Filha de Gelo e Fogo escrita por Dafne Guedes


Capítulo 11
O Senhor de Winterfell


Notas iniciais do capítulo

A música do capítulo é Bad Blood, de Bastille.



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"That these are the days that bind you
Together, forever
And these little things define you
Forever, forever
All this bad blood here
Won't you let it dry?
It's been cold for years
Won't you let it lie?"

 

Cordyra conhecia Winterfell bem o suficiente para saber quando havia algo de diferente sem que ninguém precisasse encontra-la para contar. Era como se as próprias paredes sussurrassem para ela, apressando-a pelos corredores, desenhos escuros com carvão e grafite.

                Foi assim nos dias que os ossos de Lady voltaram do Sul. Quatro quartas de seu pai haviam vindo, trazendo e protegendo a ossada, pois a rainha queria uma capa com a pele da loba. Lady havia sido a menor da ninhada, e quando os guardas passaram pelas muralhas de Winterfell, os seus quatro irmãos começaram a uivar. À sombra da Primeira Torre ficava um antigo cemitério, com as lajes semeadas de liquens, onde os antigos Reis do Inverno tinham enterrado seus criados fiéis. Lady fora enterrada ali, enquanto os irmãos caminhavam por entre as tumbas como sombras inquietas. Partira para o sul, mas só os ossos tinham regressado.

                Dessa vez, os lobos não uivaram, mas Cordyra podia sentir mesmo assim.

                Quando os criados começaram a correr de um lado para o outro, e os guardas foram vistos cochichando em voz baixa, ela procurou por alguma figura de autoridade a quem ela pudesse fazer as perguntas. Mas Meistre Luwin não estava em nenhum lugar à vista, tampouco Robb ou Hallis Mollen.

                Ela apressou-se rapidamente ao salão, que é onde as coisas acontecem. No meio do caminho, Theon Greyjoy vinha em direção contrária, e tinha o rosto afobado. Theon, agora mão direita de Robb, parecia mais bonito com a recém-adquirida confiança.  O jovem conseguiu se abster do mal costume de olhá-la de cima abaixo, de uma forma que faria a maioria das jovens corar, mas que deixava Cordyra irritada. Todos em Winterfell sabiam que os planos de casamento estavam a todo vapor, e não era diferente para Theon. Não que ele houvesse gracejado com ela mesmo antes disso. Cordyra o evitava, e ele parecia a evitar de volta.

                Não olhou por muito tempo para ela antes de anunciar:

—Homens da patrulha da noite acompanham o Duende para o Sul. –Disse ele laconicamente. –Robb os recebe no Salão.

                Os dois se apressaram pelos corredores, rápidos o suficiente para que os homens houvessem acabado de se apresentar diante de Robb quando ambos entraram no salão, escancarando as grandes portas de carvalho. Por um segundo, todas as cabeças viraram-se para a dupla; a jovem senhora num vestido de lã batida e peles, e Theon, vestido em couro, com uma espada amarrada à cintura. O próprio Robb sentava-se no cadeirão, do pai, usando cota de malha, couro fervido e o rosto severo como o de um Senhor. Hallis Mollen estava em pé a seu lado. Uma dúzia de guardas estava disposta ao longo das paredes de pedra cinzenta, sob janelas altas e estreitas.

                Cordyra e Theon atravessaram o salão e ocuparam o lugar à direita de Robb, Cordyra mais perto e Theon logo ao seu lado. Robb olhou para ela, mas não era o seu jovem noivo. Os olhos azuis tinham uma frieza anormal. Ainda assim seu tom foi gentil quando falou.

—Sente-se na cadeira, minha senhora.

                Quando ele começou a se levantar, ela pôs uma mão em seu ombro, o segurando onde estava.

—Deixe-me ser sua mão direita, meu senhor. –Pediu. –Não é meu lugar.

                O Robb jovem teria discutido, mas aquele era o Robb Senhor, e ele apenas assentiu uma fez, firme, e se virou para os homens, sendo imitado pelos outros no estrado.

                Cordyra se lembrava claramente no feio rosto de Tyrion Lannister. Mas, mesmo que não lembrasse, teria reconhecido suas pernas deformadas e a cabeça muito grande, com os olhos de cores desiguais. Não olhavam para ela, porém. O Lannister deixou os olhos correrem pelo salão.

