Filha de Gelo e Fogo escrita por Dafne Guedes


Capítulo 5
O Menino de Barro




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"My tears are always frozen
I can see the air I breathe
Got my fingers painting pictures
On the glass in front of me
Lay me by the frozen river
Where the boats have passed me by
All I need is to remember
How it was to feel alive"

Os Stark não eram uma Casa de ostentar sua riqueza. Famílias como os Lannister ou os Hightower, da Campina, mostravam seu dinheiro através das roupas finas, das armaduras cravejadas de joias ou em metais preciosos. Os Stark vestiam-se bem o suficiente para a sua posição; eram os Protetores do Norte, e Ned não era tolo; sabia que, caso não se vestisse de acordo, suas ordens e seu comando seriam questionados.

                O Norte não era uma boa terra para cultivo; o solo era endurecido dos invernos e da neve. Criar animais era bom o suficiente no verão e na primavera, mas a maioria deles tinha de ser morto ao fim do outono para alimentar a população. Tinham, porém, minas de ferro e prata, além de madeira nobre à vontade, e terras que eram tão vastas quanto todo o Sul, Leste e Oeste juntos.

                Cordyra não tinha os braços cheios de braceletes de ouro, como a princesa Myrcela, ou brincos que cobriam todo o lóbulo da orelha como acontecia com algumas mulheres no continente de Essos. Mas sua tia a vestia em seda, pele, veludo e lã, tinha boas mudas de vestido, e roupas de baixo finas. Seu porta-joias era pequeno, mas recheado, e havia uma criada para trançar seus cabelos.

                Seus pedidos mais extravagantes ao longo da vida haviam sido negados; suplicara ao tio que construísse uma grande estufa onde ela pudesse plantar rosas, lírios, lavanda, violetas e margaridas, ele dissera que o jardim de vidro de Winterfell e as suas rosas azuis de inverno podiam ser cuidados por ela, se desejasse. De outra vez, decidira que, se tinha sangue Velaryon, então deveria ter um navio só seu, e comandaria a frota de Winterfell. O tio a levara para conhecer Porto Branco, onde foram recebidos pelo lorde Manderly, e a deixara embarcar em uma de suas galés. Cordyra enjoara e vomitara para fora da amurada, e isso marcara o fim de suas relações para com o mar.

                No entanto, da vez em que a septã Mordane contara à senhora Catelyn de seu talento com desenhos, a tia falara com o marido e, em algumas semanas, eles mandaram vir um pintor de Myr, do outro lado do Mar Estreito, para ensiná-la tudo sobre aquarela, tinta à óleo, lápis de carvão, e pinceladas.

                Isso já fora há alguns anos, e agora o mestre pintor se fora, mas ela tinha livros e suprimentos o suficiente, além de talento, para não precisar dele. A septã Mordane a fazia praticar três vezes por semana para que não perdesse as habilidades, e um de seus quadros estava pendurado no salão de refeições; era o pai, Brandon, segundo as descrições do tio e a escultura que havia dele lá embaixo, nas criptas. Pensou ter visto os olhos de Ned ficarem embaçados quando ela o mostrou pela primeira vez.

                Às vezes, ela se olhava no espelho e tentava pintar a mãe, como imaginava que ela tivesse sido um dia, mas essas pinturas ela não mostrava a ninguém.

                Era o último dia do cortejo real em Winterfell e, por consequência, também de Bran e das meninas. Cordyra escondeu-se na sala de desenho. Era um salão largo, com janelas para o Bosque Sagrado, grande o suficiente para seu cavalete, uma mesa onde ficavam os suprimentos; os baguetes de tinta, lápis de carvão, pinceis, godês e panos para limpá-los, além de espaço para guardar os quadros que fizera, mas que não mereciam ser pendurados, debaixo de panos limpos para protege-los da poeira.

                Cordyra devia estar trabalhando em seu retrato de noivado. A maioria das meninas no Sul tinham um, Sansa garantira. O noivo ganhava uma imagem da noiva e vice-versa, para que soubessem como eram os rostos de seus futuros cônjuges. Ela conhecia Robb desde criança, então seus tios pensaram que não precisariam de um, mas ela trabalhou neles mesmo assim. Conhecia os traços de Robb de cor, mas, para o seu próprio quadro, apoiava o espelho na janela e ia desenhando com um pincel bem fino, pois era um quadro pequeno, apenas do tamanho de sua palma.

                Estava, porém, muito ressentida e triste para pintar. Desejava ardentemente ver o Sul, conhecer o castelo onde nascera, tirar todas aquelas camadas de roupa e trocá-las por um vestido de verão. Queria acompanhar o tio e ouvi-lo falar sobre as necessidades do reino, e, talvez, uma vez ou outra, ele aceitasse suas ideias e as repassasse para o ouvido do rei. Ao mesmo tempo, desejava ainda mais que nenhum deles fosse embora, e envelhecessem no Norte como uma grande família. Sempre soubera que perderia as meninas, um dia, para o casamento que teriam, mas achava que teriam mais alguns anos. Seu tio devia ficar velho ao lado deles, e lentamente ir deixando o governo do Norte para Robb.

