Filha de Gelo e Fogo escrita por Dafne Guedes


Capítulo 14
A Muralha


Notas iniciais do capítulo

Agora vamos nos separar um pouco de Robb para encontrar com Jon! Boa leitura!
Pessoal que está acompanhando, fiz algumas modificações nos capítulos, e a partir de agora todos terão uma música o acompanhando, como geralmente faço em minhas fanfics.
A música desse capítulo é Gracious, de Ben Howard.



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"'Cause you said ours were the lighthouse towers
The sand upon that place
Darling I'll grow weary, happy still
With just the memory of your face

Gracious goes the ghost of you
And I will never forget the plans and the
Silhouettes you drew here and
Gracious goes the ghost of you
My dear"

 

A alvorada vermelha surgia no céu, tingindo-o de escarlate, quando Robb e seus vassalos se reuniram no pátio para a marcha ao Sul. Estandartes estavam levantados, e flâmulas tremulavam altas no céu contando a história de uma dezena de Casas nortenhas. Cordyra tinha o menor grupo; ela, Jocelyn, Hallis Mollen, Quent, o guarda, e Benfred Tallhart, herdeiro de Helman Tallhart e um velho amigo nas brincadeiras de infância, iriam ao Norte, enquanto o resto da tropa seguia para o Sul.

                Naturalmente, Cordyra estava levando Norte com ela. Hesitara em levar os dragões –eles não gostavam muito do frio, e quando mais se subia, mais frio e úmido tendia a ficar. Mas Robb insistira, tanto pela segurança quanto para reafirmar a meistre Aemon que ela era de sua família. Cordélia tinha grandes expectativas sobre o meistre, e igual medo de que ele fosse desapontá-la.

                Não levava todos os quatro dragões, porém. Ocorreu a ela que os vassalos tiravam, suas forças dos animais, então disse a Robb que levasse dois deles; o maior, Baelon, que já soltava fogo, e era o que voava mais alto entre eles, e a menor, Meleyna. Espectron, e seu tom branco-neve seria estrategicamente interessante na Muralha, e ela levaria Aurae com ela –tanto porque soltava fogo quanto porque gostava de se encolher no seu peito da forma como Bran costumava fazer.

                Além disso, quando os ovos haviam rachado e os dragões deles saído, Robb parecera hesitante sobre os animais, até mesmo evitando-os. Isso não era mais verdadeiro. Não se incomodava quando Meleyna voava sob suas pernas, ou quando Espectron pousava bem em cima de sua cabeça. Uma vez, olhando o mais claro dos dragões, ele dissera a ela:

—Espectron me faz pensar em Jon e em Fantasma.

                Ao que Cordyra respondera.

—Foi neles que pensei ao nomeá-lo.

                E Robb sorriu, porque, em se tratando de Jon, o coração deles bateria sempre no mesmo ritmo.

                Bran e Meistre Luwin eram os únicos no portão naquele alvorecer. Bran montava em Dançarina, atado pelas pernas, e ambos se enrolavam em mantos quentes.

— Você é agora senhor de Winterfell - disse-lhe Robb. Estava montado num hirsuto garanhão cinzento, com o escudo pendurado no seu flanco; madeira reforçada a ferro, branca e cinzenta, com o desenho de uma cabeça de um lobo gigante a rosnar. O irmão de Bran usava cota de malha cinza sobre couros branqueados, uma espada e um punhal à cintura, um manto debruado de pele sobre os ombros. Baelon e Meleyna iam junto a ele, voando baixo sobre sua cabeça. - Você tem de ocupar o meu lugar, como ocupei o do nosso pai, até regressarmos.

— Eu sei - respondeu Bran em tom infeliz.

— Escute os conselhos de Meistre Luwin e tome conta de Rickon. Diga a ele que volto assim que a luta acabar.

Rickon recusara-se a descer. Estava lá em cima, em seu quarto, de olhos vermelhos e rebelde. Se recusara a ver Cordyra. Agora que ela dormia na cama com Robb, não podia ter Rickon em seu quarto, e o caçula se ressentia disso também. Nas duas noites antes de partir, ela tentara passar o começo da noite na cama com ele, enquanto ele pegava no sono, mas o mais novo dos Stark apenas ficara mais irritado com a proposta.

