Filha de Gelo e Fogo escrita por Dafne Guedes


Capítulo 16
Fosso Cailin


Notas iniciais do capítulo

Capítulo curtinho, de forma inesperada, apenas para complementar. Estamos na reta final desta primeira parte!



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"Oh, I'm so far from home
I'm so far from home
So far from home

I'm sending a raven
With blood on its wings
Hoping it reaches you in time"

 

Cordyra dormiu a maior parte do caminho de volta ao Sul, com os braços doendo e o estômago revirando. Quando dormia, sonhava; em seus sonhos uma garota muito parecia com ela era obrigada a comer um coração cru de cavalo. Tinha uma enorme barriga à sua frente, e dava dentada atrás de dentada, rasgando o músculo duro com os dentes, e deixando que o sangue vermelho escorresse por seu queixo. No sonho, tinha olhos violeta, e cabelos prateados. Quando esse sonho ia embora, e ela achava que tinha acordado, via-se nas criptas de Winterfell, diante da estátua de seu tio. A cova não estava mais aberta, mas fechada e selada, o que significava que havia um corpo lá dentro. Então Winterfell pegava fogo, e o fogo começava lá embaixo, no escuro, onde uma bonita mulher cuja aparência lembrava a de Arya tocava fogo em uma coroa de flores azuis como aquelas de seu casamento.

                Acordava suando, e com o estômago doendo, respirando em arquejos.

                Ao menos suas pernas haviam se curado das assaduras que adquirira na viagem de ida. Porém, um novo martírio a havia acompanhado; sentia falta de Robb como sentiria de um membro perdido. Às vezes, virava-se no cavalo para apontar uma flor em cores que nunca tinha visto, ou comentar sobre o canto de um pássaro, e então percebia que ele não estava lá. Fora fácil deixar a saudade de lado quando estava com Jon, mas, uma vez que pegaram a estrada novamente, todo o seu corpo doía da necessidade por ele.

                No dia seguinte ao que recebera a Irmã Negra –Meistre Aemon dissera a ela que era uma boa espada, menor e mais fácil de ser manejada que Fogonegro, a espada há muito perdida da Casa Targaryen, provavelmente vendida a mercenários do outro lado do Mar Estreito –Hallis Mollen pusera os olhos na espada, e sua boca se abriu. Não foi o único; mesmo Jon, que recebera a espada ancestral da Casa Mormont, Garralonga, ficou impressionado com o gume, a ponta, o cabelo, o pomo da Irmã Negra. Cordyra não entendia de espadas, mas mesmo ela conseguia perceber que aquele não era um tipo comum; tinha uma lâmina escura de aço valiriano, e cortara a mão de Jocelyn apenas ao tocá-la. Os dragões pareciam gostar do aço; Aurae e Espectron rodeavam a espada o tempo todo que ela ficava no quarto, embora passassem a maior parte do tempo escondidos na barriga quente de Norte, que tomara o posto de sua guardiã oficial.

                Então, Hallis Mollen insistira que a espada precisava ser manejada. Cordyra se negara –explicara a ele que pretendia deixar que Robb usasse a espada em seu nome, ao menos enquanto Eddard Stark ainda manejava Gelo, e um dia passaria ao seu filho mais jovem, enquanto Gelo era dada ao mais velho, e continua-se uma velha tradição. Mas Hallis Mollen insistira. Estavam indo à guerra, e era mais que importante que ela pudesse se defender. Cordyra disse a ele que tinha uma adaga que fora presente de Robb, mas, segundo Hallis, uma adaga era uma arma de proximidade; o melhor mesmo era que seus inimigos jamais chegassem tão perto.

                Então Cordyra aceitou ser treinada.

                No primeiro dia, ainda em Castelo Negro, descobrira que mal era capaz de manter a espada erguida além de alguns minutos. O aço era pesado, embora a lâmina fosse delgada, e Cordyra jamais havia se dedicado a exercícios físicos que não a dança, a falcoaria e a equitação. Muitos dos irmãos negros haviam se juntado a ela no pátio para observar, mesmo o homem de armas de Castelo Negro, Sor Allister –um homem mal-encarado que nunca sorria se não fosse da desgraça de alguém. A maioria deles trocava sorrisos e gracejos e apostavam favores em sua derrota humilhante.