                A jovem senhora ficou surpresa com o misto de emoções que a abateram quando o encarou. Conhecera-o por pouco tempo, mas Tyrion a havia causado uma boa impressão, ao menos até a queda de Bran.

                Tyrion abriu as mãos.

—São muitos guardas, esses seus, senhor. –Disse ele. –Há algum mal rondando Winterfell?

                Robb se mexeu desconfortável na cadeira, mas Cordyra achava que apenas ela havia visto. Ele e Tyrion não haviam conversado muito durante a visita do rei, e Robb parecia incauto para a perspicácia do anão.

—Meu irmão foi jogado de uma torre. Então um assassino veio terminar o serviço. –Contou Robb. Não, Cordyra quis dizer. Não é assim que se joga esse jogo. Os Lannister nunca brincam de contar a verdade. Robb não saberia disso. Prestava atenção ao pai quando ele falava de guerra, mas não quando falava dos assuntos da mesa. –Parece, senhor Lannister, que temos de nos proteger.

                Tyrion franziu as sobrancelhas.

—Mesmo? A Muralha recebeu notícia de que seu irmão estava bem, acordado. Tive esperanças de vê-lo.

—Mandei a notícia para Jon, o meu irmão. –Corrigiu-o Robb, sem responder. Então virou-se para os outros homens. –Confio que ele esteja se adaptando bem à Patrulha da Noite? São bem-vindos em Winterfell, e eu mesmo pretendo fazer-lhes uma visita qualquer dia.

                Os homens se entreolharam.

—Agradecemos, senhor. O senhor seu pai sempre foi amigo da Patrulha. –Respondeu. –Os Starks sempre são bem-vindos em Castelo Negro.

                A língua de Cordyra coçava. Sabia, conscientemente, que Tyrion, e todos os Lannister, eram inimigos. Ainda assim, Tyrion era um anão. Será que, sendo ele tão desprezado, a acharia uma aberração por ser Targaryen. Tyrion sabia dos boatos, que ela agora tinha noção de serem verdadeiros. Mas duvidava que ele fosse guardar o segredo dos dragões. Era uma pena.

                Tyrion olhava para ela. Na ausência de Catelyn, era a senhora de Winterfell, como Robb era senhor, e a hospitalidade cabia às mulheres.

—Tive esperanças de também conseguir acomodações em Winterfell. –Comentou. –Estive aqui em minha ida, e a volta foi ainda mais fria e úmida do que eu poderia imaginar. Não me importaria em ter uma lareira que me aquecesse.

— Qualquer homem da Patrulha da Noite é bem-vindo aqui em Winterfell pelo tempo que desejar ficar - seu noivo dizia com a voz de Robb, o Senhor, impedindo que ela mesma falasse. Tinha a espada pousada sobre os joelhos, mostrando o aço para que todo mundo visse.

— Qualquer homem da Patrulha da Noite - repetiu o anão -, mas eu, não, percebo bem o que quer dizer, meu rapaz.

Rob pôs-se de pé e apontou para o homenzinho com a espada. Cordyra colocou uma mão em cima de seu braço, mas Robb não o abaixou. Sequer pareceu nota-la. Sua mão parecia leve como papel em seu braço de ferro.

— Eu aqui sou senhor enquanto minha mãe e meu pai estiverem fora, Lannister. Não sou seu rapaz.

— Se é um senhor, bem podia aprender a cortesia de um - respondeu o homenzinho, ignorando a ponta da espada apontando para sua cara. - Seu irmão bastardo ficou com toda a elegância do seu pai, ao que parece.

— Jon - Bran arquejou nos braços de Hodor. O anão virou-se para olhá-lo.

                Bran, Hodor e Meistre Luwin haviam entrado discretamente pela porta de trás enquanto a tensão maior ocorria no plano central.

                O anão virou-se para olhá-lo.

— Então é verdade, o rapaz está vivo. Quase não acreditei. Vocês, os Stark, são difíceis de matar.

— E é bom que vocês, os Lannister, se lembrem disso - disse Robb, baixando a espada. - Hodor, traga meu irmão aqui.

— Hodor - o gigante repetiu, e trotou em frente, sorrindo, e pousou Bran no cadeirão dos Stark, onde os Senhores de Winterfell se sentavam desde os tempos em que chamavam a si próprios Reis do Norte.

A cadeira era de pedra fria, polida por incontáveis traseiros; as cabeças esculpidas de lobos selvagens rosnavam nas pontas de seus maciços braços. Bran agarrou-as ao se sentar, com as pernas a balançar. Cordyra sorriu para ele, mas Bran não a olhava. Robb pôs uma mão no ombro do irmão.

