Filha de Gelo e Fogo escrita por Dafne Guedes


Capítulo 27
Guerreira




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"And the stakes remain too high
For this silent mind
And the shake, the lonely itch
That courses down my spine
To leave a love divine
Don't leave a love divine
It's a water tight excuse

It's in the eyes
I can tell, you will always be danger
We had it tonight, why do we always seek absolution?
It's in the eyes
I can tell you will always be danger

 

Chuva intensa e perene assolou a marcha pelo Oeste nos dias que se seguiram à Batalha de Cruzaboi. Não era sempre uma chuva grossa, mas uma garoa constante que tendia a ficar mais forte conforme anoitecia. Os campos amanheciam alagados, e não era possível ver muito a frente por conta da bruma outonal. O exército seguiu à princípio pela estrada do Rio, que ia a Norte. Mas então a estrada deu uma guinada para o leste, e eles seguiram por trilhas e terrenos montanhosos na direção de Cinzamarca.

                Encontraram Sarsfield vazia. O exército de Lorde Sarsfield havia partido para Harrenhal com Lorde Tywin, e deixaram a casa vazia, exceto por criadas e mulheres. Robb não atacou o castelo, embora houvesse saqueado a vila ao redor, e deixado os soldados se aproveitarem de toda comida, bebida e companhia que pudessem encontrar, desde que deixassem os camponeses livres e incólumes.

                Àquela altura, Lorde Tywin já devia saber do paradeiro de Robb, e não podia estar longe de pôr seu exército em marcha. Havia uma tensão sobre os ombros de Robb, que se preparava para o confronto. Ele lutava intensamente enquanto os outros descansavam. De Correrrio, Edmure mandou a notícia de que o senhor de Lannister havia deixado Harrenhal, que fora ocupado por Bolton, e marchava para Oeste com todo o seu poderio. Isso significava uma marcha lenta, Cordyra sabia. A infantaria o atrasaria.

                Outras notícias chegaram; o filho do falecido Sor Stevron Frey se juntaria a eles. Ryman Frey, o seu nome, como o cantor Ryman, o Rimante, que compusera uma canção a respeito da Batalha de Cruzaboi que dizia assim:

E as estrelas da noite eram os olhos de seus lobos,

e o próprio vento era a sua canção. 

                O próprio Robb parecera bastante encabulado em ouvir a música, mas não fizera objeção a sua cantoria durante a marcha, pois parecia deixar os homens mais corajosos e ousados, como se batalhassem ao lado do próprio Aegon, O Conquistador.

                Ela não insistiu com Robb sobre o assunto que a vinda de Ryman trazia à tona; sobre seus dragões. O rei já estava bastante frio com ela sem que Cordyra o fizesse cobranças. Não cavalgavam lado a lado; ele com seus lordes, ela com suas senhoras. Quando Cordyra se aproximava para arrumar uma placa da armadura ou falar-lhe ao ouvido que os homens estavam cansados e deviam parar para descansar, ele não se esquivava, mas adquiria uma rigidez no corpo que indicava insatisfação.

                Cavalgando com suas senhoras, chegou a pensar que seria capaz de cortar ela mesma a garganta de Jaime Lannister de volta em Correrrio se isso fosse conquistar a confiança de Robb de volta, e riu alto para si mesma ao pensar na expressão de Lorde Karstark se ela o fizesse. Sentiu as senhoras Alys e Elyria se entreolhando, mas não deu importância.

                Ao menos, o tempo com as senhoras se provara proveitoso. Cordyra não havia tido amigas em Winterfell –Beth Cassel era muito séria, e Jeyne Poole sempre fora mais amiga de Sansa. Além disso, ela tinha Robb e Jon, e pensava não precisar de mais ninguém. Foi apenas na viagem para o Oeste que percebeu que apreciava a companhia de outras meninas que não suas primas –elas não falavam apenas sobre garotos e bordados, mas também sobre finanças e economias. Elyria, que vinha de uma Casa grande e sulista, a contou sobre as peças de arte que seu pai encomendara de Lys alguns anos antes, e como adornavam a biblioteca de Guardamar. Alys sabia tudo sobre estocar comida para o inverno, e mesmo Rosey Frey tinha algo a contribuir.

                Surpreendentemente, também sentia falta de Lorde Umber, com suas risadas sonoras e familiaridade, embora estivesse um pouco aliviada pela partida de Lorde Karstark. Dacey Mormont raramente estava com ela agora, pois tinha substituído sua mãe no conselho de Robb como representante da Casa Mormont.