                Quando ela conseguiu segurar a lâmina de forma firme, usando proteções, Hallis investiu contra ela. Não foi uma investida agressiva, apenas partiu para cima dela com uma das espadas de treino da mão. Cordyra lembrou-se de Jon e Robb, e de seus inúmeros machucados, e se preparou para a pancada, levantando Irmã Negra acima da cabeça apenas para não parecer uma completa covarde.

                Ao invés disso, Irmã Negra ganhou vida em sua mão. Cordyra se virava ao sabor da espada, e seu corpo serpenteava como água ou fogo, como um rio sob uma infinidade de estrelas. O aço avançou para deter o avanço da madeira, e Cordyra teve de girar o braço para acompanhar o movimento. Houve um som estranho quando madeira e aço se encontraram, e um tumf alto quando a ponta da espada de treino caiu no chão, inerte.

                Hallis Mollen a encarou com surpresa, mas investiu de novo mesmo assim. Cordyra separou um pouco as pernas por debaixo do vestido e, mais uma vez, Irmã Negra se ergueu para aparar os golpes duplos que viram. Daquela vez, a espada de treino ficou completamente inutilizada.

                No fim do dia, e com mais oito espadas arrasadas, sor Allister disse a eles que parassem de acabar com o equipamento de treino, e foram dispensados do pátio. A essa altura já haviam dezenas de irmãos juramentados olhando das sacadas e das escadas. Cordyra jamais tinha sido fitada por tantas pessoas. Fugindo do pátio, ela serpenteou entre a multidão, embora fosse uma multidão diferente em relação a algumas horas antes — agora todos pareciam dispostos a lhe oferecer um sorriso, ou um meneio de cabeça em aprovação, ou uma piscadela.

Ela murmurou os agradecimentos e ficou imensamente aliviada quando chegou a Jon e Jocelyn. Jon completamente contido; Jocelyn com olhos arregalados.

—Senhora! —Disse ela, com admiração, assim que Cordyra se aproximou. Ela parecia muito mais séria do que o normal. — O que foi aquilo?

                Mas Cordyra olhava para Jon ao invés de Jocelyn.

—Não fui eu. –Disse. –A espada. Foi ela.

                Uma vez que o fervor da batalha fora embora, a ocorreu que devia estar assustada; não era apenas que a espada fazia os movimentos; era que, com a espada na mão, seu corpo parecia conhecer a dança da luta, saber para onde ir, e como estocar. Ela achava que poderia ter matado um homem com aquele tipo de poder.

—Eu pensei que Robb talvez tivesse treinado você. –Jon disse, analisando-a, considerando se acreditava. –Ele era bom o suficiente para isso. –Cordyra apenas fez que não com a cabeça enquanto ele falava, e Jon deu uma pausa, então disse: -Diga para outra pessoa manejar a espada. Sam. Vamos a Sam.

                O amigo de Jon havia parecido assustado demais até para tocar na espada, mas o fez. Jon investiu contra ele, e o garoto levantou Irmã Negra no ar, mas ela ficou apenas lá, estática, enquanto o irmão juramentado era agredido por todos os lados. No fim, decidiram que talvez ela apenas respondesse a sangue Targaryen.

                No resto do tempo que passaram em Castelo Negro, ela esteve com Jon. Os dragões imediatamente responderam à presença dele; Cordyra achava que os animais sentiam o quanto eram próximos, pois Espectron passou quase todo o tempo tentando subir nos ombros de Jon, ou enroscado em seus tornozelos. Era um tipo de paz; ela seguia Jon pelo castelo enquanto ele fazia suas atribulações, que eram muitas. Quando ela não podia segui-lo, Hallis Mollen insistia para que lutassem.

                Mesmo com isso, durante toda a viagem, quando montavam acampamento, Hallis a fazia treinar. Primeiro, disse ele, era preciso que ela se sentisse confortável segurando a espada; então ela a mantinha às mãos por vários minutos, testando seu peso, sentindo os músculos de seu braço se revoltarem e tremerem, mas Hallis não a deixava apoiar a segunda mão. “Essa é uma espada leve, de uma única mão”, disse ele, “não importa quantas vezes a senhora viu Gelo ser empunhada com ambas as mãos de senhor seu tio”.

