Filha de Gelo e Fogo escrita por Dafne Guedes


Capítulo 15
A Patrulha da Noite.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/809218/chapter/15

"Let love conquer your mind
Warrior, warrior
Just reach out for the light
Warrior, warrior
I am a warrior-ior-ior-ior
Warrior, warrior

And I hold a sword to guide me
I'm fighting my way"

 

Jocelyn jantou ao lado da senhora Cordyra pela primeira vez. Em Castelo Negro, todos comiam juntos. Hallis Mollen sentou-se à sua direita, e Cordyra à esquerda. Do outro lado de Cordyra sentava-se o seu primo, Jon Snow, e eles conversaram durante todo o tempo do jantar, mesmo que os amigos dele claramente estivessem ansiosos para fazer parte da conversa. Primeiro, a senhora Cordyra contou ao senhor Snow da recuperação do jovem senhor Bran, e o dia a dia de Winterfell quando ele foi embora. Seus amigos claramente não tinham chance contra a jovem senhora de Winterfell; o garoto Snow bebia cada palavra que ela dizia e tinha olhos apenas para ela. Havia uma solidão assombrada naquele olhar, um desejo quase além da compreensão por algo que nem mesmo o próprio Jon entendia.

                Mas depois ela baixou a voz a um sussurro, e os dois primos conversaram baixo demais mesmo para Jocelyn ouvir. Mas podia imaginar sobre o que falavam: a guerra no Sul. O senhor Stark, que estava sendo acusado de traição. O irmão da senhora Catelyn, ilhado em Correrrio, cercado por tropas Lannister. Jocelyn ouvia o suficiente das conversas em Winterfell para conseguir conjecturar.

                Jocelyn afiou as orelhas enquanto colocava colher após colher de sopa de alho na boca. Havia também um pão duro e seco, e mel para deixa-lo mais molhado. Para beber, havia água ou cerveja preta, e Jocelyn aceitou a segunda, enquanto vinho foi servido à sua senhora. Ela não se importou; pelo que sabia, a senhora Cordyra merecia beber apenas o que havia de melhor entre os homens.

—Sou Sam. Samwell Tarly, na verdade. –Uma voz disse à sua direta. –Não temos muitas garotas por aqui.

                Ela virou os olhos para ele.

—Sou criada da senhora Cordyra. –Ela fez um gesto para o lado. –Prima de Jon Snow.

—Jon não fala muito da família. –Disse o rapaz gordo, de bochechas vermelhas e olhos redondos à sua frente. Havia uma maciez familiar nele; o tipo de rapaz que tinha de ter sido criado em um castelo, com muita comida e muitos criados. Os jovens senhores de Winterfell também tinha aquele esplendor de riqueza, mas ela tentava não pensar neles. –Disse-me que tinha uma meia-irmã de quem era mais próximo, e outra de quem nunca fala. Além dos irmãos, desses ele fala com mais frequência. Robb, Bran e Rickon. E a Bela Cordyra, ele sempre diz.

                Jocelyn olhou o rapaz de soslaio. Devia ser amigo do Jon Snow, mas ela mesma não queria um amigo que entregasse todos os seus segredos assim, de bandeja. Mas o rapaz parecia apenas feliz em poder falar do outro, de um jeito que era tão cativante quanto exasperador.

—Nunca vi Jon tão soturno como no dia que chegou o aviso do casamento. Acho que ele gostaria de ter estado lá; já falou que, quando fosse um Irmão Juramentado, visitaria seus irmãos, e eles os visitariam de volta. Mas então a guerra começou. Não que nós tomemos partido, porque não tomamos, sabe, a Patrulha. –O gorducho começou a falar. Parecia nervoso, mas isso só o fazia continuar falando, e falando. –A nossa guerra é aqui, na Muralha. Especialmente nesses tempos, em que criaturas...

                Ele parou abruptamente de falar. Mas agora Jocelyn estava prestando atenção. Não tivera amas como os jovens senhores, que a contasse histórias assustadoras para dormir, nem falasse de cavaleiros e donzelas. Mas crescera nas cozinhas, onde as outras crianças ouviam histórias de suas mães, e as repassavam. Nabo conhecia um lugar onde você podia subir pelas paredes até o lugar exato onde a Velha Ama contava histórias aos jovens Stark, e depois recontava todas para suas colegas.

