Filha de Gelo e Fogo escrita por Dafne Guedes


Capítulo 3
Os Leões


Notas iniciais do capítulo

Como prometi, um capítulo por semana! Boa leitura!



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"Sometimes the worst of him have the best disguises
He'll go as far as it takes to stay in hiding
Uh don't you know, don't you know
But the devil is a gentleman"

Outra garota poderia ter ficado irritada com o modo como as coisas tornaram, mas Cordyra não se importou em deixar a princesa Myrcella entrar no salão acompanhada de Robb, mesmo que o primo fosse prometido seu noivo já há muitos anos agora, e ninguém mais questionasse o fato de que pertenciam um ao outro.

                Era dia de banquete, para celebrar a chegada do rei ao Norte. Cordyra conhecia as histórias; outros reis haviam conquistado o trono de ferro e viajado os sete reinos, mais de uma vez. Um rei visto é um rei lembrado, e às vezes até amado. Aegon sabia disso, e seu neto Jaehaerys também. O rei Robert Baratheon, por outro lado, parecia não ter interesse em ser visto, ou tampouco em conhecer seu povo. Cordyra podia ver qual a questão, enquanto Robert tomava sua tia Catelyn no braço para ir com ela até a mesa, fazendo um cortejo logo atrás de Lorde Eddard e da rainha. O rei Robert era um guerreiro; e o Trono de Ferro não parecia fazer bem algum a ele.

                A jovem estava prestes a entrar ao fim do cortejo, junto com um desajeitado Rickon e um jovem e alegre Bran, tendo sido deixada para trás por Robert, Sansa e Arya, cada um deles acompanhando um príncipe e a princesa, quando ao seu lado pôs-se um homem alto e dourado, com um sorriso cortante como uma lâmina. Ela conhecia as histórias bem o suficiente para desprezar Jaime Lannister, embora não fosse desonrada ao ponto de chama-lo de regicida pelas costas. Trajava seda carmesim, botas negras de cano alto, um manto de cetim negro. No peito da túnica, o leão de sua Casa estava bordado em fio de ouro, rugindo em desafio. Cordyra queria negar o seu braço estendido, mas não tinha um modo de fazê-lo de forma educada, então aceitou andar ao seu lado, deixando-o a guiar. Pensou que os dois deviam fazer uma bela dupla, ela em veludo vermelho, com os cabelos cor de ouro-branco trançados em uma coroa sobre a cabeça.

                O irmão da rainha a acompanhou até a mesa posta embaixo da plataforma elevada aonde seus tios recebiam o rei e a rainha. Fez uma reverência ligeira e seguiu para o seu lugar. Cordyra não queria, mas ficou observando suas costas largas enquanto ele se afastava. O homem não a dera mais do que a olhada simples que se dá a uma criança, mas então piscara ao encarar seus olhos, e ela pôde senti-lo observando-a pelo canto do olho na curta caminhada até a mesa.

                Ao sentar-se lado a lado com Robb, como deveria, descobriu-o enveredado em uma conversa enfadonha com uma acanhada princesa Myrcella, que olhava para o herdeiro Stark como se ele fosse o sol nascendo após a Longa Noite. A própria Cordyra entendia o apelo; haviam poucas coisas no mundo como o cabelo ruivo de Robb, ou seu sorriso aberto e confiante.

                Do outro lado da mesa, Sansa também tentava arrancar algumas palavras de Joffrey, que, desdenhoso, olhava o Grande Salão de Winterfell como se estivesse dentro do barracão de um carniceiro, sentindo o cheiro pungente de sangue e morte quando, ao invés disso, a sala enchia-se com aroma de carne assada de carneiro e tortinhas de limão e frutas vermelhas, as preferidas, respectivamente, de Sansa e Cordyra.

                Os outros primos estavam longe demais para que ela pudesse começar uma conversa educada; ela adoraria, por exemplo, saber que novas plantas Arya vinha descobrindo com o fim do verão, ou algum novo corredor esquecido de Winterfell que Bran vislumbrara em suas escaladas. O mais distante, claro, era Jon. Embora normalmente comesse à mesa com eles, Catelyn parecera pensar que seria um insulto à coroa ter um bastardo à mesa dos príncipes. Cordyra vira o tio, Ned, fazer aquela expressão muito velha e cansada com os olhos, mas era uma guerra há muito perdida.