                Mas mesmo Hallis parecia nervoso com o olhar desconfiado que Norte mantinha sobre ele quando os dois batiam espadas. Às vezes, mesmo Jocelyn participava, embora usasse um pequeno machado de madeira em vez de armas de guerra.

                De noite, treinava. De manhã, acordava com fortes dores, e só conseguia montar seu castrado preto depois de vomitar o café-da-manhã, então Jocelyn a oferecia pão puro para comer, e este ela conseguia manter no estômago. Mesmos seus seios pareciam doloridos e sensíveis do treino de espadas.

                Benfred Tallhart os deixou na metade do caminho, e cavalgou para a Praça de Torrhen, sede de sua Casa, onde o seu pai mandou que permanecesse. Os outros quatro: Quent, Hallis, Jocelyn e ela, além dos dois dragões e o lobo, seguiram a viagem sem mais imprevistos. O povo do Norte tinha memória, e lembravam-se do inverno anterior, quando apenas a gestão dos Stark os mantivera longe da fome da morte. Portanto, foram recebidos nas estalagens, quando elas começaram a surgir, para debaixo da Última Lareira, e da altura do Forte do Pavor, embora nessas ocasiões os estalajadeiros ficassem todos nervosos com a presença dos dragões, e cobrassem mais caro para acomodá-los.

                “Um dragão por dois dragões, senhora, nada mais justo”, disse um velho com olhos brancos de cegueira quando seu filho disse o que estavam acomodando. Sendo assim, Cordyra pagara o dragão de ouro, mesmo quando Quent dissera que era uma extorsão.  

                Mesmo os camponeses estavam cientes da guerra vindoura. Quando reconheciam o lobo no escudo de Hallis, e as roupas finas de Cordyra, os mais corajosos viravam-se para eles, sentados à mesa, na hora das refeições.

—É verdade que o Jovem Lobo foi ao Sul vingar seu pai? –Perguntou um lenhador, com roupas quentes, botas pesadas e um grande machado deitado em cima da mesa onde fazia a refeição, a reconhecendo pela presença de Norte ao seu lado. A estalajadeira do Beijo de Irrya não havia se importado com os animais. Havia um grande grupo de homens com o lenhador, que se inclinaram interessados quando ele fez a pergunta. Ela demorou um segundo para perceber que o “Jovem Lobo” era Robb, e sentiu um arroubo de orgulho.

                Cordyra se virara para Hallis, esperando que ele respondesse, mas encontrou os olhos castanhos do guarda olhando para ela de volta, e então lembrou-se que era Senhora de Winterfell e responsável por aquela guarnição.

—O jovem senhor Stark levou tropas nortenhas para o Sul, de forma a pressionar os Lannister a devolverem Lorde Eddard Stark e suas duas filhas. –Respondeu Cordyra. –Não há vingança.

                Os homens pareceram satisfeitos. No Sul podiam se excitar com guerras e batalhas, mas o Norte estava preocupado com o Inverno, e as colheitas que tinham de serem feitas até lá. Brigas entre lordes e intrigas da corte eram realidades muito distantes deles. Mesmo assim, os homens continuaram discutindo, e Cordyra lembrou-se de Castelo Negro.

                Lá, na sede da Patrulha da Noite, as notícias também chegavam. Na Muralha, os homens vinham de todos os lugares, do Sul ao Norte, e não tinham amores em especial pelos Stark, a não ser por aqueles nascidos depois de Fosso Cailin. Portanto, não tinham vergonha em discutir a morte do rei, e o papel que o lorde Eddard havia tido nessa morte. Cordyra havia virado o rosto, e vira Jon fazer o mesmo. Ela não precisava dizer a ele que o pai não era culpado; qualquer um que o conhecesse parecia ter essa consciência.

—Robb vai trazê-lo de volta. –Cordyra disse a Jon numa das noites que passou em sua companhia.

—Robb sempre foi capaz de todas as coisas. –Jon concordou, mas não olhou para ela.

                Se despedir de Jon havia sido difícil o suficiente, e a cada passo que eles davam para longe da Muralha, e de Winterfell, onde não haviam passado, ela percebia que começavam a se enveredar pelas terras do Sul, onde a mata de lobos virara pântanos, de terreno lamacento e árvores mais baixas.

—Fosso Cailin está logo à frente, senhora. –Disse Hallis Mollen depois de mais de dez dias de viagem quase interrupta.