— Você disse que tinha assuntos a tratar com Bran. Pois bem, aqui está ele, Lannister.

— Disseram-me que era um belo escalador, Bran - disse o homenzinho. - Diga-me, como caiu naquele dia?

— Eu nunca - insistiu Bran, mas foi logo interrompido.

— O rapaz não se recorda nada da queda, nem da escalada que a precedeu - disse Meistre Luwin com gentileza.

— Curioso - Tyrion Lannister respondeu.

— Meu irmão não está aqui para responder a perguntas, Lannister - Robb foi conciso no aviso. - Trate logo do que o trouxe aqui e ponha-se a caminho.

— Tenho um presente para você - disse o anão a Bran. - Gosta de montar a cavalo, rapaz?

                Meistre Luwin adiantou-se.

— Senhor, a criança perdeu o uso das pernas. Não pode se sentar sobre um cavalo.

— Besteira - Lannister respondeu, - Com o cavalo e a sela certos, até um aleijado pode montar.

                Cordyra observou Bran agarrar-se à cadeira, suas mãos muito magras como garras nos braços do cadeirão.

— Eu não sou um aleijado!

— Neste caso, eu não sou um anão - retrucou o anão, torcendo a boca. - Meu pai se alegrará quando souber

Greyjoy riu ao seu lado. Cordyra podia sentir a vibração de sua risada.

— Que tipo de cavalo e sela está sugerindo? - Perguntou Meistre Luwin.

— Um cavalo inteligente - Lannister respondeu. - O rapaz não pode usar as pernas para dirigir o animal, portanto, tem de se ajustar o cavalo ao cavaleiro, ensinar-lhe a responder às rédeas, à voz. Eu começaria com um potro não domado de um ano, sem ensinamentos antigos - tirou do cinto um papel enrolado. - Entregue isto ao seu fabricante de selas. Ele tratará do resto.

                Meistre Luwin recebeu o papel da mão do anão, curioso como um pequeno esquilo cinzento. Desenrolou-o e o estudou.

— Estou vendo. Desenha bem, senhor. Sim, isto deve funcionar. Deveria ter pensado nisto.

— Para mim é mais fácil, Meistre. Não é muito diferente das minhas selas.

— Serei mesmo capaz de montar? - Perguntou Bran.

— Será - disse-lhe o anão. - E juro, meu rapaz, sobre o dorso de um cavalo, será tão alto como qualquer deles.

Robb Stark pareceu confuso.

— Isto é alguma armadilha, Lannister? O que Bran representa para você? Por que quer ajudá-lo?

— Seu irmão Jon me pediu. E tenho um ponto fraco no coração por aleijados, bastardos e coisas quebradas - Tyrion Lannister pôs a mão sobre o coração e mostrou os dentes.

Cordyra, que começara desde cedo a aprender sobre o que era ser um bastardo, sentiu a pontada como se fosse dirigida a ela, embora claramente não fosse o caso. De qualquer forma, Jon confiava no anão. O que a impedia de confiar também.

Lealdade, lembrou-se. Era leal aos Stark.

A porta que dava para o pátio foi escancarada. A luz do sol jorrou pelo salão no momento em que Rickon entrou de repente, sem fôlego. Os lobos gigantes vinham com ele. O rapaz parou na porta, de olhos muito abertos, mas os lobos entraram. Seus olhos encontraram Lannister, ou talvez tivessem farejado seu odor. Verão foi o primeiro a começar a rosnar. Vento Cinzento juntou-se a ele. Aproximaram-se do homenzinho, um pela direita, o outro pela esquerda.

— Os lobos não apreciam seu cheiro, Lannister - comentou Theon Greyjoy.

— Talvez seja hora de me retirar - disse Tyrion. Deu um passo para trás... e Cão Felpudo saiu das sombras atrás dele, rosnando. Lannister recuou, e Verão precipitou-se sobre ele, vindo do outro lado. Cambaleou para longe, sobre pernas instáveis, e Vento Cinzento atacou-lhe o braço, rasgando-lhe a manga com os dentes e arrancando um pedaço de pano. Norte, ao invés, subiu no estrado, a menor entre eles, e colocou a cabeça por debaixo da mão de Cordyra, que se precipitou para Robb.

