Filha de Gelo e Fogo escrita por Dafne Guedes


Capítulo 12
A Mata de Lobos


Notas iniciais do capítulo

Música do capítulo: Blood in The Water, Grandson.



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"We'll never get free
Lamb to the slaughter
What you gon' do when there's blood in the water?
The price of your greed is your son and your daughter
What you gon' do when there's blood in the water?"

 

Cordyra assistira durante toda a vida enquanto os primos saiam a cavalo com lorde Stark. Para resolver um problema aqui ou ali, para visitar um vassalo cujas terras enfrentavam problemas, para levar a Justiça do Rei. Cordyra, desde os sete anos, os acompanhava até que montassem os cavalos, e ficava assistindo, sozinha enquanto iam embora. Arya era jovem demais naquela época, e Sansa jamais quisera ir com eles.

Por conta dessa experiência, Cordyra se apiedou profundamente do jovem Rickon, quando ele ficou no pátio e a chuva se transformou em leve neve, chorando e olhando enquanto os cavalos eram montados. Cordyra o abraçou e deixou que ele chorasse em seu ombro. Era um choro de verdade; seu nariz escorria, e ficava sujo, embora ele passasse a manga da camisa no rosto. As lágrimas vinham em torrentes poderosas, e ele gritava alto que também queria ir, queria montar.

Mas ele era novo demais para montar. Cordyra garantiu que, sendo a primeira cavalgada de Bran, eles nem iriam muito longe. Voltariam logo, em apenas duas ou três horas. Por sorte, Rickon não pediu para que ela ficasse com ele, ou Cordyra poderia ter cedido. Tinha feito contas mil; a chegada do outono exigia que fossem contratados braços para as colheitas por todo o norte, e Cordyra escrevera dezenas cartas naquela manhã, pedindo homens das Terras Fluviais que precisassem de trabalho. Isso, é claro, significava que também haviam mais bocas para alimentar, e ela fez as contas do racionamento.

Tudo correndo, para garantir que, quando a ponte levadiça fosse içada, abrindo os portões, ela estivesse montada em seu belo corcel negro, ao lado de Robb e de Bran, com sua Dançarina.

— Estamos prontos? - Robb perguntou. Bran acenou. - Então vamos.

Robb encostou os calcanhares no seu grande castrado cinzento e branco, e o cavalo avançou trotando sob a porta levadiça.

— Vai - sussurrou Bran ao seu cavalo, bem junto a Cordyra. Tocou-lhe levemente o pescoço e a pequena potra castanha avançou. Bran a chamara Dançarina. Tinha dois anos, e Joseth dizia que era mais inteligente do que um cavalo tinha direito de ser. Tinham-lhe dado um treinamento especial para responder às rédeas, à voz e ao toque. Até aquele momento, Bran só a montara no pátio. A princípio, Joseth ou Hodor a puxavam pela mão, enquanto Bran se sentava em seu dorso amarrado à grande sela que o Duende tinha desenhado para ele, mas na última quinzena montara-a sozinho, fazendo-a trotar, às voltas, tornando-se mais ousado a cada circuito.

                Cordyra poderia ter dito a Robb, enquanto ele observava da ponte, que havia sido Tyrion Lannister a dar aquele presente a Bran, e fazer da vida dele mais fácil. No dorso de Dançarina, o garoto sorrira de novo, e quase parecera o Bran de antes. Comia melhor, e estava recuperando o peso perdido. Também gostava novamente de ouvir as histórias da ama, e, segundo Meistre Luwin, diminuíra a conversa sobre o corvo de três olhos com o qual sonhara.

Passaram sob a porta levadiça, sobre a ponte levadiça e através das muralhas exteriores. Verão, Norte e Vento Cinzento vinham aos saltos ao lado deles, farejando o vento. Logo atrás vinha Theon Greyjoy, com seu arco e uma aljava cheia de setas de ponta larga; segundo lhes dissera, tinha em mente abater um veado. Era seguido por quatro guardas revestidos de cota de malha na cabeça e no tronco, e por Joseth, um cavalariço magro como um espeto que Robb nomeara mestre dos cavalos enquanto Hullen estava longe. Meistre Luwin ocupava a retaguarda, montado num burro.