                Em Sarsfield pela primeira vez em algum tempo dormiram em condições agradáveis ao invés de em uma barraca. Robb não tomou o castelo, mas haviam algumas estalagens relativamente decentes na Vila que eles tomaram, então lá se alojaram com os senhores de maior confiança. O quarto em que ficaram era simples, mas limpo. Além disso, era seco, e Cordyra sentia falta de não se sentir úmida o tempo inteiro.

                Havia trocado suas adoráveis roupas em tons pastéis de senhora sulista de volta por seus vestidos mais grossos de lã e botas de couro resistente. Ao chegar ao quarto, jogou a capa com colarinho de pele em cima de uma cadeira. Havia dispensado Jocelyn para que se secasse antes de a atender, mas agora percebia que isso significava que ela mesma estaria molhada pela próxima meia-hora.

                Ao invés disso, Robb se aproximou por de trás dela, os passos ecoando nas tábuas secas do piso, e desabotoou os botões de trás de seu vestido tão rapidamente, desfazendo o laço do corpete por baixo, que foi como se a pele dela o queimasse. Assim que terminou, se afastou com passos ligeiros para o outro lado do quarto.

                Cordyra prendeu um suspiro e olhou para o outro lado, com os olhos pinicando.

                Do outro lado da sala, Robb, sentado em uma pequena cadeira com escrivaninha de madeira simples e gasta, havia tirado alguns papéis de dentro de uma carteira de couro que recebera de Sor Ryman Frey quando o homem se juntara ao exército, e abriu o primeiro deles, dando uma risada logo em seguida.

—Lorde Wyman Manderly deseja que tenhamos uma moeda só nossa. –Ele riu para Cordyra por um segundo, como se houvesse se esquecido de que se chateara com ela. Ela apenas o olhou de volta, e ele ficou sério mais uma vez, limpando a garganta com um pigarro. –Me pergunto o que ele deseja cunhar nas moedas. Um lobo para ouro, um sol para prata e um gigante para cobre?

                Era uma piada e, embora parecesse ter sido feita mais com ele mesmo do que com ela, Cordyra respondeu venenosamente:

—Talvez possam cunhar um homem esfolado nas moedas falsas. –Sugeriu, o tom suave de raiva.

                Ela não esqueceria tão facilmente o papel que os homens de Lorde Bolton haviam desempenhado em sua desgraça, embora o próprio Lorde Bolton não parecesse ter nada a ver com aquilo. Robb deixara de convidá-la para os conselhos de guerra, sobre os quais ela descobria pobremente com Dacey, como se buscasse migalhas no chão. Além disso, não usara seus dragões para queimar os campos pelos quais passara, apenas para não ter que a pedir para dar a ordem aos bichos.

                Se estivessem em bons termos, Robb teria achado graça de seu comentário, mas, como não estavam, apenas deu de ombros e continuou sua leitura.

—Também deseja nos fazer uma frota de guerra. –Ele leu para ela. Não a ignorava totalmente, apenas a tratava com frieza. –Isso seria útil. Os Homens de Ferro talvez deixassem de assolar nossa costa oeste. Quando isso acabar, e formos independentes, não poderemos contar com o poderio naval de Porto Real para isso. Também seria útil para o comércio com as Cidades Livres.

—Baleeiros também seriam úteis. –Ela acrescentou, em um tom mais sincero, pensando. Sempre se esquecia de todas as coisas quando começavam a falar com ela de economia. –Tio Eddard falava sobre começar um comércio de óleo, e o Mar Tremente é famoso pelas baleias.

                Robb, de costas para ela em sua cadeira de madeira simples, pequena demais para o seu corpo largo, virou-se totalmente na sua direção.

—Lembra-se quando uma grande baleia branca encalhou na Ilha das Focas e o pai levou a mim, você e Jon para dar uma olhada?

—Sim. –Ela disse lentamente, sentando-se na cama de costas para ele. A visão de seu rosto quando ela não poderia tê-lo era demais. –Lorde Umber nos convidou, e comemos carne de baleia por toda aquela lua.

—Eu sugeri a Jon que nos esgueirássemos durante a noite para caçar um alce ou veado na Mata dos Lobos que havia lá. –Robb se recordou, a voz doente de saudade. –Ele não quis.

                Cordyra esboçou um sorriso que ele não conseguia ver no escuro no quarto.