—Diga-os que parem. –Sussurrou furiosamente no ouvido do noivo.  

— Não! - Gritou Bran do cadeirão ao mesmo tempo em que os homens de Lannister agarraram as armas. - Verão, aqui. Verão, venha!

O lobo gigante ouviu a voz, deu uma olhadela em Bran, e de novo em Lannister. Rastejou para trás, para longe do homenzinho, e sentou-se sob os pés oscilantes de Bran. Robb prendera a respiração. Largou-a num suspiro e chamou: "Vento Cinzento". Seu lobo gigante moveu-se em sua direção, rápido e silencioso. Agora restava apenas Cão Felpudo rugindo ao pequeno homem, com os olhos ardendo como fogo verde.

— Rickon, chame-o - gritou Bran para o irmão mais novo, e Rickon, como que acordando, gritou: - Para casa, Felpudo, anda, para casa!

O lobo negro dirigiu a Lannister um último rosnado e saltou para Rickon, que lhe deu um abraço apertado em torno do pescoço. Tyrion Lannister desenrolou o cachecol, limpou com ele a testa e disse em voz monocórdia:

— Que interessante.

— Está bem, senhor? - Perguntou um de seus homens, de espada na mão. Olhava nervosamente os lobos gigantes enquanto falava.

— Tenho a manga rasgada e os calções úmidos por motivos inconfessáveis, mas nada foi ferido, além da minha dignidade.

Até Robb parecia abalado.

— Os lobos... não sei por que fizeram isso.

— Não há dúvida de que me confundiram com o jantar - Lannister fez uma reverência rígida a Bran. - Agradeço-lhe por tê-los chamado, meu jovem. Garanto-lhe que me teriam achado bastante indigesto. E agora, realmente, retiro-me.

— Um momento, senhor - disse Meistre Luwin. Aproximou-se de Robb e os dois conferenciaram muito, aos sussurros. Bran tentou ouvir o que diziam, mas suas vozes eram baixas demais. Cordyra podia ouvir o tom de repreensão gentil na voz do Meistre e, quando Robb baixou a cabeça, os cabelos vermelhos caíram sobre os seus olhos como quando ele era um garoto. Robb Stark finalmente embainhou a espada:

— Eu... eu posso ter me precipitado com o senhor. Foi bondoso com Bran e, bem... - Robb reconciliava-se com esforço. - Ofereço-lhe a hospitalidade de Winterfell se assim desejar, Lannister.

— Poupe-me de sua falsa cortesia, rapaz. Não gosta de mim e não me quer aqui. Vi uma estalagem fora das suas muralhas, na vila de inverno. Encontrarei ali uma cama e ambos dormiremos mais facilmente. Por alguns cobres até talvez encontre uma mulher agradável que me aqueça os lençóis - virou-se para um dos irmãos negros, um homem idoso com a coluna torcida e a barba emaranhada. - Yoren, seguimos para o sul ao nascer do dia. Encontre-me na estrada.

Retirou-se, atravessando o salão com dificuldade sobre as curtas pernas, passando por Rickon e pela porta. Seus homens o seguiram. Os quatro da Patrulha da Noite ficaram. Robb virou-se para eles aparentando incerteza.

— Mandei preparar aposentos, e não lhes faltará água quente para lavar a poeira da estrada. Espero que nos honrem com sua presença à mesa esta noite - Robb disse aquelas palavras de forma tão desastrada que Cordyra fez uma careta; era um discurso que tinha aprendido, não palavras que lhe viessem do coração, mas os irmãos negros agradeceram-lhe da mesma forma.

                Meistre Luwin saiu da sala, levando consigo so doze guardas de Winterfell, para mostrar aos homens da Patrulha seus aposentos. Tyrion Lannister também saiu, sem olhar para trás, bamboleando sobre suas pernas desiguais. Quando estavam apenas quatro no salão, Robb se deixou cair no cadeirão do pai com um suspiro cansado, e Theon Greyjoy riu alto e longamente.

                Ele bateu no ombro do jovem Stark, e trocou um olhar com Hallis Mollen, que apenas lhe devolveu seriedade:

—Viram a cara do Duende? –Ele riu-se mais um pouco. –Ora! Os lobos são maiores que ele! O cheiro de merda subiu num instante!

                Cordyra era incapaz de continuar a segurar a língua. Virou-se de frente para Robb. Ele a encarou de volta.

