a cavaleiros, escudeiros e guardas. Parecia-se com o seu primo, jovem exposto como uma ferida aberta. A mãe estava quase que ausente em seu luto, o pai fora-se, e agora parecia que escondera segredos. A própria noiva não era quem ele pensava ser.

                Só que Cordyra se sentia a mesma de antes.

                Devia ter se sentido mais forte, ou mais corajosa com os dragões. Mas eles eram pequenos, e quentinhos, e ela percebeu que teria de cuidar deles ainda por alguns anos antes de confiar neles para que cuidassem dela. Seriam como Rickon; frágeis. Além disso, pareciam não apreciar o frio de Winterfell. Baelon, que nascera do ovo inteiramente negro, e tinha escamas e olhos pretos, não saíra nem por um segundo de perto da lareira. Apenas Espectron, tão branco quanto Baelon era negro, parecia gostar do frio, arrumando um lugar perto do vidro gelado da janela.

—Você sabia? –Robb perguntou num tom de voz vulnerável, quando eles estavam sozinhos há alguns minutos.

                Cordyra se moveu para perto dele. Para sua surpresa, Robb se moveu para longe, os olhos nos dragões ao invés dela.

—Ah, Robb. –Cordyra não deixou que ele se afastasse. Largou Aurae na cama, e jogou-se na direção dele. Ele a apoiou em seus braços. O braço de madeira da cadeira machucou suas costas, mas ela ignorou. –Eu não soube, não até que rachassem.

                As mãos dele se apertaram ao redor de sua cintura, os dedos se enfiando em sua pele macia. Ele pegou sua mão pequena e a beijou nos pulsos, onde as veias eram tão roxas quanto os seus olhos. Ela aspirou a pele do pescoço dele; tinha cheiro de frio, e couro e lã. Ele se arrepiou com o contato de seu nariz gelado.

                A voz dele cortou o torpor no qual ela foi entrando, ao se perder no cheiro dele.

—Mas não me contou dos sonhos.

                Cordyra foi obrigada a afastar o rosto para encará-lo.

—Não contei. –Não tinha nenhuma desculpa para isso. Sabia serem verdadeiros, mas não pareciam ser importantes. Ela não tinha com explicar. Eram também aterrorizantes. O sangue de Rhaegar jorrando junto com os rubis, se confundindo juntos. –Contarei a partir de agora. Todos os sonhos.

                Ele concordou, e em alguns minutos foi-se embora, dizendo a ela que descansasse. Meistre Luwin tinha razão, se ele passasse muito tempo em seu quarto, mancharia sua reputação, não importava que fosse seu noivo. Uma moça devia deitar-se com seu marido, e com ninguém além dele.

                Assim que ele saiu, Jocelyn entrou, como se estivesse esperando na porta. Ela hesitou um pouco, mas Norte, sentindo seu desconforto, ficou deitada, parecendo inofensiva, do outro lado do quarto, os olhos amarelos brilhando e as orelhas levantadas. Mas não olhava para as meninas, mirava os dragões com falso desdém.

                Jocelyn estava eficiente.

—Minha senhora Cordyra precisa deitar-se. –A voz era decidida, e as mãos igualmente. Cordyra havia colocado um roupão para receber seus visitantes, mas Jocelyn rapidamente o arrancou, deixando apenas com a camisola branca de dormir. Os cabelos já estavam soltos, então Jocelyn foi enfiando-a debaixo da cama, e quase tropeçou no menor dos dragões, que Cordyra chamara de Meleyna.

                A criada deu um salto para trás, e colocou as mãos sobre o coração. Estava pálida.