—Teria sido as suas carnes que comeríamos se o tio Eddard pegasse vocês. –Ela fez notar. Era uma grande ofensa caçar nos bosques de um senhor sem sua permissão expressa, mesmo que fosse o filho do suserano.

                Robb fez uma pausa longa o suficiente para que ela pensasse que o assunto estava acabado, mas como não ouviu o som dos papéis, esperou.

—Jon teria sido duro, nervoso e difícil de engolir. –Ele brincou. –Eu teria sido suave e macio, quase doce.

                Os olhos dela já estavam secos, então ela se virou para encará-lo.

—Bem, agora isso foi muito tempo atrás, não?

                Os olhos de Robb eram duas fendas azuis, mas ela segurou seu olhar com firmeza. Ele abriu a boca para responder, e ela podia dizer que ia ser uma resposta malcriada, como quando a senhora Catelyn o avisava que estava na hora de deixar as espadas de lado e passar para os livros, quando uma batida na porta o interrompeu, e um vinco se fez entre as suas sobrancelhas.

—Entre. –Pediu Cordyra, achando que sua voz saíra apenas um pouco ansiosa.

                Jocelyn escorregou para dentro do quarto da forma quieta como ela sempre agia, especialmente perto de Robb. Cordyra achava que ela tinha uma pequena queda por ele, mas, agora que ela falara sobre Hallis Mollen, não acreditava mais. Jocelyn passou os olhos pelo quarto, notando que sua senhora já estava em suas roupas de baixo, e então fez uma reverência, se dirigindo para as roupas em cima da cadeira, que ela iria escovar e dobrar.

                Queria que Robb saísse para que pudesse ter paz em sua solidão. Estar com Robb sem poder se apoiar nele era tortura. Mas sabia que ele não tinha nenhum conselho naquela noite, e não estava indo a lugar algum.

—Jocelyn, quando terminar, me encontre do quarto de Lady Karstark. –Disse Cordyra, sabendo que o quarto de Alys era apenas algumas portas por perto. Então saiu.

                Apesar de tudo, quando saiu, a senhora Stark fechou a porta com delicadeza atrás de si. Jocelyn e o rei Robb ficaram para trás, ele sentado em sua cadeira, inclinado para frente, e ela de pé, escovando o vestido da senhora, ambos observando a porta se fechar. Jocelyn desviou o olhar primeiro, e foi o suficiente para pegar a expressão no rosto do rei, como se visse o mundo se estilhaçar à sua frente. Era tão cru que Jocelyn desviou o olhar, constrangida.

                Então lembrou a si mesma que ele era o causador dos próprios males, e sua compaixão esfriou um tanto. Não era cega ou surda, como tinha de fingir várias vezes em seu trabalho, e tinha notado como as interações entre rei e rainha haviam ficado mais e mais distantes na marcha entre Cruzaboi e Cinzamarca. Também conseguia identificar o responsável; não era a senhora Cordyra que se esquivava do rei Robb, ou o olhava com frieza.

—Hal me disse que está treinando você. –O rei falou, olhando-a com curiosidade quando Jocelyn se virou para ver se ele estava mesmo falando com ela. –Para proteger Cordyra.

                Era estranho ouvir o nome de sua senhora sendo mencionado tão casualmente por seu marido. Ela sempre havia sido chamada de Senhora Stark, ou Senhora Cordyra. Agora, era chamada de Rainha. Ela não era nada disso para o rei, apenas o nome que a mãe escolhera para ela.

Jocelyn devia ter percebido que Hallis não conseguiria se manter calado sobre o treinamento, embora a rainha o houvesse pedido segredo.

—Sim, Vossa Graça. –Jocelyn confirmou, olhando-o com curiosidade. O senhor de Winterfell jamais havia prestado qualquer atenção nela, a não ser que fosse para perguntar sobre a senhora Cordyra. O contrário não era verdade; Jocelyn estava sempre prestando atenção ao rei. Os outros criados e mesmo os soldados do exército estavam sempre falando sobre ele como se falassem sobre um deus; quando o rei andava entre eles, para ver como iam as coisas, se apressavam em se ajoelharem, e seus olhos brilhavam de admiração. Jocelyn não desgostava do rei; apenas achava que a rainha era mais admirável. –A rainha pediu para que ele me treinasse.

                O rei assentiu, distraído.

—Cordyra é inteligente. –Ele disse, não como um elogio, mas apenas pontuando um fato. –Nenhum inimigo vai esperar que a aia dela seja uma guerreira.