A sua cama marital, por outro lado, era deveras agitada para uma criança. Ela e Robb rolavam durante a maior parte da solte, solvendo beijos nas peles um do outro, e suspirando nos ouvidos. Quando saia à luz de manhã, ela se perguntava se haveria alguma coisa diferente em seu rosto, que denunciasse que não era mais uma donzela. Algum resplendor, talvez. Mas ninguém a achara diferente, exceto Jocelyn. A jovem continuava com a expressão amuada que adquirira no dia do casamento. Houve um dia em que Cordyra precisou questioná-la.

—Jocelyn. –Chamou de manhã quando a criada apareceu para vestir seu espartilho. –Se não quiser ir ao Sul, diga-me e arrumarei outra criada para me acompanhar.

                Jocelyn abriu para ela seus impressionantes olhos azuis e respondeu com firmeza inesperada:

—Vou aonde minha senhora for. –E se pôs a atar os nós de seu vestido.

                De manhã, olhando para o rosto de Jocelyn, Cordyra se sentiu grata que ela não houvesse desertado.

—Eu lhe disse - Bran respondeu à pergunta de Robb. - Ele diz que nunca ninguém regressa.

— Não pode ser um bebê para sempre. É um Stark, e tem quase quatro anos - Robb suspirou. - Bem, nossa mãe estará em casa em breve. E eu trarei nosso pai, prometo.

Deu meia-volta com o cavalo e afastou-se a trote. Vento Cinzento o seguiu, saltitando ao lado do cavalo de guerra, esbelto e ligeiro. Huggin, um dos guardas, atravessou o portão à frente da coluna, transportando a ondulante bandeira branca da Casa Stark no topo de um grande poste de freixo cinzento. Theon Greyjoy e Grande-Jon puseram-se ao lado de Robb, e seus cavaleiros formaram uma coluna dupla atrás deles, com lanças de ponta de aço brilhando ao sol.

Do lado de fora da muralha, um rugido se ergueu quando o grupo passou pelos portões. Centenas de habitantes da Vila haviam se reunido para saudá-los à passagem, e também para dar uma olhada nos dragões. As notícias haviam corrido rapidamente, ao menor no Norte. Cordyra acompanhava Robb ao lado de seu castrado negro, e tanto Norte quando Lobo cinzento iam ao lado deles, os dragões voando acima. Cordyra perdera a noção do quão grandes eles estavam ficando; acompanhavam o trote dos cavalos sem problemas, com naturalidade. Tanto os lobos quanto os dragões.

Robb acenou, sorriu e pareceu, naquele momento, ao mesmo tempo com o Robb Senhor e o Robb Rapaz. Era um rosto conhecido na Vila; havia passado a infância indo e vindo com seu pai, e devia parecer natural ao povo que ele agora fosse seu senhor. Mas também tinha aquela nova austeridade que lhe caia como uma capa quente; escondia as formas verdadeiras, mas o mantinha vivo.

O grupo foi junto até a Estrada do Rei. Construída muito tempo atrás pelo Rei Jaehaerys, o Conciliador. Neto de Aegon, o Conquistador, aquele rei herdara um reino quebrado pelo sadismo de Maegor, o Cruel, e o tranformara numa nação unida sob a mesma bandeira; a bandeira Targaryen. Aquele era o ponto de separação, onde Cordyra subiria em direção à Muralha, e Robb desceria a estrada até Fosso Cailin. Os vassalos passaram por ela, beijando sua mão e fazendo reverências, mas Robb estava rígido como uma pilastra, e também inexpressivo.

Eles haviam trocado despedidas energéticas naquela manhã, enquanto o sol ainda nem havia nascido. Ele se deitara sobre ela, e depois sob ela. Prometera que seria cuidadoso, e ela fizera a ele as mesmas promessas. Mas, então, na hora da despedida verdadeira, eles estavam fazendo papel de senhores de Winterfell, e ela não podia chorar, da mesma forma como ele não poderia limpar suas lágrimas.

                Portanto, ele puxou as rédeas do cavalo para perto, e apertou sua mão. Então deu dois tapinhas com os dedos. Sentirei saudade, dizia a batida. Ela respondeu no mesmo ritmo.

—Meu senhor, que a sua viagem seja segura, e a luta ganha. –Desejou.

                Robb aproximou seu próprio cavalo de guerra, maior que o dela, e beijou sua mão.

—Minha senhora, que não demore a estar novamente ao meu lado.