                Uma vez, quando eram crianças, estavam brincando de “soldado, poeta, rei” dentro das muralhas de Winterfell. Era uma daquelas brincadeiras onde fingiam serem algo que não eram, e era mais gostosa por conta disso. Nevava do lado de fora, e eles adoravam brincar na neve, mas haviam, os três mais velhos, acabado de se recuperarem de uma gripe, e Catelyn proibiu Cordyra e Robb de sair. Então, eles brincaram do lado de dentro. Naquele dia, Cordyra era a poeta, o que significava que ela precisava cantar uma canção. Robb era o soldado, então lutou contra cavaleiros invisíveis, já que Bran não era grande o suficiente para brincar com eles. Jon foi o rei naquele dia, e estava julgando a performance de outro. Ao fim da brincadeira, ainda dentro do personagem, Jon disse a Cordyra que ela tinha a voz mais bela que ele já ouvira, e perguntou se ela gostaria de ser sua rainha. Os três haviam rido daquilo. Não tinham mais que sete ou oito anos, e era tudo fingimento. Mas a senhora Catelyn, sentada junto ao fogo, levantara seus duros olhos azuis para Jon.

—Cordyra é uma dama prometida. E você faria bem em não cobiçar o que é de seu meio-irmão.

                Depois daquele dia, eles nunca fizeram aquela brincadeira.

                Ao menos havia música, pensou consigo mesma, enquanto mais uma figura conhecida passava na porta do salão. Benjen Stark, também conhecido como “tio Benjen”, cumprimentou Jon calorosamente antes de se dirigir ao resto das crianças com sorrisos fáceis, perguntando a Bran sobre o que ele vinha estudando ultimamente, deixando que o garoto o contasse sobre o nome de cada um dos dezenove castelos ao longo da Muralha, e sentar-se junto ao irmão, que parecia mais do que um pouco alegre em vê-lo. A alegria durou pouco, porém. Os olhos de lorde Eddard estavam assombrados desde que ela o vira mais cedo.

                Então, para sua completa surpresa, o anão Lannister destacou-se da mesa principal e foi bamboleando até onde as crianças estavam sentadas, conseguindo discretamente um lugar no banco entre Cordyra e uma entretida Sansa. Ao notar que Cordyra o encarava, sorriu abertamente, batendo seu cálice de vinho à mesa.

—Sou indesejado na outra mesa. –Anunciou. –Acha, minha senhora, que há alguma chance de ser despachado desta também?

                Pega de surpresa, Cordyra continuou a encarar, em especial sua estatura. Cordyra não era uma moça alta, e ele batia apenas na sua cintura, ainda menor que Bran.

—Acho que há uma chance de confundirem-no com um de nós, senhor. –Respondeu francamente.

                O anão olhou-a surpreso por um segundo, então soltou uma risada trovejante, que fez com que Cordyra sentisse os olhos dos gêmeos Lannister, do rei e de seus tios sobre si, estando eles na mesa mais próxima. A atenção do rei, já pobre pelo excesso de vinho, foi logo desviada, mas ela ainda sentiu os olhos dos outros enquanto o duende recuperava-se da explosão.

—Eu pensei que não havia um Stark com senso de humor. –Admitiu, olhando-a com seus olhos de cores diferentes. Um verde, e um negro.

                Cordyra o olhou com intensidade; intimidava a maioria das pessoas assim. Sabia possuir profundos olhos cor de violeta que deixava as pessoas desconcertadas. Naquela noite, em especial, o veludo vermelho de seu vestido deixava os olhos mais violentos.

—Não conhece Robb muito bem. –Disse, depois pensou melhor. –Não achei que pensasse muito sobre os Stark, senhor. –Comentou, colocando um pedaço de tortinha de limão na boca, de forma que o dava tempo para responder.

                O Lannister fez pouco caso.

—Não penso. –Admitiu. –É um velho pensamento. Comum, também, nos sete reinos. Os Stark são duros e frios como o Norte. Todo o sul, leste e oeste sabe disso.

—Há defeitos piores. –Sem conseguir evitar, Cordyra deixou que o olhar vagueasse até o rei; comendo e bebendo e rindo alto na mesa principal.

                O olhar do anão seguiu o dela, então se desviou. Do outro lado do salão, o primo, Jon, alimentava Fantasma, seu lobo, por debaixo da mesa. Cordyra se ressentia por não poder ter trazido seu lobo; a princesa Myrcella tinha medo dos filhotes e, de qualquer forma, eles pareciam deixar toda a comitiva do rei um tanto nervosa.

—Bonitos lobos estes. –Ele apontou a cabeça para Fantasma. –Eu, particularmente, sempre gostei mais de dragões. Sonhei em ver um toda a minha vida. Li sobre eles. Se houvesse me dedicado mais aos Lobos Gigantes, ao invés, talvez estivesse realizando um sonho agora.

—Também sonhei com dragões. –Cordyra se viu admitindo mesmo sem querer. Havia honestidade nas palavras do anão, e para ela honestidade valia ouro. –Com o que você sonhava?