O terreno sob os cascos dos cavalos era mole e úmido. Cedia devagar enquanto iam passando por fumarentos fogos de turfa, filas de cavalos e carroças carregadas de biscoitos e carne de vaca salgada. Em um afloramento rochoso mais alto que o terreno circundante, passaram por um pavilhão senhorial com paredes de lona pesada. Cordyra reconheceu o estandarte, o alce macho dos Hornwood, castanho no seu campo laranja-escuro.

Logo depois, por entre a névoa, vislumbrou as muralhas e torres de Fosso Cailin... ou o que restava delas. Imensos blocos de basalto negro, cada um deles tão grande como uma cabana de caseiro, jaziam espalhados e tombados como os blocos de madeira de uma criança, meio enfiados no solo mole pantanoso. Nada mais restava de uma muralha exterior que em tempos passados se erguera tão alta como a de Winterfell. A fortaleza de madeira tinha desaparecido por completo, apodrecida há mil anos, sem sequer deixar uma viga para marcar o local onde estivera. Tudo o que restava do grande castro dos Primeiros Homens eram três torres... três que antes tinham sido vinte, caso seja possível crer nos contadores de histórias

A Torre do Portão parecia em bastante bom estado, e até podia se vangloriar de alguns metros de muralha de ambos os lados. A Torre do Bêbado, no pântano, onde outrora se encontravam as muralhas sul e oeste, inclinava-se como um homem empanturrado de vinho prestes a vomitar na sarjeta. E a alta e esguia Torre dos Filhos, onde segundo a lenda os filhos da floresta tinham um dia convocado seus deuses sem nome para enviar o martelo das águas, tinha perdido metade de sua coroa. Era como se algum grande animal tivesse dado uma dentada nas ameias ao longo do topo da torre e cuspido o cascalho para o pântano. As três torres estavam verdes de musgo. Uma árvore crescia entre as pedras do lado norte da Torre do Portão, com ramos retorcidos ornados com mantos viscosos e brancos de pele-de-fantasma. Fosso Cailin era a entrada do Norte, e jamais fora tomada de assalto.

Tinham sido desfraldados estandartes nas três torres. O resplendor dos Karstark esvoaçava da Torre do Bêbado sob o lobo gigante; na Torre das Crianças, era o gigante com as correntes quebradas de Grande-Jon. Mas na Torre do Portão a bandeira dos Stark voava sozinha. Um cavaleiro esperava no portão, e avançou ao encontro deles quando foram se aproximando.

—Alto lá! –Gritou. –Quem vem aí?

                Hallis Mollen sorria.

—Ora, Olyvar! –Gritou de volta. –Não conhece sua senhora e seus dragões?

                Cordyra não tinha tempo para brincadeiras; ela avançou em seu cavalo na frente dos outros. Olyvar era um doa rapazes que Robb havia treinado em Winterfell quando o seu tio levara grande parte da guarda para o sul. Agora, aqueles homens estavam mortos, e estes também estariam se não ganhassem a guerra.

—Onde está Robb? –Perguntou ela, de supetão, esquecendo-se mesmo de usar o título, o que ela retratou. –O senhor Stark, não vejo suas tropas.

                Olyvar não perdeu tempo enquanto os dois andavam para dentro do fosso. O salão era de pedra escura, de teto alto e cheio de correntes de ar, estava repleto de fumo e tinha as paredes de pedra enodoadas com enormes manchas de líquens de cor clara. Um fogo de turfa ardia com pouca intensidade numa lareira enegrecida por fogos mais quentes de anos anteriores. Uma enorme mesa de pedra cinzelada enchia o aposento, como fazia há séculos.

—Já foram para o Sul, senhora. Marcham na direção de Correrrio. –Contou-lhe. –O lorde Stark me deixou para trás, junto com uma guarnição, para levar a senhora ao seu encontro. A guerra tomou grandes proporções aqui nas Terras Fluviais, e há batedores de exércitos de ambos os lados arrumando confusão pelo caminho. Talvez o encontremos nas Gêmeas, mas o mais provável é que, quando isso acontecer, já tenha descido.

—Somos um grupo menor de cavaleiros e, portanto, mais rápido que um exército. –Hallis fez notar.

—Nos ponha em marcha, então. –Pediu Cordyra, e foi-se para dentro, onde teria descanso antes de voltar à viagem.


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Notas finais do capítulo

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