                Tudo teria funcionado perfeitamente de acordo com o plano, se Vento Cinzento e Norte não houvessem atrapalhado. Vento Cinzento recusou-se a ir, olhando para Cordyra e meneando com a cabeça para que ela o seguisse. Robb precisou chama-lo três vezes para que o acompanhasse, e, quando Vento Cinzento foi, Norte foi atrás. Então foi a vez de Cordyra chama-la, e a loba choramingou pelos primeiros trinta minutos de galope, enquanto viajavam para longe.

À oeste da estrada estendiam-se colinas de sílex, cinzentas e escarpadas, com altas torres de vigia erguidas nos seus cumes rochosos. Para leste o terreno era mais baixo, achatando-se até se transformar numa planície ondulada que se estendia até onde a vista alcançava. Pontes de pedra transpunham rios rápidos e estreitos, e pequenas chácaras espalhavam-se em anéis em torno de rastros com fortificações de madeira e pedra. A estrada tinha muito tráfego, e à noite, para seu conforto, podia-se encontrar rudes estalagens. Mas após três dias de viagem de Winterfell, as terras de cultivo deram lugar à densa floresta, e a estrada do rei transformou-se num lugar solitário. Os dragões também demonstravam incômodo; dormiam bem junto à fogueira à noite e, durante o dia, aqueciam-se junto ao pelo hirsuto da loba Norte.

As colinas de sílex tornavam-se mais altas e selvagens a cada milha, até se terem transformado em montanhas pelo quinto dia, gigantes frios, azuis-acinzentados, com promontórios irregulares e neve sobre os ombros. Quando o vento soprava do Norte, longas plumas de cristais de gelo voavam dos picos mais altos como se fossem estandartes. Os dedos de Cordyra coçavam por um pincel, ou mesmo um lápis de carvão que pudesse usar para registrar tanta beleza, mas não empacotara nenhum material de pintura para a viagem. Que bem poderiam ter desenhos na guerra? Com as montanhas a fazer às vezes de muro, a oeste, a estrada desviava-se para nor-nordeste através da floresta, uma mistura de carvalhos com sempre-verdes e sarças negras, que parecia mais antiga e sombria que qualquer outra que Cordyra tivesse visto. "Mata de lobos" sabia se chamar, como aquela em que Robb e Bran foram atacados, mas ainda mais inóspita, e, de fato, as noites do grupo eram animadas com os uivos de alcateias distantes, e de outras não tanto assim. O lobo gigante de Cordyra levantava as sobrancelhas ao ouvir os uivos, mas nunca os respondia. Tinha sua própria alcateia em casa.

As chácaras e os castros eram cada vez mais escassos e menores à medida que prosseguiam para o norte, penetrando cada vez mais profundamente na escuridão da mata de lobos, até que finalmente deixou de haver tetos onde pudessem se abrigar, e foram atirados para a necessidade de se valerem de seus próprios recursos.

Cordyra nunca soubera armar uma barraca; nunca precisara. Mas não tinha problema; Benfred Tallhart podia ser um garoto verde, não muito mais velho que ela, cujo pai mandara para o Norte para evitar que tomasse lugar nas guerras ao Sul. Mesmo assim, noite após noite, ensinou a Quent e Hallis como montar uma barraca firme, e a fechar inteira de forma que nenhum vento gelado a invadisse durante a noite.

—A Praça de Torrhen não é tão perto da Estrada do Rei. –Explicou Benfred sobre a sede de sua Casa. –Para qualquer lugar que se queira ir são ao menos três dias diretos na Mata de Lobos. Então aprendemos cedo a montar barracas.

                Cordyra, em sua posição como mulher, jamais tivera a oportunidade de viajar com frequência, como fazia o tio com os dois primos. Robb e Jon frequentemente acompanhavam o lorde Eddard em suas viagens, indo a casa de um lorde ou outro, visitando uma propriedade saqueada, ou gerenciado o plantar de uma colheita. Cordyra sempre esperava em casa, e, portanto, no décimo dia de viagem, suas costas doíam e suas coxas ardiam do passo do cavalo. Não disse nada disso aos companheiros; não queria que pensassem que a senhora de Winterfell era uma garota chorona. Apenas Jocelyn, que dormia na barraca com ela, via suas dores. Durante a noite, passava uma pomada que trouxera consigo nas coxas assadas de Cordyra, e massageada suas costas.