—Não vai fazer mal a você. –Garantiu Cordyra, levantando-se da cama onde fora enfiada quase que à força. Talvez não devesse ter dito aquilo, sendo que tinha o dragão há apenas uma noite, mas sentia que era verdadeiro. –Jocelyn, se quiser pedir para ser retirada do meu serviço, eu compreenderei. Apenas peço que, por enquanto, não conte a ninguém sobre os dragões. –Jocelyn não respondeu, estava olhando para ela, esperando que terminasse. Cordyra teve esperanças. Podia usar alguém como Jocelyn, que parecia eficiente e verdadeira, em seu serviço. –Porém se ficar, prometo que os próximos dias não serão assim tão agitados. A maior parte do meu dia é tediosa. Você pegou um dia extraordinário nesses termos. Geralmente, passo muito tempo pintando, muito tempo com Rickon, e com Norte.

                A criada ouviu tudo em um silêncio pensativo. Olhou de um dragão para o outro, e por último para o lobo no canto.

—Ficarei em seu serviço, senhora. –Decidiu. –Desde que não continue se jogando em incêndios conforme eles forem aparecendo. Isso não.

                Com essas palavras, a empurrou de volta à cama, e apagou as velas com um sopro.

                No segundo dia, meistre Luwin e Robb voltaram ao seu quarto para contar sobre o que sabiam do incêndio; havia sido causado por um assassino de aluguel, que viera tomar a vida de Bran a facadas. O seu lobo, ainda sem nome, o havia salvado, mas a senhora Catelyn fora gravemente ferida na mão no processo, e estava histérica quando meistre Luwin a dera uma poção para induzir o sono. Ela ainda estava dormindo, e esperavam que ela acordasse para dar a ela as novas informações; a faca do assassino era de aço valiriano, uma coisa bem-feita e elegante. Além disso, algumas moedas foram achadas em uma bolsa que ele carregava.

                No terceiro dia, meistre Luwin trouxe os livros que conseguira separar sobre o assunto, além de papel e tinta para que escrevesse a Tyrion Lannister de seu próprio punho. Foi o que Cordyra fez. Jocelyn não sabia ler, então não pôde ajudar com os livros, mas Robb e Beth Cassel, a quem o pai contou sobre os dragões, foram ao quarto e passaram a tarde com ela e meistre Luwin, tentando aprender o máximo possível sobre os bichos.

                Os livros explicavam que os Targaryen mantinham seus dragões bem alimentados com carne bem-passada, que era a que eles preferiam; o que explicava porque seus dragões haviam negado com indignação os pedaços de carne de veado crua que eles haviam oferecido. Também dizia que eles precisavam de ar livre para crescer; dragões confinados ficavam pequenos como gatos, e deformados e incapazes de produzir chama. Com toda a preocupação, nem ocorrera a Cordyra que aqueles dragões podiam ser como os últimos dragões Targaryen; não mais assustadores que cães de caça.

                Obedeciam melhor a comandos em Alto Valiriano, o que não era um problema, pois as crianças Stark eram versadas em línguas estrangeiras diversas. Tinha forte relações com seus montadores, distinguiam amigos de inimigos e criavam laços amorosos.

                As fortes relações Cordyra podia sentir que já estavam sendo construídas. Seus dragões procuravam por ela quando alguém novo, como Beth, chegava ao quarto, e já estavam acostumados até mesmo com a loba Norte, se aconchegando no pelo quente dela para dormir. A relação deles uns com os outros, então, era a mais forte possível.

                No quarto dia, Robb entrou de supetão em seu quarto, enquanto ela organizava algumas cartas trazidas pelos corvos dos vassalos da Casa Stark. Os Cerwyn gostariam de mandar um sobrinho para ser escudeiro no Sul, e poderiam usar as conexões de seu tio; os Umber estavam com problemas de saqueadores selvagens, e os Karstark temiam que o inverno trouxesse o Povo Livre pela muralha para dentro de suas casas.