                Nabo estava morta agora, para os dragões estarem vivos, mas Jocelyn podia se lembrar das histórias.

—Que criaturas?

                O garoto hesitou por um segundo.

—Bem, não é segredo. –Disse Sam. Mesmo assim, Jocelyn notou, ele estava falando em voz baixa. –Há algumas semanas trouxemos dois cadáveres aqui para dentro. Eles se levantaram durante a noite, e atacaram o Senhor Comandante Mormont. Jon e Fantasma os mataram. –Ele se atrapalhou. –Digo, já estavam mortos, mas Jon tocou fogo neles, e não voltaram a se levantar.

                Jocelyn ensaiou um riso, mas então olhou de lado e a risada virou farinha em sua boca. Havia apenas algumas voltas de lua antes testemunhado o nascimento de três dragões. Criaturas que se julgavam extintas, isso por aqueles que acreditavam que já haviam existido para começo de conversa.

                Jocelyn era uma criada, que crescera sem educação formal, e nascera bastarda. Não era idiota; podia dizer, apenas pela forma como o tal Samwell falava, que ele era bem-nascido. Não tinha conhecimentos o suficiente para questioná-lo, mas o olhou com desconfiança.

—Fala sério? –Perguntou.

                Ele assentiu, rapidamente, como se tivesse medo que ela duvidasse de sua palavra.

—Jon vai contar à sua senhora. –Garantiu. –Pode perguntar a ela.

                Mas, ao fim da refeição, Cordyra subiu com o primo para falar com o meistre que viera procurar, e Jocelyn ficou, enquanto o senhor Tallhart conversava com Quent, Hallis e alguns dos irmãos juramentados sobre espadas e manobras de batalha que em nada a interessavam. Sendo assim, Jocelyn foi para o lado de fora onde, no pátio, dois lobos gigantes brincavam um com o outro, investindo nas gargantas, os dentes se fechando a poucos centímetros das orelhas, em um tipo de intimidade que deixou Jocelyn com inveja.

                No frio, ela pensou no dia do casamento de sua senhora. Também havia neve naquela manhã, mas não fora por isso que Jocelyn deixara de descer ao Bosque Sagrado. Também não fora porque, tendo nascido no Sul, tinha um carinho em particular pelos Sete de Westeros, e não pelos deuses dos Primeiros Homens. Em seu vestido branco, contrastando com a pesada capa preta da Casa Targaryen, Cordyra havia parecido tão bela que Jocelyn tinha vontade de vomitar. Não foi capaz de se obrigar a comparecer à cerimônia, ou ao banquete.

                No dia seguinte, porém, teve de arcar com os seus deveres. Esperara na porta do novo quarto do casal até que alguém tocasse a sineta que anunciava que estavam acordados e prontos para serem levados para baixo. Quando isso aconteceu, Jocelyn foi obrigada a lidar com tudo no quarto, que havia sido planejado pelo próprio jovem senhor para eles. A bandeira Stark sobre a cama, os archotes apagados nas paredes, e a grande cama, onde a senhora ainda estava deitada.

                O próprio jovem senhor já estava de pé, meio vestido em couro, e colocando mais camadas de tecido para se aquecer do lado de fora. Ele olhara para Jocelyn apenas brevemente quando ela entrou para ajudar a senhora Cordyra a se vestir, mas seu rosto inteiro brilhava; os olhos jamais haviam sido tão azuis, e havia um despenteado em seu cabelo que deixaria outra mulher corada.

                O pior é que o rosto da senhora Cordyra não era diferente. Mesmo quando o senhor saiu do quarto, Jocelyn não perguntou a Cordyra como tinha passado sua primeira noite como mulher casada, e nem a jovem senhora a ofereceu nenhuma informação sobre o assunto. Mesmo assim, Jocelyn podia ver; haviam vergões avermelhados, rastros de beijos apaixonados, por todo o pescoço dela, e uma nova languidez em seu modo de se portar.

                Quando soube que estariam indo ao Norte ao invés de descendo ao Sul com o senhor e seus vassalos, Jocelyn sentiu tanto alívio que poderia tê-la abraçado. Teria alguns dias a mais, para se acostumar com a situação, ou, ao menos, para ser capaz de controlar sua expressão perto do novo casal.