—Foi um tolo. –Disse, não sem gentileza. –Acha que os Lannister teriam recusado se pedisse a hospitalidade de Rochedo Casterly? Tyrion foi gentil com Bran, e agora você ganhou um inimigo poderoso sem motivo.

—Não sem motivo. –Robb retrucou. –Meu irmão ficou aleijado por conta deles. –Então, num tom mais baixo. –Theon, Hallis, podem ir.

                Os dois pareceram felizes de deixar o salão. Quando estavam sozinhos ali, sem música nem guardas, pareciam duas figuras muito pequenas num espaço muito grande. Como se fossem bonecas dentro de um castelo verdadeiro. Robb a olhava em fúria.

—Preferia que não me reprimisse na frente dos meus homens. –O modo como ele falou “meus homens” lembrou a Cordélia que, em muitas Casas, as lealdades do senhor e da senhora não eram as mesmas. Ela baixou a cabeça, sentindo-se vazia.

—Então falemos agora que eles se foram. –Pediu Cordélia. A luz que entrava pelas janelas ovais estava mais escassa a cada momento. O fim do verão se aproximava, e, com ele, os dias ficavam cada vez mais curtos. –Admite que agiu mal? Não apenas fez inimizade com um grande lorde, pois lembre-se que ele é o herdeiro do Rochedo, mas também agora não posso pergunta-los sobre os dragões.

                A expressão de Robb era incendiária.

—Ele ficaria aqui e saberia sobre os dragões?  –Sua voz era um rosnado, como o de Vento Cinzento. –É também uma tola se pensa que ele não diria.

                Cordyra hesitou, cruzando os braços sobre o peito, de forma a se proteger. Jamais pensara que precisaria se proteger contra as palavras de Robb. Queria as suas respostas, mas pareceria inocente se dissesse que confiaria na palavra de Tyrion se ele prometesse não contar. Até ela tinha de admitir.

—Parece que somos um belo casal de tolos, então. –Disse, finalmente.

                No jantar, Robb não se sentou à cabeceira da mesa, no lugar de seu pai, mas no lugar à direita, de frente para Bran. Naquela noite, comeram leitão, torta de pombo e nabos nadando em manteiga, e, para depois, o cozinheiro prometera favos de mel. Os lobos não estavam junto à mesa, pois não comiam mais com eles, e sim num canto mais afastado. Bran alimentava Verão com as sobras de seu prato, e Cordyra sentava-se tão longe de Robb quanto conseguia.

Yoren era o irmão negro de maior patente, e assim o intendente fizera-o sentar-se entre Robb e Meistre Luwin. O velho tinha um cheiro azedo, como se há muito não tomasse banho. Rasgava a carne com os dentes, quebrava as costeletas para sugar o tutano dos ossos, e encolheu os ombros quando o nome de Jon Snow foi mencionado.

— A desgraça de Sor Alliser - grunhiu, e dois de seus companheiros partilharam uma gargalhada. Mas, quando Robb lhes perguntou por notícias de seu tio Benjen, os irmãos negros fecharam-se num silêncio agourento.

— O que está acontecendo? - Bran perguntou.

Yoren limpou os dedos em suas vestes.

— Há más notícias, senhores, uma maneira cruel de retribuir-lhes a carne e o hidromel, mas o homem que faz a pergunta deve aguentar a resposta. O Stark desapareceu.

Um dos outros homens disse:

— O Velho Urso o enviou para o exterior em busca de Waymar Royce, e ele ainda não voltou, senhor.

— Está muito atrasado - disse Yoren. - O mais certo é que esteja morto.

— Meu tio não está morto - exclamou Robb Stark em voz alta e num tom irritado. Ergueu-se no banco e pousou a mão no cabo da espada. - Ouviram-me? Meu tio não está morto! - Sua voz ressoou nas paredes de pedra, e Bran moveu-se desconfortável em seu lugar. Cordyra desejou ter sentado mais perto de Robb, mesmo quando a sua voz ecoou no salão de forma agourenta.

O velho e malcheiroso Yoren olhou para Robb sem se impressionar.

— Com certeza, senhor - respondeu, e sugou os dentes para soltar um fiapo de carne preso.

O mais novo dos irmãos negros moveu-se desconfortavelmente no assento.

— Não há homem na Muralha que conheça a Floresta Assombrada melhor que Benjen Stark. Ele encontrará o caminho de volta.

— Bem. -Disse Yoren –Talvez sim, talvez não. Já houve bons homens que entraram nesses bosques e jamais voltaram.