                Mesmo assim, quando viu a muralha, não deixou de soltar uma exclamação de alívio. Podia-se vê-la de milhas de distância, uma linha azul--clara ao longo do horizonte norte, estendendo-se para leste e oeste e desaparecendo na distância longínqua, imensa e contínua. Isto é o fim do mundo, parecia dizer. “Agora são apenas algumas horas”, garantiu Benfred quando a avistaram. Quando finalmente viram Castelo Negro, suas fortificações de madeira e torres de pedra não pareciam mais que um punhado de blocos de brincar espalhados na neve sob a vasta muralha de gelo. A antiga fortaleza dos irmãos negros não era nenhum Winterfell, nem sequer era um castelo. Sem muralhas, não podia ser defendida, não pelo Sul, leste ou oeste; mas era apenas o Norte que preocupava a Patrulha da Noite, e para o norte erguia-se a Muralha. Erguia-se a cerca de duzentos metros, três vezes a altura da mais alta torre do forte que defendia. As esguias silhuetas de enormes catapultas e monstruosas gruas de madeira montavam guarda lá em cima, como esqueletos de grandes aves, e entre elas caminhavam homens de negro, pequenos como formigas.

                Nas portas da fortaleza, esperava por eles um homem velho. Hallis Mollen erguera um estandarte Stark para anunciar a sua chegada, embora Cordyra achasse que a flâmula fazia pouca diferença em relação ao branco da neve em toda parte. Mesmo assim, fora vista, e agora eles eram esperados. O homem vestia-se de negro e tinha já alguma idade, mas era imponente, de olhos sérios e ombros largos.

                Ao invés de dá-los às boas-vindas quando chegaram, ele encarou Cordyra bem fundo nos olhos, sem nem ao menos dá-la a oportunidade de pedir hospitalidade.

—Soube que seu marido seguiu para o Sul, senhora Stark. –Anunciou. –Foi-nos mandada uma carta sobre isso, assim como sobre o casamento. –Ele olhou bem os fardos em ambos os seus ombros. –Admito que não cheguei a acreditar na parte que falava sobre os dragões, porém. Imaginei que o jovem Lorde Stark queria causar pânico em seus inimigos.

                Cordyra moveu-se de forma que Espectron ficava mais visível contra o azul de sua roupa. Aurae voava no céu acima deles, mas também já havia sido avistada. Dentro do castelo, um lobo uivou. Norte, quieta ao seu lado até então, uivou de volta imediatamente. O homem olhou para o lobo parecendo impaciente.

—Robb não usa de mentiras. –Cordyra respondeu friamente. –Conhece-nos. Sou Cordyra Stark, e esses são Benfred Tallhart, Hallis Mollen, Quent Fork e Jocelyn Rivers. Pedimos a hospitalidade de Castelo Negro, pois temos negócios a resolver aqui. A quem pedimos hospitalidade?

—Ao Comandante Mormont. –Respondeu o outro rudemente. –E terá minha hospitalidade. –A olhou com seriedade. –Sabe que Jon Snow é agora um homem juramentado da Patrulha? Se for embora para a guerra com você, seremos forçados a mandar prendê-lo, e teremos sua cabeça.

                Cordyra subitamente compreendeu sua hostilidade.

—Não se preocupe, comandante Mormont. –Disse, em tom apaziguador, as mãos à mostra. –Estou aqui para ver Aemon Targaryen, a quem eu tenho motivos para crer seu meu tio-bisavô.

                Ele encarou os dragões sem julgamento.

—Vejo porque pensa assim. –Observou com ironia. Ocorreu a ela que talvez ele fosse um homem duro, mas não sem humor. –Diga-me, essas feras não farão de Castelo Negro uma Harrenhal?

—Não. –Cordyra garantiu.

—Nesse caso, entrem. –Disse o outro. –Está frio e há comida quente. E o lobo pode se juntar ao outro.

                O comandante os guiou por corredores cheios de gente. Todos homens, e olhavam para ela com curiosidade ao passar. Cordyra se lembrou, com um arrepio ruim, que Jon mandara uma carta a ela, dizendo que a Patrulha da Noite era feita majoritariamente de assassinos e ladrões, ou às vezes, violadores. Mas nenhum dos homens ou garotos lançaram-na olhares lascivos. Um deles, alto, com cara de tolo, viu a sua loba, depois notou o símbolo cosido à sua manta, e exclamou:

—Jon! Deve ser parente de Jon! Pyp, vá buscar...