                Embora pensativa, estava também atenta quando Cordyra saiu da torre onde ficava a sala de Meistre Aemon. O velho estava na sala comum com todos os outros na hora da refeição, mas era tão pequeno e magro que Jocelyn mal o notara até que se levantasse e acompanhasse os dois primos à própria sala. Quando a senhora Cordyra saiu de lá, foi sozinha, e não acompanhada de Jon Snow. Também trazia uma lâmina nas mãos, a segurando de forma desajeitada, como quem não sabia o que fazer com o objeto.

                Era uma bela lâmina, mesmo um leigo poderia notar. Levava uma grande pedra vermelha encrustada em seu cabo, e tinha um belo pomo dourado. A senhora Cordyra a segurava com a ponta dos dedos, como se tivesse medo de que a lâmina a mordesse. Quando se aproximou de Jocelyn, notou o olhar da criada, e virou a espada na luz, para que pudesse vê-la melhor.

—É a espada ancestral da Casa Targaryen. –Disse, numa voz mais cansada que aquela que usou para conversar com o primo na hora da refeição. –Tive esperanças de que Meistre Aemon fosse me dizer que não havia chances que eu fosse uma Targaryen; que outros Velaryon já haviam montado dragões. Não sei porque isso importa, mas é difícil crescer crendo em algo e descobrir que nunca foi verdade, nem por um momento. Meistre Aemon me desenganou. Sabia sobre mim, na verdade; Rhaegar o havia contado, o meistre era seu confidente. Ele era um dos poucos que sabia, o rei teria matado Rhaella por isso. –Ela balançou a cabeça, o olhar na lâmina. –Ele tinha intenção de dar essa espada a Rhaegar. Brynden Rivers a trouxe para cá quando foi juramentado à Patrulha, e ninguém nunca a levou de volta, mas Aemon tinha esperanças de que Rhaegar fosse digno dela, a Irmã Negra. Então Rhaegar morreu. –A jovem senhora tamborilou os dedos na lâmina. –Me desculpe. Não devia encher seus ouvidos.

—Encha-os, minha senhora. –Disse Jocelyn, dando um passo à frente e segurando as mãos de sua senhora, sem se importar com a lâmina. –É para isso que estou aqui.

                Mas, ao invés de responder, a senhora Cordyra segurou sua mão de volta e a colocou entre as duas, na altura dos olhos. Jocelyn focou as mãos delas, se segurando; a de Cordyra, pálida ao ponto de ser quase translúcida, com veias arroxeadas e unhas ovais, de pele macia. A sua, mais escura, com veias verdes, e um corte na palma cheia de calosidades, que sangrava.

—Aço valiriano. –Cordyra tirou o xale que envolvia o próprio pescoço e o amarrou ao redor da mão de Jocelyn com delicada firmeza. –Precisamos ter cuidado com a lâmina; está guardada há muito tempo, e faminta de sangue.

                Jocelyn não sentia o corte; o mundo se resumia ao toque de Cordyra, a guiando gentilmente de volta à Torre do Rei, onde estavam alocadas.

—O meistre respondeu suas perguntas? –Jocelyn insistiu.

                A senhora Cordyra torceu a boca.

—Não da forma como eu esperava. –Ela abriu a porta de madeira, cujas dobradiças de metal rangeram para deixar as duas entrarem. Cordyra a empurrou para dentro, e deixou Jocelyn para um segundo para remexer em sua arca de roupas, onde, além de vestidos, capas e perfumes, ele havia também empacotado ataduras, unguentos, e linha de costura. –Diz ele que dragões são criaturas magníficas, e inteligentes. Também disse que, da primeira vez que os homens os domaram, foram usados para a guerra e a destruição. Na verdade, chegou a dizer que nunca houve uma máquina de destruição que fosse tão eficaz. Não houve paz quando os dragões foram embora, mas havia ao menos equidade entre os lados.

                Jocelyn não havia pensado assim. Desde o primeiro momento, eles eram assustadores, é claro, mas por serem impossíveis, mágicos, inexplicáveis. Quatro dragões nascidos de pedra para uma garota de quinze anos, enfurnada no fim do mundo conhecido.

—O que a senhora acha disso, minha senhora? –Jocelyn não tinha estudo o suficiente para pensar com profundeza sobre as palavras de um meistre, mas a senhora Cordyra era estudada.