—A senhora minha mãe está de pé, devemos ir vê-la imediatamente. –Disse, ao que Cordyra respondeu levantando-se da mesinha onde tinha se apoiado, e batendo o vestido azul sóbrio com as mãos para que desamassasse. A tia Catelyn sempre havia gostado de ver as meninas bem apresentadas. Os dragões levantaram a cabeça com a agitação, mas não se importavam com a presença de Robb e já aceitavam até mesmo a companhia de Vento Cinzento. Ela pôs-se atrás dele no corredor, Norte a seguindo de perto, e trocando um toque de focinho com o lobo de Robb. Lamentou por um segundo que Jocelyn estivesse acabado de sair para buscar um lanche e encontraria o quarto vazio quando voltasse. Mas logo a notícia chegaria a ela também, e entenderia porque Cordyra saíra às pressas.

                Cordyra seguiu o noivo, vestido em couro fervido e cota de malha –a nova espada feita por Mikken pendurada em sua cintura. Um dia ele carregaria Gelo, a ancestral espada Stark, mas, enquanto isso, aquela deveria servir.

                O quarto de sua tia era como ela se lembrara dele –o maior dos quartos em Winterfell, com uma grande lareira e uma cama igualmente grande. Nela, estava a senhora Catelyn–os cabelos ruivos embaraçados soltos dos dois lados da cabeça. Hallis Mollen, o novo chefe da guarda, que esperava na porta, entrou com eles, e também Theon e Rodrick Cassel.

                Passaram imediatamente a atualizá-la sobre o homem que tentara matar seu filho.

— Quem era ele? - Perguntou-lhes Catelyn. À Cordyra, ela parecia muito melhor do que esteve pelas últimas semanas. O sono devolvera foco aos seus olhos. 

— Ninguém sabe seu nome –Informou Hallis Mollen, um homem forte de barba castanha quadrada que Robb escolhera para ser o novo chefe da guarda de Winterfell. – Não era homem de Winterfell, senhora, mas há quem diga que foi visto aqui e nas imediações do castelo ao longo destas últimas semanas.

— Então é um dos homens do rei - disse ela -, ou dos Lannister. Pode ter ficado para trás, à espreita, quando os outros partiram.

— Pode ser - disse Hal. - Com todos aqueles estranhos a encher Winterfell nos últimos tempos, não há maneira de dizer a quem pertencia.

— Ele esteve escondido nas cavalariças. –Disse Greyjoy. - Podia-se sentir o cheiro nele.

— E como pôde passar despercebido? - Disse ela em tom penetrante.

Hallis Mollen pareceu atrapalhado.

— Com os cavalos que o Senhor Eddard levou para o Sul e os que enviamos para o Norte para a Patrulha da Noite, as cavalariças ficaram meio vazias. Não seria grande truque se esconder dos moços da cavalariça. Pode ser que Hodor o tenha visto, dizem que o rapaz anda esquisito, mas simplório como é... - Hal abanou a cabeça.

— Encontramos o lugar onde ele dormia - interveio Robb. - Tinha noventa veados de prata num saco de couro escondido debaixo da palha.

— É bom saber que a vida do meu filho não foi vendida barato - disse Catelyn amargamente. Hallis Mollen a olhou, confuso.

— As minhas desculpas, senhora, mas está dizendo que ele foi mandado para matar o seu rapaz?

Greyjoy mostrou dúvida.

— Isso é uma loucura.

— Ele veio por Bran - disse Catelyn. - Ficou o tempo todo resmungando que eu não devia estar ali. Provocou o incêndio da biblioteca pensando que eu correria para tentar apagá-lo, levando os guardas comigo. Se não estivesse meio louca de desgosto, teria funcionado.

— Por que haveria alguém de querer matar Bran? - Robb perguntou. - Deuses, não passa de um rapazinho, indefeso, dormindo...

Catelyn lançou ao seu primogênito um olhar de desafio.

— Se quiser governar o Norte, Robb, precisa analisar estas coisas até o fim. Responda à sua pergunta. Por que haveria alguém de querer matar uma criança adormecida?

                Cordyra estava prestes a abrir a boca; não compreendia. Os visitantes que haviam recebido eram amigos do rei. Olhou para Robb. Seus olhos estavam duros; estavam sempre assim, desde que o irmão caíra da torre. Era como se ele houvesse pensando na questão antes de Catelyn perguntar.