A porta do castelo ficava a praça do mercado, cujas barracas de madeira se encontravam agora desertas. Avançaram pelas ruas lamacentas da aldeia, passando por fileiras de pequenas casas bem-arranjadas feitas de troncos e pedra nua. Menos de uma em cinco estava ocupada, com finas linhas de fumaça enrolando-se sobre suas chaminés. As outras se encheriam, uma a uma, à medida que fosse ficando mais frio. Quando a neve caísse e os ventos gelados uivassem do Norte, dizia a Velha Ama, os agricultores deixariam seus campos congelados e fortificações distantes, carregariam suas carroças e então a Vila de Inverno ganharia vida. Isso poderia acontecer a praticamente qualquer momento agora. O fim do verão estava próximo, e um inverno igualmente longo se seguiria ao fim do outono.

Alguns aldeões seguiram ansiosamente com os olhos os lobos gigantes enquanto os cavaleiros passavam por eles, e um homem deixou cair a lenha que transportava, fugindo com medo, mas a maior parte das gentes da terra já se habituara àquela visão. Dobravam o joelho ao ver os rapazes, e Robb saudava cada um com um aceno senhorial, enquanto Cordyra distribuía sorrisos e acenos com sua mão enluvada em peles. Havia separado um belo traje para o passeio; quase nunca saia de Winterfell, e Eddard sempre dissera que, para o povo, ver seu suserano parecendo tranquilo e bem-vestido fazia com que pensassem que também deviam estar tranquilos. Tendo isso em mente, ela separara um bonito, mas sóbrio, vestido azul-escuro, com peles para aquecer o colarinho e os punhos, além de uma capa de pele branca por cima do ombro, com botões de pérola de água doce. O próprio Robb havia caçado os coelhos brancos que se transformaram naquela pele.

Duas criadas estavam paradas sob o letreiro do Tronco Fumegante, a cervejaria da aldeia. Quando Theon Greyjoy as chamou, a mais nova ficou toda vermelha e cobriu o rosto. Theon esporeou a montaria para se pôr ao lado de Robb, ao alcance dos ouvidos de Cordyra.

— Doce Kyra - disse, com uma gargalhada. - Contorce-se como uma doninha na cama, mas basta dizer-lhe uma palavra na rua para ficar cor-de-rosa como uma donzela. Já te falei daquela noite em que ela e Bessa...

— Aqui, onde meu irmão pode ouvir, não, Theon - preveniu Robb, olhando para Bran de relance. Ele estava usando a voz de Senhor, e o Senhor não se envergonhava, mas Cordyra não deixou de notar que ele não a olhou de lado por um bom tempo após isso.

                Cordyra, do outro lado de Bran, focou a vista no rosto do menino. Não parava de checa-lo com o canto dos olhos, para não o deixar desconfortável, mas não deixou de notar que ele parecia cada vez mais solto sobre o cavalo, e até mesmo o vira deixar escapar um sorriso ou dois.

Robb aproximou-se.

— Está indo bem, Bran.

— Quero ir mais depressa - ele respondeu.

Robb sorriu.

— Como quiser. –Pôs o castrado a trote. Os lobos correram atrás dele. Bran agitou bruscamente as rédeas e Dançarina acelerou o passo.

                Ao seu lado, Theon gritou para que os jovens senhores fossem mais rápidos. “Parecem duas velhas”, disse, mas Cordyra duvidava que pudessem ouvi-lo. Ela mesma não tentou acompanha-los; Bran precisava de Robb como Rickon precisava dela, e era bom que estivessem juntos. Ela sabia que Bran preferia sair apenas com Robb do que com toda a guarda de Winterfell. Além de tudo, quando corresse, a neve chicotearia em seu rosto, e já estava frio o suficiente.

                A escolha não demorou a se provar equivocada e, assim que os dois senhores sumiram de vista, Theon pôs o cavalo a trote ao seu lado. Cordyra não se dignou a reconhecer sua presença com um olhar, mas sentia o sorriso crescendo no rosto do protegido de seu tio.