                A senhora Cordyra olhou bem para ela.

—Os homens lutavam antes dos dragões, e continuarão a lutar depois. –Afirmou. –Gostaria de dizer que meus dragões não serão armas de destruição, mas se eu pudesse usá-los para fazer Robb voltar para casa mais cedo, eu o faria. Nem que para isso precisasse queimar todos os inimigos dele. –Depois de dizer as palavras, os seus ombros murcharam um pouco, como se a força houvesse sido drenada dela. A senhora Cordyra enrolou sua mão cortada em ataduras, mas a espada ainda brilhava sanguinolenta em cima da cama onde fora largada. Quando falou novamente, não olhou para Jocelyn, então foi como se falasse sozinha. –Meistre Luwin acha que os dragões trazem a magia de volta ao mundo. Robb acha que sim, e agora Jon disse algo que me fez concordar. Disse ele que os mortos se levantam durante a noite.

                Os arrepios subiram pelo braço de Jocelyn como um milhão de aranhas.

—Outro patrulheiro me contou. –Admitiu, trazendo a mão enfaixada de volta para si mesma. –Seu primo os matou.

—Jon sempre esteve destinado a grandes feitos. –A senhora Cordyra disse, sem se impressionar. –Apenas me pergunto: os dragões trazem a magia de volta, ou o vento frio soprando do Norte e trazendo os mortos à vida fizeram com que os ovos rachassem?

                Aquilo Jocelyn era capaz de entender.

—Pensa que os dragões se levantam para impedir os mortos.

                A senhora pareceu ligeiramente encabulada.

—Sei que a Longa Noite é apenas uma história. –Disse. –Theon dizia que não se pode confiar no que uma mulher diz quando lhe oferece o peito. Mas Jon não é insensato, nem o Comandante Mormont parece ser, então não podem ser mentiras. Quando fomos embora de Winterfell, Bran insistia que estávamos marchando para o lado errado; mas, como foi a selvagem quem o disse isso, nem Meistre Luwin nem Robb o deram atenção. Eu também não, claro. Mas é verdade que os selvagens têm atravessado a Muralha mais que nunca; centenas morrem apenas na tentativa. Vi os números, nos relatórios dos vassalos nessas últimas luas. Do que fogem? Osha disse que do frio branco.

—Do Inverno, talvez. –Jocelyn sugeriu. Era frio o suficiente ali em cima, e ainda era apenas o fim do Verão. Suas luvas tinham cristais de gelo na ponta, e ela cobrira o nariz com um lenço para que não caísse.

                Cordyra a olhou com o canto dos olhos. Naquela luz, pareciam ametistas translúcidas, embora ela soubesse que podiam ser mais escuros.

—Meistre Aemon me disse que o dragão tem três cabeças. –Ela sacudiu os cabelos nas costas, de forma que as tranças balançaram. –É uma profecia, mas ele apenas falará sobre ela quando eu voltar da guerra.

—São quatro dragões. –Jocelyn apontou.

—Os dragões somos nós, os Targaryen. Tenho dois meios-irmãos exilados do outro lado do mar estreito. Um irmão, Viserys, e uma irmã, Daenerys. –O sorriso dela foi amargo. –Me pergunto se nas profecias do meistre Aemon um dos dragões era meio-lobo.

                A jovem senhora parecia atormentada, e flexionava as mãos, como se desejasse ser capaz de fazer algo com elas. Jocelyn teve vontade de segurar a cabeça dela no colo, e esfregar seus cabelos e massagear seus ombros. Então a senhora Cordyra murmurou para si mesma: “preciso voltar para Robb”, e foi como se jogasse um balde de água fria sobre a cabeça de Jocelyn.

—Logo estaremos de volta, senhora. –Jocelyn disse, rígida como se houvesse levado uma bofetada. –O senhor Stark ouvirá falar de tudo.

                A senhora sorriu, e Jocelyn quase se desfez. Uma vez alguém a havia dito que os valirianos haviam se parecido com deuses. Ela podia ver isso na senhora Cordyra; desde os cabelos, aos olhos, então em seu sorriso. Ela concordou com um meneio de cabeça e disse:

—Robb vai pôr um fim em tudo isso.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Filha de Gelo e Fogo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.