                Isso não aconteceria agora. Estava perdendo metade de sua família de uma vez só. Ao menos teria Robb e Rickon, estava calculando, quando duas batidas tímidas na porta a acordaram de seus devaneios.

                Ela abriu a porta para uma Sansa, usando um belo vestido vermelho e amarelo –as cores de Joffrey, Cordyra não deixou de notar –e sorrindo como se fosse o melhor dia de sua vida inteira.

                Durante os últimos dias, desde que o pai anunciara que ela iria para o sul com ele, para se tornar noiva do príncipe, Sansa havia adquirido uma aura de realeza, e ares superiores. Jeyne Poole, que também iria para o sul com o seu pai, que era intendente, crescera em orgulho de forma similar. Cordyra vinha evitando ambas as garotas.

—Cordyra. –Sansa exclamou, incapaz de conter a alegria. –Prima! Devemos nos despedir. O pai está caçando com o rei neste último dia, mas deixou ordens para que eu, Brandon e Arya nos despeçamos da família. Partiremos amanhã ao alvorecer.

                Sansa era uma cabeça mais baixa que sua prima mais velha. Era mais esguia, e usava de todas as regras de etiqueta que a Septã Mordane a enfiara goela abaixo por todos os anos de aprendizado. Havia se agarrado a isso, certa de que, se fizesse tudo certo, seria recompensada com um bom casamento, e belos filhos. Cordyra achava que elas se pareciam bastante. Agora, porém, Sansa iria para o Sul, se vestir de sedas e joias, e Cordyra ficaria no Norte, com quatro pedras bonitas, mas que não poderia exibir jamais.

—Fiz algo para você. –Anunciou de repente, tirando os pensamentos sombrios da mente. Não precisava da admiração e dos olhares sulistas. Tinha Robb.

                A prima a seguiu para dentro do salão. Cordyra deixou que ela ficasse diante do quadro ainda inacabado de Robb, olhando com admiração, e sorrindo. Será que pensava em quando veria o irmão novamente? Parecia improvável. Estava conseguindo tudo o que queria, e não olharia para trás agora, se a conhecia bem.

                Enquanto a prima se distraia, Cordyra abriu uma das gavetas da mesa de apotecário, e buscou um quadro pequeno, apenas do tamanho de seu dedão em altura, e não mais largo do que alto. Havia dado um enorme trabalho pintá-lo: as torres de Winterfell surgiam por de trás de suas muralhas, e neve caia na paisagem como lágrimas, em relevo.

                Pensou ter visto os olhos de Sansa brilharem perigosamente quando entregou a ela o quadro, mas logo a prima estava novamente tagarelando alegremente, e abraçando-a, jurando escrever mil cartas, com todos os detalhes da coorte, as roupas das senhoras, e as joias que usaria. Cordyra estava feliz por ela, embora fosse uma felicidade agridoce.

                Quando Sansa saiu, Cordyra decidiu que era hora de tomar coragem e agir de acordo com o seu dever. Seria senhora de Winterfell um dia, e homens, convidados e cavaleiros estariam sempre chegando e partindo de sua tutela. Receberia os Cerwyn, os Mormont, e não se despedir seria uma falha na hospitalidade. Precisava assegurar ao tio que o castelo estaria protegido, e que tomaria conta de Catelyn, mesmo que ela não precisasse, e de Rickon, que precisava tanto. Diria a Arya que, quando fosse senhora, treinaria suas filhas nas mesmas habilidades dos filhos. Ela gostaria disso.

                Conhecia os corredores de Winterfell bem; eram longos, sinuosos, escuros. O cabelo de Jaime Lannister brilhava mesmo assim, como se iluminado pelo próprio sol. Ele estava entrando em um dos quartos quando a viu caminhando pelo corredor, então ele fechou a porta, ficando do lado de fora, e observou enquanto ela se aproximava.

—Senhora Stark, estaremos de partida amanhã cedo. –Anunciou Jamie, como se ela não soubesse disso. –Deve estar ansiosa para ter o castelo para si. Exceto, é claro, que sentirá falta de meus belos cabelos dourados.

                Cordyra não se abalou quando chegou na altura do corredor na qual ele estava. Sorriu para ele verdadeiramente –pouco a importava que ele fosse irônico, e que seu tio não gostava dele. Era charmoso –do jeito que ela sempre sonhara que seriam os cavaleiros sulistas. Também ficava muito bem em seu manto branco da Guarda Real.

—Pelo contrário, sor. –Respondeu alegremente. –O castelo ficará deveras triste quando todos se forem.