                Porém, antes que pudesse responder, foram interrompidos pela chegada de duas criadas, trazendo uma bandeja de pão, queijo, mel, geleia e ovos. Com elas, chegou também o meistre Luwin, e todos esperaram pacientemente enquanto a sua senhora mastigava algo –tendo dormido por quatro dias, seu estômago provavelmente precisava de forragem para continuar a enfrentar as conversas por vir.

—Como está o meu filho, meistre? –Ela perguntou.

—Sem alterações, minha senhora.

                A tia não pareceu decepcionada, apenas assentiu com resignação. Cordyra sentiu culpa; não tomara tempo para visitar e fazer vigília pelo primo naqueles dias em que a tia dormia, embora soubesse que essa tarefa era provavelmente sua. Estivera ocupada com sua loba, seus dragões, e com Rickon, que tinha ainda mais medo dos dragões do que tivera do Felpudo à princípio.

                Sua tia engoliu mais uma fatia de pão, os olhos fixados e Robb.

—Já tem a resposta?

— Alguém tem medo de que Bran acorde - disse Robb -, medo do que ele possa dizer ou fazer, medo de qualquer coisa que ele sabe.

                Cordyra sentiu um frio que nada tinha a ver com o clima. Haviam recebido convidados em casa, os hospedado, haviam comido de sua comida, e então mandado alguém para que matasse seu primo –um mero garoto de sete anos. Robb via isso, mas ela não vira, não teria visto. Não fazia parte da vida no Norte, aquelas tramas e traições. Ela fora afastada daquilo muito jovem e não conseguia compreender a mecânica do processo. Mas Robb via, e Catelyn também.

—Muito bem - virou-se para o novo capitão da guarda. - Temos de manter Bran a salvo. Se existiu um assassino, poderá haver outros.

— Quantos guardas serão necessários, senhora? - Perguntou Hal.

— Enquanto o Senhor Eddard estiver fora, é o meu filho quem governa Winterfell. –Ela respondeu.

Robb pareceu crescer um pouco. Havia feito tudo que um lorde fazia desde que o irmão caíra da torre e o pai fora embora, mas ninguém parecia ter reconhecido isso até aquele momento.

— Ponha um homem no quarto, de noite e de dia, um junto à porta, dois ao fundo das escadas. Ninguém pode ver Bran sem minha autorização, ou a da minha mãe.

— Certamente, senhor.

— Trate disto já - sugeriu Catelyn.

— E deixe que o lobo dele fique no quarto - acrescentou Robb.

— Sim - disse Catelyn. E depois de novo: - Sim.

Hallis Mollen fez uma reverência e deixou o quarto. Eles passaram um segundo em silêncio.

— Senhora Stark - disse Sor Rodrik depois de o guarda sair -, teria a senhora, por acaso, reparado no punhal que o assassino usou?

— As circunstâncias não me permitiram examiná-lo de perto, mas posso certificar que era afiado - respondeu Catelyn com um sorriso seco. - Por que pergunta?

— Encontramos a faca ainda na mão do vilão. Pareceu-me uma arma boa demais para um homem daqueles, e olhei-a longa e atentamente. A lâmina é de aço valiriano e o punho, de osso de dragão. Uma arma assim não tem nada a ver com um homem como ele. Alguém lhe deu.

Catelyn fez um aceno, pensativa.

— Robb, feche a porta. O que vou dizer não deve sair deste quarto - ela avisou. - Quero que jurem. Se até mesmo parte daquilo de que suspeito for verdade, Ned e as minhas meninas viajaram para um perigo mortal, e uma palavra aos ouvidos errados poderá custar-lhes a vida.

— Lorde Eddard é como um segundo pai para mim - disse Theon Greyjoy. - Presto esse juramento.

— A senhora tem o meu juramento - disse Meistre Luwin.

— E o meu também, minha senhora - ecoou Sor Rodrik.

—Sua família é minha família. –Cordyra murmurou. –O sangue derramado deles é o meu. Juro.