                Theon era sempre o mesmo, diferente de Robb, ou mesmo Cordyra. Na noite anterior, quando Robb sentara-se com ela, Hallis Mollen, Meistre Luwin e Theon para discutir uma nova carta vinda de Porto Real, o jovem noivo assumira a sua expressão de lorde. Theon, não. Era sempre meio moleque, meio herdeiro e muito problema.

                Na noite anterior, haviam recebido uma carta de Porto Real, e haviam passado toda a tarde trancados na biblioteca discutindo sobre ela. Asas escuras, palavras escuras, como dizia o ditado. Quando Robb escrevera ao Senhor Comandante da Patrulha da Noite, a ave que regressou trouxe a notícia de que Tio Benjen continuava desaparecido. Depois chegara uma mensagem do Ninho da Águia, da tia Catelyn, mas também não trazia boas notícias. Ela não dizia quando pretendia regressar, apenas que tomara o Duende prisioneiro. Cordyra ficara surpresa com a ousadia daquele movimento. Estavam tendo tanto cuidado com seus dragões para não acabarem por comprometer a posição de Lorde Eddard em Porto Real, então sua esposa fez um movimento explícito contra um Lannister. De certa forma, ela nem havia ficado tão surpresa com a carta que receberam na noite anterior.

                A nova mensagem contava sobre a morte de Jory Cassel, e Wyl e Heward também. Assassinados pelo Regicida. Havia algo em Jaime Lannister que era como um leão. Uma falsa tranquilidade, mas que escondia um poço em ebulição por baixo. Cordyra nem poderia imaginar sua raiva quando recebera as notícias do Ninho da Águia, ainda que isso não justificasse as ações que tomara. O tio Eddard caíra do cavalo sobre sua perna, e estava em muita dor, sem saber quando se recuperaria. O regicida havia fugido. Robb mandara um grupo de cavaleiros, com mensagem para todos os vassalos nortenhos, inclusive para Fosso Cailin, mandando que fosse fortificado. Theon dissera que os vassalos precisavam ser convocados para a guerra, mas Robb não quisera ouvir falar naquilo. Por debaixo da tranquilidade de Senhor, Cordyra via o medo em ebulição.

—Espero que não tenha ficado ofendida com Kyra, senhora. –Ele riu ao se aproximar dela. Estava sempre rindo, como se tudo no mundo fosse infinitamente engraçado. –Isso a mortificaria.

—Não é a garota que me ofende. –Cordyra respondeu secamente. Meistre Luwin vinha montado num burro, e havia ficado muito para trás. Ela teria adorado conversar com ele ao invés de Theon, mas se desse a volta ela a tomaria como uma covarde e nunca a deixaria em paz.

—Ah! –Theon fingiu compreender. –Tem medo de que eu seja uma má influência para Robb. Ora, não tema, ele tem sangue Stark, e os Stark não tomam esposas de sal. –Ele parou por um momento. –Embora, se fosse você, eu o libertaria para aprender uma coisa ou duas. Não vai querer uma criança em seu leito nupcial. Eu o guiarei bem.

                Outra mulher teria parado o cavalo e estapeado. Mas Cordyra o conhecia desde os seis anos de idade, e sabia que a atenção faria com que ele ficasse apenas ávido por mais.

—Você não conhece o seu lugar. –Ele disse em tom brando. Poderia ter dito que achava que Robb daria conta, levando em conta os beijos que trocavam, mas isso apenas mancharia a sua reputação, e Theon ficaria ainda mais satisfeito. –Vá atrás das meretrizes, Theon, é o que há para você.

                Ele trotou em silêncio amuado ao seu lado até o ponto em que encontraram Robb e Bran na orla da Mata de Lobos. Cordyra pensou que sentia falta de Jon; ele jamais teria deixado que Theon a importunasse, e se sentiu terrível ao notar que quase não doía mais. A falta de Jon, que parecera a perda de um membro uma vez que ele se fora, agora se resumia a uma antiga ferida, que doía apenas quando tocada –e com tanto a fazer ela quase nunca tinha tempo de pensar nele. Se perguntou se seria o mesmo na Muralha. Haveria ele feito amigos tão próximos quanto irmãos, e esquecido deles?  