                Jocelyn olhou para o rei com mais cuidado dessa vez. Havia o conhecido quando era apenas o rei de um fidalgo em Winterfell, e usava espadas de madeira com o meio-irmão no pátio, tinha o rosto macio como o rosto de uma criança. Embora as outras criadas morressem de amor por ele, e sempre se jogassem em seu caminho, o rei não havia dado atenção a nenhuma delas na época.

                O rei não era nada mais como aquele garoto. Jocelyn não sabia dizer se fora a morte do pai, o casamento com a senhora Cordyra ou o peso da coroa que causara a mudança, mas seu rosto era mais duro do que havia sido na época, seus olhos mais firmes e seus sorrisos mais escassos. Cordyra mudara com ele, como se fosse um membro do rei. O rosto em formato de coração ficara menos infantil, e os enormes olhos violeta haviam ficado mais escuros, e havia uma nova expressão neles; séria, sombria. Às vezes, como no bosque, com o Lorde Jast, parecia faminta.

                O rei havia acabado com ela; parecia não ter energia para além de algumas poucas palavras. Jocelyn não era sua conselheira, mas a rainha nunca havia negado suas palavras, então ela torceu para que o rei fosse feito do mesmo material, e ergueu a voz:

—Vossa Graça, qualquer ofensa que a rainha possa ter cometido, eu garanto, foi feita inconscientemente. –Jocelyn disse, embora seu coração estivesse acelerado pela sua própria ousadia.

                Esperou que o rei a rechaçasse, e a mandasse cuidar de sua própria vida. Ao invés disso, ele a olhou com curiosidade.

—Cordyra pensa que ainda está em Winterfell. –Ele diz. –Mas é rainha, e todos estão observando suas ações, que recaem sobre mim. A única ofensa dela é o quão inocente pode ser.

                Jocelyn, surpresa por ele ter se dado ao trabalho de responder, pensou nas ações da rainha; matando seus próprios inimigos para que vissem que ela era tão corajosa quanto o rei, acolhendo suas senhoras, andando como sua barriga cada vez maior pelo acampamento a pé para perguntar se soldados rasos precisavam de alguma coisa.

—A rainha não é inocente. –Jocelyn discordou. –Talvez não seja um de seus lordes, Vossa Graça. Mas tem treinado não apenas a mim, como também aos dragões. Eles conhecem uma dúzia de comandos agora. Além do mais, todos gostam dela. Os homens sempre vão assistir enquanto ela faz os dragões voarem, e a oferecem de tudo que têm.

                O rei concordou com a cabeça.

—Há mais nas guerras que dragões e homens. –Disse. –São os nossos inimigos que me preocupam, e ela não parece saber lidar com eles com a distância esperada.

                De repente, Jocelyn sabia qual a querela entre rei e rainha, e não sabia mais como justificar as ações de sua senhora. Quando a senhora Cordyra a levara até as masmorras de Correrrio para visitar Jaime Lannister, Jocelyn não soubera o que pensar. A senhora nunca havia falado nele, mas as vozes que vinham de dentro da sala se tratavam com alguma familiaridade. Em Winterfell, Jocelyn trabalhava na cozinha na época da visita real e estava muito ocupada com trabalho para dar uma olhada nos visitantes.

—Você também sabe. –O rei percebeu pela sua expressão. –O que ela foi fazer lá?

—Justiça. –Jocelyn respondeu imediatamente. –Ela queria saber do jovem senhor Stark, o menino.

—Bran. –Ele a corrigiu, segurando as mãos uma na outra, como se pensar no irmão o inquietasse. –Sabemos que foi o regicida. Eu não entendo, e ela não consegue explicar.

                Claro que não conseguia. Cordyra jamais elevaria as próprias qualidades. Mas Jocelyn o faria.

—A rainha é boa. –Ela insistiu, tão veemente que o rei tirou os olhos das mãos e a observou. Azul no azul. –Ela me disse que Lorde Stark sempre tirou a vida dos condenados com a própria espada, para não se esquecer da aparência da morte. Bem, como ela saberia da aparência do mau, se é boa?

                Ao invés de responder, Robb Stark ficou olhando para ela, por tanto tempo que Jocelyn começou a ficar constrangida.

—Jocelyn. –Ele disse o nome dela, como se experimentando o som. Jocelyn pensou que se ressentia menos dele naquele momento. –Acho que precisa de uma arma melhor que aquele machado de cozinha.


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