                Ela olhou para Robb, que consentiu silencioso.

—Minha irmã Lysa acredita que os Lannister assassinaram o marido, Lorde Arryn, a Mão do Rei - informou Catelyn. O quarto estava num silêncio mortal. - Não me parece que Bran tenha caído daquela torre - disse ela para o silêncio. - Penso que foi atirado.

O choque era claro no rosto dos quatro homens.

— Minha senhora, essa sugestão é monstruosa - disse Rodrik Cassei. –Mesmo um Lannister hesitaria em assassinar uma criança inocente.

— Ah, hesitaria? - Perguntou Theon Greyjoy. - Tenho dúvidas.

— Não há limites para o orgulho ou a ambição dos Lannister. - Disse Catelyn.

— O rapaz sempre teve antes a mão segura - Meistre Luwin disse, pensativo. - Conhece todas as pedras de Winterfell.

— Deuses - praguejou Robb, com o jovem rosto escuro de fúria. - Se isto for verdade, eles pagarão. –Puxou a espada e a brandiu no ar. - Eu próprio o matarei!

Sor Rodrik irritou-se com ele.

— Guarde isso! Os Lannister estão a cem léguas daqui. Nunca puxe a espada, a menos que tencione usá-la. Quantas vezes tenho de lhe dizer isto, meu tolo rapazinho?

                Envergonhado, Robb embainhou a espada, subitamente transformado de novo numa criança. Ele olhou de lado para Cordyra, mas ela estava presa numa memória; tinha conversado com Jaime na manhã da partida. Todos estavam caçando, mas Jaime Lannister ficara no castelo. Pouco tempo depois, encontrou Bran, caído no chão.

—Jaime Lannister estava aqui. –Disse, um nó em seu estômago. –Jaime estava no castelo quando todos saíram para caçar.

                Todos os outros fizeram silêncio, a vergonha de Robb esquecida.

—Talvez seja cedo para apontar nomes. –Meistre Luwin disse, e olhava para ela. -Como sabe que ele estava aqui? Um guarda real sempre deve acompanhar o seu rei.

—Encontrei com ele. –A lembrança era vívida em sua mente; um corredor escuro e os cabelos luminosos. Havia pensado que ele era bonito, mas agora a lembrança era distorcida; parecia faminto e perigoso. –Perguntou-me se estava feliz que todos iam partir.

—Antes tivessem saído mais cedo. –A voz de sua tia era cavernosa. –Alguém tem de ir a Porto Real.

                Meistre Luwin olhou para Cordélia pelo canto do olho.

—Eu vou. –Disse Robb.

                Não, pensou Cordyra, o coração apertado. Robb era impetuoso como a cor de seus cabelos; e não conhecia ninguém em Porto Real, não tinha conexões. E o mais importante: a deixaria para trás, como os outros.

—Não - Catelyn disse imediatamente, fazendo coro aos seus pensamentos. - Seu lugar é aqui. Deve haver sempre um Stark em Winterfell. Devo ir eu mesma.

— Minha senhora - disse Meistre Luwin -, será avisado? Decerto que os Lannister encararão a vossa chegada com suspeita.

— E Bran? - Perguntou Robb. O pobre rapaz parecia agora completamente confundido. - Não pode ter a intenção de abandoná-lo.

— Fiz por Bran tudo o que podia fazer - ela disse, pousando sua mão ferida sobre o braço do filho. - Sua vida está nas mãos dos deuses e de Meistre Luwin. Tal como você mesmo me lembrou, Robb, tenho agora outros filhos em que pensar.

— Minha senhora vai precisar de uma forte escolta - lembrou Theon.

— Enviarei Hal com um pelotão de guardas - disse Robb.

— Não - Catelyn respondeu. - Um grupo grande atrai atenções indesejadas. Não quero que os Lannister saibam que estou a caminho.

Sor Rodrik protestou.