                Bran e Robb pareciam estar terminando uma conversa. Robb tinha uma mão no cabo da espada.

— Bran, prometo-lhe, aconteça o que acontecer, não deixarei que isto seja esquecido. –Terminou ele.

                Bran, se alguma coisa, pareceu ficar mais pálido. Uma palidez que tirava a cor de seus lábios.

— Que vai fazer? - Perguntou quando Theon Greyjoy refreava seu cavalo ao lado deles.

— Theon pensa que devo chamar os vassalos - disse Robb. –O pai deixou alguns nomes de confiança com Cordyra quando foi embora. Ela acha que talvez ele previsse problemas.

— Sangue por sangue. –Pela primeira vez Greyjoy não sorria. O rosto magro e escuro tomara um aspecto faminto, e cabelos negros caíram-lhe sobre os olhos.

— Só o senhor pode chamar os vassalos. -Bran disse enquanto a neve caía lentamente ao redor do grupo.

— Se o senhor seu pai morrer - disse Theon -, Robb será o Senhor de Winterfell.

— Ele não morrerá! - Bran gritou.

Robb tomou-lhe a mão. Cordyra olhou feio para Theon. Se houvesse sido Rickon, ela o teria tomado nos braços, mas Bran sempre fora mais filho da senhora Catelyn do que os irmãos.

— Ele não morrerá, nosso pai não morrerá. - Robb disse calmamente. - Mesmo assim... a honra do Norte está agora em minhas mãos. Quando o senhor nosso pai se afastou de nós, disse-me para ser forte por você e por Rickon. Sou quase um homem-feito, Bran.

                Era possível que Bran não conseguisse ver isso, mas Cordyra reconhecia a verdade da afirmação em cada um dos traços recém-esculpidos de Robb. Era como se dois pintores diferentes pintassem a mesma imagem; havia o Robb de antes, e o de depois. Eram o mesmo, e não eram. Tudo que era suave em suas feições se tornara pedra, mármore e gelo. Talvez fosse simplesmente a chegada do Inverno, endurecendo os senhores.

— Gostaria que nossa mãe estivesse de volta. – Bran disse, com ar infeliz. - Meistre Luwin também diz para chamar os vassalos?

— O meistre é medroso como uma velha! - Theon interveio.

— Nosso pai sempre escutou seus conselhos. - Recordou Bran ao irmão. - E a mãe também.

— Eu o escuto. - Insistiu Robb. - Eu escuto toda a gente.

                Bran não parecia acalentado pelo pensamento.

— Podemos regressar? -Perguntou. - Sinto frio.

Robb olhou em volta.

— Temos de encontrar os lobos. Pode continuar um pouco mais?

                Cordyra mordeu a língua para não responder por Bran. Meistre Luwin havia avisado que ele não fosse longe demais, mas cavalgar parecia ter devolvido alguma alegria ao primo. Além disso, ele ficara aleijado, não mudo.

— Posso continuar tanto como você.

                Robb sorriu e olhou para Cordyra. Era a primeira vez que olhava para ela desde a brincadeira de Theon. Seus olhos eram firmes como sempre foram; tinha vergonha da brincadeira em si, não de qualquer ato que houvesse cometido.

—Vamos à caça dos caçadores? –Ele perguntou a Cordyra, mas ela já estava balançando a cabeça.

—Estarei com Meistre Luwin lá atrás. –Respondeu. –Vão na frente.

                Lado a lado, incitaram as montarias a sair da Estrada do Rei e entrar na Mata de Lobos. Theon deixou-se ficar para trás e os seguiu muito depois, conversando e gracejando com os guardas.

                Meistre Luwin parecia incomodado em ser deixado para trás, mas não reclamou quando a viu.

—Senhora Cordyra. –Disse ele. Havia passado a trata-la daquela forma desde a eclosão dos ovos, como se não fosse mais a garota a quem ele ensinara matemática, história e línguas. Ela queria dizer o quanto aquilo o incomodava, mas não tinha coragem. –Não vê alegria em cavalgar com seus primos?