                Tyrion fez uma pausa, como se decidisse o quanto estava disposto a compartilhar. Depois deu de ombros, talvez decidindo que ela era uma menina, talvez houvesse bebido demais. De todo jeito, sua forma ficava ainda mais monstruosa com aquele gesto.

—Sonhava em me erguer acima de todos os homens, sentado no dorso de um dragão como se este fosse um cavalo. –Admitiu ele. –Com o que você sonhava?

—Fogo. –Respondeu Cordyra rapidamente, ansiosa para ser tão verdadeira quanto ele. –Exceto que jamais queimava a mim ou ao dragão. –Ela observou enquanto o anão assentia como se entendesse. Então, ela se sentiu ousada e tola, e fez a pergunta que dissera a si mesma que só devia fazer ao seu tio. –Com quem eu me pareço? –O anão fez um olhar surpreso, então ela elucidou. –Ontem, quando chegaram, a rainha estava pronta para me dizer que eu pareço alguém, mas você não a deixou dizer quem. Com quem me pareço?

                O anão fez uma expressão desconfortável e seus olhos de cores diferentes vagaram rapidamente pelo ambiente, como se procurando testemunhas. Mas ninguém, nem mesmo Robb, prestava atenção a eles.

—Você parece com Rhaella Targaryen. –Ele admitiu, finalmente. –Essa não é uma coisa que se diga em voz alta; faria parecer que seu tio é um traidor, e não acho que o seja.

Cordyra não precisava que Tyrion dissesse mais nada. Houvesse Eddard Stark trazido uma criança Targaryen para ser criada entre as suas, e isso fosse descoberto, seu tio seria um homem morto. Cordyra não achava que ele faria isso; menos por medo, e mais por lealdade ao rei. Não havia ouro no mundo capaz de comprar a lealdade de Eddard Stark.

 -Eddard ficou pessoalmente ofendido quando soube que meu pai, Lorde Tywin, mandara matar as crianças Targaryen, os filhos de Rhaegar, e a esposa dele. –Contou Tyrion, notando seu olhar. –Se houvesse tido tempo, o exército conquistador, liderado por Stannis, certamente teria também matado os filhos de Aerys, Viserys e Daenerys, recém-nascida. Estes fugiram para o outro lado do mar estreito. Aegon e Rhaenys não tiveram a mesma sorte.

—Eu conheço a história. –Cordyra disse severamente. –Mas Lady Alyssa me trouxe aqui. Todos sabem disso.

—Sim, e Lady Alyssa estava grávida, de fato, à mesma época que Rhaella esteve. Exceto que a rainha perdeu o bebê, embora tenha engravidado novamente logo em seguida, e Lady Alyssa trouxe você aqui. A rainha ficou arrasada com a perda do bebê, tanto que morreu no parto seguinte, apenas um ano depois.

                Ela podia sentir a insinuação em suas palavras. O doce de limão pareceu amargo em sua boca.

—Lorde Stark jamais o faria. –Ela queria que sua voz soasse como um chicote, como quando a chamavam de bastarda. Mas uma coisa era que insinuassem que seus pais não eram casados, outra coisa era chama-la de Targaryen, uma ofensa muito pior ao rei. De bastardos, segundo diziam, ele estava cheio de qualquer forma.

—Concordo. –O anão disse, mesmo que ela não prestasse mais atenção a ele. –Porém, as pessoas vão comentar.

—Sou filha de Brandon Stark. –Cordyra murmurou baixo, mas ferozmente. Não para Tyrion; para si mesma. Dissessem o que fosse; ela podia sentir o sangue dos primeiros homens em suas veias, e lascas de gelo em seu coração.

                De qualquer forma, o anão já não mais prestava atenção nela. Bebera inúmeras taças enquanto conversavam, e agora parecia ter dificuldade mesmo para se pôr em pé.

—Minha senhora. –Fez uma reverência cambaleante. –Devo tomar ar fresco, antes que vomite em roxo.

                Contra aquela premissa, Cordyra não se importava de vê-lo deixar a segunda mesa à noite. Mal ele saiu, Robb se inclinou sobre ela; cheirando a inverno e com hálito de doces de limão. Seus olhos azuis eram gentis, mas havia um brilho de impaciência em seu sorriso cortês. Para pintá-lo, Cordyra precisaria de branco-pérola, e azul lápis-lazúli. Ele aspirou o cheiro de seu cabelo quando se inclinou sobre sua cabeça.

                Ao invés de perguntar o que a incomodava, ele deu tapinhas em sua mão, sua linguagem secreta.

                Por debaixo da mesa, ela apenas o segurou de volta, seus pulsos apertados um contra o outro, batendo no mesmo ritmo, bombeando o mesmo sangue.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham tido boa leitura! Até a próxima semana.
XOXO
A música do capítulo é "The Devil is a Gentleman", de Merci Raines.



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