                Mas o lorde comandante o deu um olhar tão feio que se calou e olhou para baixo. Quando passara, pelo canto do olho, Cordyra ainda viu o tal Pyp dar um tapa em sua cabeça. Não se importou, virou-lhes as costas e continuou andando, com seu grupo atrás de si. O comandante ofereceu-lhes quartos, onde podiam se limpar da viagem, e disse que o salão de refeições logo ofereceria uma refeição nutritiva àqueles que comparecessem à mesa. Disse também que meistre Aemon estava ocupado, mas que a veria depois do almoço.

                Apenas quando ele estava saindo, Cordyra ousou perguntar:

—E meu primo, Lorde Comandante? –Ela o encarou nos olhos. –Onde posso encontrá-lo?

                Ela pensou que talvez ele se irritasse, mas o senhor Mormont fez como se fosse uma questão trivial.

—Na muralha. –Respondeu. –Suba, se tiver coragem.

                Ela lembrou-se da tia Catelyn, do modo como enfrentava duras verdades de rosto erguido, e como se colocaria entre o rei e seus filhos se assim fosse preciso. A coragem das mulheres era muito diferente da coragem dos homens, Cordyra sabia.

                Então ela deixou que Jocelyn a lavasse, e a vestisse em vestes ainda mais quentes que aquelas com as quais tinha viajado, e deixou tanto seus dragões quanto sua loba ao seu cuidado, embora Norte estivesse agitada como se a presença de Fantasma em algum lugar já lhe fosse palpável. Foi ao pátio, ignorando os olhares curiosos que recebia no caminho, e dispensando a companhia de Hallis Mollen, que insistia que Robb preferiria que ela fosse acompanhada.

                Ela rira dele.

—Robb teria me jogado do alto da Muralha se acreditasse que Jon Snow estava embaixo para me pegar. –Garantiu ao guarda.

Uma escada de madeira subia a face sul, ancorada em enormes vigas rudemente talhadas, que penetravam profundamente no gelo. Ziguezagueava para um lado e para o outro, escalando a muralha tão torta como um relâmpago. Ela encarou. Um dos irmãos negros que a indicaram o caminho do pátio assegurara de que era segura, mas ela havia acabado de chegar de uma longa viagem, e ninguém estava olhando.  Em vez disso, dirigiu-se à gaiola de ferro junto ao poço, pulou para dentro dela e puxou com força a corda do sino, três sacudidelas rápidas. Teve de esperar o que pareceu ser uma eternidade ali, atrás das grades e com a Muralha nas costas. Estava quase acreditando que não havia ninguém para iça-la quando a gaiola deu um solavanco e começou a subir. Subiu lentamente, a princípio com paradas e arranques, mas depois mais suavemente. O chão desapareceu por baixo de seus pés, a gaiola oscilou e Cordyra enrolou as mãos nas grades de ferro. Conseguia sentir o frio do metal mesmo através das luvas. E, então, viu-se acima das torres, ainda subindo lentamente. Castelo Negro jazia abaixo de si, delineado ao luar. Dali, via-se bem como era um lugar rígido e vazio, com suas torres sem janelas, muros em ruínas, pátios entupidos de pedra partida. Mais longe, conseguia ver as luzes da Vila da Toupeira, um pequeno povoado a meia légua para sul ao longo da estrada do rei, e aqui e ali a cintilação brilhante do luar na água onde córregos gelados desciam dos cumes das montanhas e cortavam as planícies. O resto do mundo era um vazio desolado de colinas varridas pelo vento e campos pedregosos manchados de neve.

                A gaiola parou com um solavanco e, sem olhar para trás, Cordyra esperou que parasse de balançar, e saltou. Havia um homem segurando o guincho que a levara para cima. Ele arregalou os olhos para ela.

—Uma mulher! –Exclamou, para alguém mais na frente que ela não conseguia ver.

                Estava um frio medonho ali em cima, e o vento a puxava pela roupa como uma amante insistente. O topo da Muralha era mais largo que a maior parte da estrada do rei, e Cordyra não tinha medo de cair, embora seus pés escorregassem mais do que gostaria. Os irmãos espalhavam pedra esmagada pelas passagens, mas o peso de incontáveis passos derretia a Muralha nesses locais e o gelo parecia crescer em torno do cascalho, engolindo-o, até que o caminho ficava de novo liso e era tempo de esmagar mais pedra.