—Vejo. –Cordyra respondeu com simplicidade e não ofereceu mais explicações. Os dois seguiram atrás no cortejo, eram muito lentos para acompanhar os guardar com o meistre em cima do burro, mas ela não se incomodava com um passo mais lento. –Acha que os Lannister nos farão guerra?

                O Meistre Luwin meneou com a cabeça por um segundo, pensativo.

—Não. –Respondeu afinal. –É um mal-entendido, e os mal-entendidos tem um jeito de se revelarem. O senhor Tyrion não pareceu um homem mal, veio aqui e ofereceu um presente a Bran; por que haveria de ter mandado mata-lo? A situação de Lorde Eddard é mais complexa, sem dúvidas, mas ninguém sairá ganhando se o Lobo e o Leão lutarem. Além disso, há a vontade do Rei, que é amigo de seu tio.

—Enquanto não sabe sobre os dragões. –Apontou Cordyra.

                Meistre Luwin fez uma pausa ainda mais longa.

—Tenho pensando sobre eles. –Disse. –É verdade que podem se tornar um problema; tanto para a sua identidade, quanto mais tarde. Os homens vão tentar roubá-los, ou mesmo roubar você, para chegar a eles. A Rosa de Inverno de Winterfell foi roubada apenas por ser bela. O que acontece quando uma mulher é bela e guardiã de muito poder?

                Cordyra sabia o que acontecia com esse tipo de mulher.

—Diga-me o que pensou. –Pediu, sem rodeios.

—Mande-os embora. –Meistre Luwin respondeu com bastante simplicidade. –Já são capazes de voar. Parecem inteligentes, ouvem seus comandos. Podemos ir até a Baía Das Focas, e, de lá, eles atravessarão o Mar Estreito para o continente de Essos, de onde vieram. Talvez façam o caminho até a velha cidade franca de Valíria. Não são daqui.

                Cordyra sentiu um frio como no dia em que todos haviam partido para o Sul.

—Isso não resolve nossos problemas. –Respondeu a ele. –Outra pessoa os terá, e então teremos que lidar com outro Aegon, o Conquistador.

—Talvez não. –O Meistre pontuou. –Não podem ser domados por qualquer um, apenas pelo sangue do dragão. Viverão livres.

—Valíria ainda sofre com a Perdição. –Cordyra apontou, então apertou as rédeas do cavalo, que começava a sair na frente, uma determinação quente em seu peito. –Não os mandarei embora, Meistre. Lamento.

                Ele assentiu.

—Imaginei que não. –Disse. –Mas era meu dever sugerir. Como eles se adaptam ao frio?

                Não era um assunto muito mais agradável.

—Não gostam. Vivem perto da lareira de meu quarto, e apenas voam em dias sem neve. –Respondeu rapidamente, como fazia durante as provas orais propostas pelo meistre. –Dirá que devo leva-los para o sul, e casar com um lorde sulista com um castelo grande o suficiente para quatro feras?

                O olhar que ele a lançou era cheio de repreensão.

—Não sou seu inimigo, senhora Cordyra. Sou um meistre, e sirvo Winterfell. –A avisou, severamente. –Outro meistre poderia achar uma boa coisa, até mesmo uma benção. Dragões são poder, e poderes são responsabilidades imensas. Não precisa apenas lidar com os interesseiros, e os inimigos de sua família materna, mas também com a educação, alimentação e manutenção deles. O Inverno está chegando, e eles não podem passar fome, ou comerão os habitantes da Vila de Inverno.

—Tenho estudado. –Ela o disse. –Os dragões chegarão numa idade em que me testarão antes de me escolherem como cavaleira. Depois disso, me obedecerão independente do que os peça. Podem ir caçar longe, para lá da Muralha, onde ainda vivem os Mamutes.

—São histórias. –A repreensão de Meistre Luwin era gentil, mas anda soava como repreensão. –Pensa que tem o pulso para domá-los?