— Minha senhora, deixe-me pelo menos acompanhá-la. A estrada do rei pode ser perigosa para uma mulher só.

— Não irei pela estrada do rei - ela retrucou. Pensou por um momento e consentiu com a cabeça. - Dois cavaleiros podem deslocar-se tão depressa como um, e bastante mais depressa do que uma longa coluna sobrecarregada com carroças e casas rolantes. Aceito sua companhia, Sor Rodrik. Seguiremos o Faca Branca até o mar e alugaremos um navio em Porto Branco. Com cavalos fortes e ventos vivos, deveremos chegar a Porto Real bem antes de Ned e dos Lannister.

                Ninguém parecia inteiramente satisfeito com o arranjo, mas havia muita lógica nas palavras de sua tia, então tampouco ninguém a questionou. Foi meistre Luwin quem pigarreou levemente para chamar atenção. Olhou para Cordyra, que sentiu o coração disparar.

—Há outra questão, senhora. –Disse. –Tão complexa quanto há primeira. Um evento extraordinário tomou lugar em Winterfell enquanto a senhora dormia.

                Catelyn não parecia muito curiosa quando postou seus olhos azuis no meistre.

—É mesmo?

                Cordyra preparou o coração, e aceitou as perguntas que estavam por vir. Sua tia, porém, ouviu tudo sem interromper, o rosto quase impassível. Ela ainda era a senhora de Winterfell, e, após quase perder um filho duas vezes numa quinzena, parecia não estar prestes a cair em desespero por motivo algum no mundo.

—Ninguém pode saber. –Foi a primeira coisa que disse depois de Robb contar a história. Ele havia contado tudo de forma sucinta, deixando de lado o susto, o horror, a fascinação, o extraordinário. Ele não tinha como descrever o cheiro de queimado na carne de Nabo, ou o arrepio em seus braços a cada vez que o som de rachadura se elevou na biblioteca, como um agouro, tampouco conhecia o cheiro e a textura de seus dragões como ela. –Se a história de que Eddard Stark criou uma Targaryen em Winterfell sem conhecimento do rei, ele será executado.

                Os olhos azuis de Robb encontraram com os dela por cima da cama de sua mãe. Cordyra desejou que ele estivesse perto o suficiente para que ela esticasse o braço à procura de sua mão.

—Mãe, não sabemos se Cordyra é uma Targaryen. –Robb disse, mas o tom de lorde havia o abandonado, e ele soava apenas como um garoto à procura de reafirmação.

—Ovos de dragão não eclodem para crianças Stark. –Catelyn disse firmemente, como Meistre Luwin havia feito. –Rhaella Targaryen estava na Fortaleza Vermelha tanto quanto Alyssa Velaryon, e Brandon sempre fora mais charmoso e mais impetuoso do que era bom para ele. Além disso, me disse que Cordyra estava no incêndio. –Os olhos de Catelyn eram firmes, mas havia gentileza neles. –Não se queimou, Cordyra?

                A tia nunca a havia chamado pelo apelido, como o resto da família. Não nutria por ela o desprezo que alimentava por Jon Snow, e que podia ser sentido à distância, mas parecia Cordyra era uma lembrança de que ela estivera prometida a dois homens Stark, e ambos tiveram mulheres que amaram antes dela.

                Ainda assim, talvez por não ter se casado com Brandon, ou por não conhece-lo extraordinariamente bem, era gentil com Cordyra, e a apoiava em seu noivado com Robb. Apenas dois meses antes, as duas haviam viajado até Porto Branco, para escolher o tecido de seu vestido de casamento. Branco, na cor de sua Casa.

—As roupas queimaram. –Cordyra contou. –E eu senti o fogo na minha pele, quente. Mas não quente de queimar. Apenas... o mais quente que é possível no Norte.

                Ela olhou para baixo, para o chão de pedra escura no quarto da tia, ao invés de para os seus companheiros.

—Suponho que isso encerre a questão. –O Meistre Luwin pontuou após um momento de silêncio. –Ninguém deve saber.


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