—Procuro Jon Snow. –Disse Cordyra laconicamente.

                O rapaz era jovem, ela via agora. Tinha uma monocelha, dentes amarelos e olhos castanhos aguados. Ele apontou uma direção para ela, e Cordyra testou o gelo um segundo, antes de arranjar coragem para se pôr a andar.

O vento rodopiava em seu redor, a brita rangia sob as botas, enquanto à frente a fita branca seguia os contornos das colinas, erguendo-se cada vez mais alta, até se perder para lá do horizonte ocidental. Passou por uma maciça catapulta, alta como uma muralha de cidade, com a base profundamente afundada na Muralha. O braço lançador tinha sido removido para passar por reparos, e depois fora esquecido; jazia ali como um brinquedo partido, meio embutido no gelo. Do lado de lá da catapulta, uma voz abafada soltou um grito.

— Quem vem lá? Alto! –De alguma forma, ela lembrou-se das palavras de seu casamento, quando a noiva precisava se identificar. Era costume em Westeros.

Cordyra parou.

—Temo congelar, Jon. –Disse ela moderadamente, embora seu coração batesse forte. Disse a si mesma que era a altura, mas fazia tempo demais que não via o primo. Podia imaginar seus olhos escuros, cheios de uma seriedade que não havia nos olhos de seus irmãos. Seu andar confiante, ligeiro, seu corpo esguio e alto. A promessa de uma risada no canto dos lábios.

                Os olhos de Jon pareciam duas moedas de tão arregalados que estavam quando a viram. A roupa quente que usava para fazer a vigia o fazia parecer maior do que ela sabia que era, e mais largo. Os cabelos escuros também estavam mais longos do que ela se lembrava, e o rosto mais magro. Se perguntou se ela havia mudado alguma coisa para ele. Devia ter, porque ao invés de correr para ela, Jon a encarou longamente, como se fosse um fantasma.

                Percebeu que se não falasse, ele não diria nada tampouco. Se ela fosse Robb, teria perguntado se fazia tanto tempo que ele não via uma mulher que não poderia mais reconhecer uma, e Jon teria rido, mas Robb estava longe. Ela tinha intenção de comentar sobre sua magreza, ou dizer a ele que o preto lhe caia bem, mas ao invés disso o que saiu foi:

—Irei para o Sul quando for embora daqui. Robb partiu para a guerra, e eu irei com ele.

                O pomo-de-adão de Jon se moveu para cima e para baixo.

—Fiz meus votos para a Patrulha da Noite.

                Uma vez, Jon e Robb, escondidos, haviam tirado as proteções acolchoadas do treino de espadas, e brandido duas espadas de madeira um contra o outro no pátio, escondidos de todos a não ser de Cordyra. Cada estocada fazia um barulho terrível contra a carne de seus braços, pernas, ombros e, em dado momento, barriga. O som não era alto, nem visceral, mas dava para ver que machucava. E não era que os irmãos queriam se machucar; era que pareciam incapazes de parar de bater. Mais tarde, Cordyra havia posto neve nos machucados dele, e pego unguento dos aposentos de meistre Luwin sem que ele notasse.

                De alguma forma, aquela conversa estava tomando o mesmo rumo da brincadeira entre irmãos.

—Me casei com Robb. –Foi a vez dela de dar a estocada. Ela não sabia qual a parte de suas palavras que machucava Jon; se não puder ir ao casamento, se não puder ir à guerra. Também não sabia que parte do que Jon dizia a machucava, mas doía mesmo assim.

—Recebi a carta. –Jon respondeu secamente. –Mandei de volta minhas felicitações.

—Chegaram a uma Winterfell vazia. –Cordyra disse. –Bran talvez a envie para Robb em Fosso Cailin.

—Por que veio? –Jon perguntou bruscamente, girando o corpo completamente em sua direção agora.

                Agora ela hesitou. A resposta era não por você, mas ela soube que não devia dizer as palavras. Não tinha percebido que, na verdade, estava furiosa com Jon. Como ele ousava deixá-los quando haviam precisado dele? Quando o tio estava também partindo, e quando Robb herdou tanta responsabilidade. Achava que Jon e Robb seriam Aegon Targaryen e Orys Baratheon, seu amado meio-irmão, mas não fora assim.