                Cordyra pensou em Rickon, empurrando-a para longe aos gritos e pedindo por Robb e pelos pais, batendo a porta por trás dela.

—Tenho de ter. –Disse a Meistre Luwin, sabendo que não soava tão corajosa quando gostaria.

Então ele mudou de assunto abruptamente:

—Tem feito os cálculos das colheitas?

—Escrevi ao Sul pedindo por homens, antes que os Tyrell levem todos para os seus próprios campos, e os Redwyne façam todos os camponeses de pisadores de uvas. –Respondeu. Então notou que, à frente, todos os cavaleiros haviam parado, e moviam-se nervosos em seus cavalos. –Aconteceu alguma coisa.

                E se apressou para ver o que era, deixando o meistre para trás.

                Uma cena de morticínio se estendia à beira do rio; uma mulher e quatro homens jaziam mortos no chão. Um deles tinha uma flecha no coração, os outros estavam destroçados, sangrados. A mulher tinha a barriga aberta, as tripas jorrando para fora como uma cascata incessável de sangue. Os guardas tinham uma expressão estranha, pálida, no rosto ao depararem com aquela cena de morticínio. Olhavam para os lobos, inseguros, e quando Verão regressou para junto de um cadáver para comer, Joseth deixou cair a faca e precipitou-se para as árvores, vomitando.

Até Meistre Luwin pareceu chocado ao surgir por trás de uma árvore, mas só por um instante. Então balançou a cabeça e atravessou o córrego até junto de Bran.

— Está ferido?

— Ele cortou minha perna - Bran respondeu-, mas não senti nada

                Robb estava congelado no meio do riacho, a correnteza um pouco acima dos tornozelos. Cordyra desmontou de seu cavalo com um movimento fluído, juntou as saias em uma mão, e correu para junto dele. A água estava fria, e encharcou seu vestido no momento em que ela entrou, mas Cordyra mal sentiu. Ao alcançar Robb, passou as mãos pelo tronco dele, procurando feridas e murmurando perguntas, mas ele segurou suas mãos com gentileza e não respondeu. Seu corpo estava tenso como a corda de um alaúde. O regato pareceu mais frio do que estava antes.  

Os guardas estavam se espalhando, examinando os corpos. Theon Greyjoy estava ao lado de uma árvore sentinela, de arco na mão, e sorrindo. Sempre sorrindo. Meia dúzia de setas encontravam-se espetadas no chão macio a seus pés, mas ele só precisara de uma.

— Um inimigo morto é uma beleza - Anunciou.

—Jon sempre disse que você era um cretino, Greyjoy - disse Robb em voz alta. - Devia acorrentá-lo no pátio e deixar Bran praticar um pouco de tiro ao alvo em você.

                Cordyra demorou bastante a compreender o que Theon havia possivelmente feito que deixasse Robb tão irritado, embora fosse capaz de acreditar que o Greyjoy era mesmo um cretino.

— Devia me agradecer por ter salvado a vida do seu irmão.

— E se seu tiro tivesse falhado? - Perguntou Robb. - E se só o tivesse ferido? E se tivesse feito sua mão saltar ou ferido Bran em vez dele? Sabia que o homem podia estar usando uma placa no peito, porque tudo o que você conseguia ver era a parte de trás de seu manto. Que teria acontecido então ao meu irmão? Chegou a pensar nisso, Greyjoy?

O sorriso de Theon desaparecera. Encolheu os ombros, carrancudo, e começou a arrancar as setas do chão, uma a uma. Robb olhou então para os guardas, terminado com ele.

— Onde estavam vocês? - Exigiu saber. - Eu tinha certeza de que vinham logo atrás de nós.

Os homens trocaram olhares infelizes.

— Nós os seguíamos, senhor - disse Quent, o mais novo, cuja barba não passava de uma suave penugem castanha. - Só que primeiro esperamos por Meistre Luwin e pelo seu asno, com vossa licença, e depois, bem, aconteceu que... - deu uma olhadela a Theon e desviou rapidamente o olhar, envergonhado.

— Eu vi um peru - disse Theon, aborrecido pela pergunta. –Como haveria de saber que iria deixa-lo sozinho?