                Propositalmente, ela ignorou o que ele comentou sobre os cabelos. Não eram mais charmosos que os vermelhos cabelos de Robb.

—Se gosta de animação, deveria visitar Porto Real. –Disse, inclinando-se na porta de forma causal. –Música, dança, e bailes até onde a vista alcança.

—Não é para os nortenhos. –Respondeu. –Verá. Meu tio não apreciará nada disso.

—Você não é como ele.

                Não parecia haver mais nada a ser dito. Ele tinha razão; ela ansiava pela vida do Sul, uma vida que teria vivido fosse o mundo apenas um pouco diferente. Talvez ter nascido em Porto Real fizesse toda a diferença –nunca havia o suficiente do Norte nela. Não disse nada disso a Jamie Lannister.

—Boa vigem de volta ao Sul.

                E continuou a andar.

                O tio saíra de madrugada para a última caça nas florestas ao redor de Winterfell, com Robb, o rei e alguns cavaleiros, mas o resto das crianças estariam em algum lugar pelo castelo. No pátio, viu os dois filhos reais mais novos cutucando alguma coisa na neve; talvez uma doninha ou um coelho; haviam desses aos montes ao redor de Winterfell. Suas cabeças douradas estavam inclinadas juntas, e as pulseiras de Myrcella tilintaram alegremente quando ela se inclinou para esconder-se da vista de sua septã, à procura-la.

                Cordyra gostaria da companhia de Norte, ao seu lado. Os lobos vinham estando presos nos canis, ou soltos apenas na companhia de seus respectivos donos, já que deixavam toda a comitiva real um pouco nervosa. Cordyra ouvira o que eles tinham a dizer sobre os lobos: que eram aberrações, maus agouros, e que seria melhor que fossem executados antes de arrancarem a perna ou a cabeça de alguém; talvez até de uma das crianças.

                A jovem pensava alegremente em como era feliz em provar aos Lannister o contrário. Norte e Lady, por exemplo, haviam se comportado notavelmente bem, assim como Vento Cinzento. Sabia, por outro lado, que Arya estava tendo alguns problemas de comportamento com Nymeria, mas ao menos não os tinha na frente de ninguém que fosse fofocar. E, de qualquer forma, a loba agia não muito diferentemente da própria menina, que sempre fora uma coisinha selvagem.

                Desviou-se, na curva de uma torre, de um montinho branco de neve, e disse a si mesma para prestar mais atenção ao chão; tendo nevado naqueles dias, a neve rapidamente virava gelo escorregadio sob a sola de suas botas. Pôs os olhos no chão e mirou, ao longe, uma forma retorcida e deformada com cabelos vermelhos.

                Uma vez, quando eram mais novos, o Meistre Luwin decidira mostrar a Bran o que aconteceria se algum dia desse um passo em falso, ou segurasse em uma pedra solta do castelo, e caísse do alto em direção ao chão. Foi um grande evento. Todas as crianças se reuniram no pátio, sob o olhar sério da senhora Catelyn, e o ligeiramente entretido de Lorde Eddard. Mesmo os filhos dos criados, como Nabo e Farlen, e Jeyne Poole, a filha do intendente de seu pai, haviam comparecido para observar.

                O meistre subira até uma das janelas mais altas que dava vista ao pátio, e lá de cima soltara um boneco do tamanho que Bran tinha à época, feito de barro e estufado com palha.

                Não foi um experimento convincente. O boneco se espatifou no chão; um dos pedaços de barro voou tão próximo aos seus olhos que Cordyra pensou que ficaria cega, mas apenas fez um talho em sua bochecha e caiu inerte ao chão. Robb a havia puxado para perto para examinar o estrago, e meistre Luwin a pediria mil desculpas após, mas não era neles que Cordyra estava prestando atenção. O rosto de Bran ficara desinteressado durante grande parte do experimento. Como ela, Bran sabia que não era aquilo que acontecia ao corpo quando caia daquela altura e, sem saber o que de fato acontecia, o menino continuou a escalar e subir por toda a Winterfell.

                Agora, estava no chão, ao invés de escalando.

                A garota deixou-se cair no chão ao lado do primo, e afundou uma das mãos em seus cabelos ruivos. Quando a trouxe de volta, estava suja de sangue. O sangue se misturava ao gelo e à neve lentamente –não caíra há muito tempo, então, ela pensou, mas apenas com uma parte da cabeça. Todo o resto de seu corpo era puro horror em ebulição.

                Os membros de seu primo, braços e pernas finos, ficando desproporcionais conforme ele envelhecia e entrava na adolescência, estavam esticados e torcidos em ângulos inumanos. Mesmo seu tronco estava posicionado de uma forma não natural.

                Ao redor de Winterfell, sete lobos começaram a uivar.


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Notas finais do capítulo

A música do capítulo é Winter Bird, da cantora Aurora.



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