                O sonho de sua infância; ela, Robb e Jon, administrando Winterfell, resolvendo intrigas entre vassalos, criando suas crianças. Nunca havia pensado com quem Jon casaria, era sempre uma ideia indistinta, mas ele também tinha crianças em seu sonho. Agora, ele jamais casaria, ou teria filhos.

—Por Meistre Aemon. –Disse, surpresa com o próprio ressentimento. –Por que veio? Por que não ficou em Winterfell conosco?

                Jon pareceu como se jamais houvesse imaginado que ela ousaria perguntar. Ele abriu e fechou a boca, flexionou as mãos, mas não pareceu encontrar as palavras. Não importava, porque Cordyra conhecia seu coração.

—A senhora Catelyn. –Cordyra disse. –Teve medo de que ela o mandasse para ser cavalariço, para algum trabalho inútil, que o mantivesse longe de Robb?

                Jon a encarou, com olhos cor de tempestade.

—Ela teria feito isso. –Ele garantiu.

—Talvez. –Cordyra concordou. –Robb não teria deixado.

—Robb não era senhor.

—Ele é agora. –Cordyra o corrigiu. –Você não estava lá. Catelyn não saiu do quarto depois que Bran caiu, e partiu logo para o Sul ao encontro do tio Eddard. Robb foi senhor no dia que Lorde Eddard partiu, e você não estava lá para ele.

                Era verdade. Cordyra era amada, mas nunca teria aquela parte de Robb; as batalhas e o amor por espadas. Aquilo havia pertencido a Jon, até que ele abrisse mão. Era uma colcha de retalhos costurada com imagens de sua infância, com os conselhos de seu pai, e mesmo com o rancor de Catelyn.

                Eles ficaram em silêncio, apenas o vento gelado cantando em seus ouvidos.

—O que quer com Meistre Aemon? –Jon mudou de assunto com desconforto. –É verdade, então? Sobre você?

                Não havia hesitação; era Jon, independente de como ela se sentisse sobre ele naquele momento. Havia algo mais forte entre eles; sangue, ainda que o dela fosse manchado de fogo.

—É verdade sobre mim. –Cordyra conseguiu formar um meio-sorriso. Estava aprendendo a não ter medo de quem era; e a experiência fora engrandecida pela reação dos vassalos de Robb ao saberem sobre ela. –Gostaria de vê-los?

                Jon hesitou.

—Os dragões?

                Ela conseguiu rir.

—Claro que os dragões! –Disse. –Mandei dois deles para o Sul com Robb, mas os outros dois estão aqui.           

                O rosto do primo era sombrio.

—Mesmo Aegon, o Conquistador tinha apenas três dragões.

—Sim. –Concordou. –Mas o meu tem o tamanho dos cachorros dos canis, enquanto os de Aegon pareciam-se com castelos.

                Jon sorriu e começou a passar por ela.

—Está mesmo acabando a hora de minha vigília. –Disse ele. –Podemos...

                Cordyra segurou-o pelo braço quando passou ao seu lado. Ela não era forte o suficiente para segurá-lo contra a sua vontade, mas Jon ficou, a respiração rasa se condensando no ar quando ele exalava devagar. Não olhou em seus olhos, mas ela podia sentir os músculos tensos no braço onde o segurava.

—Não quis dizer aquilo. –Ela o disse. –Robb é um homem-feito agora, e não precisa que você o salve. Não quis cobrar isso de você.

                Os músculos dele ficaram mais relaxados debaixo de seu aperto de ferro.

—Não. –Ele concordou. –Eu gostaria de ter participado do casamento.

                A voz dele era suave, e cheia de desejo verdadeiro. Cordyra saberia reconhecer, porque já tinha ouvido antes. Quando eles eram jovens, e se escondiam na biblioteca e Jon confessava que gostaria de saber quem foi sua mãe. Não podiam falar disso na frente de Robb, porque Robb conhecia os pais; era um segredo apenas deles, um dos poucos que tinham. Cordyra respondia que gostaria que o pai estivesse vivo, e eles, embora sozinhos, falavam baixo para que nem suas sombras pudessem ouvir.

                Quando acabou o turno da vigília, ambos desceram juntos.


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