                Robb passou um olhar furioso por Theon, e não se deu ao trabalho de elaborar uma resposta. Voltou-se, então, a Meistre Luwin. Cordyra não seguiu o seu olhar. Tinha os olhos em  Norte, que, com seu rico castanho avermelhado, distinguia-se das árvores verdes como uma tocha.

— Qual é a gravidade da ferida do meu irmão?

— Não passa de um arranhão - Disse o meistre. Molhou um pano no córrego para limpar o golpe. - Dois deles vestem-se de negro. -Apontou a Robb enquanto trabalhava, Robb lançou um olhar para onde um dos corpos jazia, estatelado no córrego, com o esfarrapado manto negro a mover-se irregularmente, puxado pela corrente.

— Desertores da Patrulha da Noite - disse em tom sombrio. - Deviam ser loucos para vir tão perto de Winterfell.

— A loucura e o desespero são muitas vezes difíceis de distinguir - disse Meistre Luwin.

—Enterramos os corpos, senhor? –Perguntou Quent.

— Eles não nos teriam enterrado –Robb respondeu com secura. - Corte-lhes as cabeças, vamos mandá-las de volta para a Muralha. Deixe o resto para os corvos.

— E esta? - Quent sacudiu o polegar na direção de Osha.

Robb aproximou-se dela, desvencilhando-se de Cordyra. Ficou subitamente muito frio no córrego. A mulher era uma cabeça mais alta que ele, e infinitas vezes mais estreita, mas caiu sobre os joelhos quando o viu caminhar em sua direção.

— Conceda-me a vida, senhor de Stark, e serei vossa.

                Cordyra trincou os maxilares com força, e Robb relanceou um olhar em sua direção.

— Minha? Que faria eu com uma traidora?

— Eu não quebrei juramento nenhum. Stiv e Wallen fugiram da Muralha, eu não. Os corvos negros não têm lugar para mulheres.

Theon Greyjoy aproximou-se devagar.

— Dê-a aos lobos. –Ele disse a Robb. Os olhos da mulher saltaram para o que restava da mulher e afastaram-se com a mesma velocidade. Estremeceu. Até os guardas pareceram nauseados.

— Ela é uma mulher. - disse Robb.

— Uma selvagem. –Endossou Bran. - Ela disse que deviam me manter vivo para me levarem a Mance Rayder.

— Você tem um nome? –Perguntou-lhe Robb.

— Osha, ao seu dispor. –Ela murmurou em tom amargo.

Meistre Luwin se levantou.

— Faríamos bem em interrogá-la.

                Alívio correu pelo rosto de Robb como sangue, mas ele o escondeu em um minuto.

— Será como diz, meistre. Wayn, ate-lhe as mãos, ela volta conosco para Winterfell... e viverá ou morrerá conforme as verdades que nos ofereça.

                Com essas palavras, ele caminhou de volta pelo córrego, tirando sua capa forrada de pele. Estava tão molhada nas bordas quanto a de Cordyra, mas ele a passou por cima de seus ombros mesmo assim. Um dos guardas veio e pegou o cavalo dele, tirando-o da água, e os lobos estavam terminando as refeições que haviam começado. Quando Ikor, um dos guardas, tentou afastar Vento Cinzento de um dos cadáveres, recebeu um rosnado em resposta. Robb baixou a voz para falar com ela.

—Não me machuquei. –Disse, em resposta às perguntas que ela fizera quando o encontrara. –Estou aliviado que não veio conosco. Não sei o que teria feito se tentassem colocar as mãos em você.

                Cordyra sorriu apesar de tudo.

—Não é o que você teria feito, mas o que Vento Cinzento teria feito. –Ela disse, já se afastando para longe.

—Ah, não sei. –Ele a seguiu de perto, levantando o seu vestido para que não afundasse mais na água. Suas botas flexíveis de couro, por sorte, eram impermeáveis. –Talvez eu mesmo tivesse arrancado a garganta de Stiv a mordidas.

                A risada dela flutuou pelo ar da mata de lobos como música.


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