—Robb tem razão. –Cordyra endossou. Os olhos azuis do noivo relampejaram em sua direção. –Esses homens não eram Stark.

                Yoren encolheu os ombros, desinteressado, mas não era a aprovação e Yoren que ela estava procurando.

                A mesa estava quase silenciosa, e Cordyra havia se convencido a colocar um pouco de carne na boca, quando Bran exclamou:

— Os filhos o ajudarão - Bran exclamou -, os filhos da floresta!

Theon Greyjoy soltou um riso abafado, e Meistre Luwin disse:

— Bran, os filhos da floresta morreram e desapareceram há milhares de anos. Tudo o que deles resta são as caras nas árvores.

— Aqui pode ser que seja verdade, Meistre - Yoren respondeu -, mas lá, depois da Muralha, quem pode dizer? Lá em cima, um homem nem sempre consegue saber o que está vivo e o que está morto.

                Cordyra conseguiria. Havia tocado na pele de Robb por debaixo da camisa algumas vezes, e era quente e macia, e ela poderia sentir estar viva. Havia visto, outras vezes, a respiração de Jon se condensar no ar frio de inverno, e vira o peito de Rickon subir e descer em seu sono, e visitara mais de duzentas vezes as criptas de Winterfell para ter conversas com um pai morto que jamais a respondia. Ela reconhecia seus vivos e seus mortos em qualquer lugar.

                Ao fim da refeição, os pratos foram tirados e os homens da patrulha começaram a se levantar para ir aos seus aposentos. Teriam de acordar cedo na manhã seguinte, disseram. Robb os dispensou, depois se inclinou sobre a cadeira de Bran e o pôs nos braços. Então, andou, levando o irmão mais jovem para fora do salão. Cordyra ficou sozinha quando todos se foram, desejando ter se sentado ao lado de Robb, para pedir que ele fosse ao seu quarto depois de se despedir de Bran.

                Ao invés de voltar ao seu próprio quarto –aos seus dragões desgostosos de estarem presos, à sua loba impaciente em cuidar deles, e à Jocelyn, sempre ávida por ajuda-la, por lavar seus pés, oleá-la com lavanda, escovar seus cabelos –Cordyra fez o caminho na direção do quarto de Robb, com os archotes ao longo do caminho lançando longas sombras bruxuleantes nas paredes, dançando à melodia dos ventos de outono.

                O quarto de Robb era um dos mais frios do castelo, porque ele sempre deixava as janelas abertas, e essas janelas eram viradas para o Norte. Havia muitas colinas e montanhas no caminho, e por isso era impossível ver a Muralha, mas, quando eram crianças, às vezes ela, Jon e Robb se empoleiravam ali e fingiam conseguir ver a mais alta construção dos Sete Reinos, se erguendo em direção ao céu, como uma escada para os deuses.

                Agora, quando Cordyra encarou a escuridão imensa do lado de fora, imaginou não só que via a Muralha, mas que também podia ver Castelo Negro, e a janela onde Jon se apoiaria para fora, tentando ver Winterfell de volta.

                Em pouco tempo, ficou frio demais para estar perto da janela, embora ela também não a tenha fechado. Passara a infância tendo que provar que, com seus cabelos dourados-pálidos e olhos púrpuras, era uma Stark ainda assim. Isso significava que se forçava a aguentar a neve e o frio por mais tempo que os primos, e que se sentava mais longe da lareira, embora o fogo sempre a tivesse parecido mais sedutor que o frio. Agora, que não havia mais porque negar sua ascendência –estava não mais apenas em seu rosto, mas também em seu quarto, esperando por ela –se permitiu sair da janela quando seus dedos ficaram dormentes.

                Não ousou sentar-se na cama de Robb a esperar. Ao invés disso, colocou-se na escrivaninha, de onde podia ver todo o quarto. Era um aposento menor que o seu, e mais rústico de forma geral. Cordyra tinha uma penteadeira, onde exibia perfumes e tiaras, mas Robb tinha apenas uma cama coberta de peles, uma arca onde mantinha suas roupas, um suporte para sua espada e uma escrivaninha de madeira crua, sem decorações.

                Enquanto ela crescera desenhando, pintando, bordando, aprendendo músicas e instrumentos e falcoando com Sansa e Arya –a única atividade que ambas as irmãs pareciam gostar igualmente –, Robb crescera com Jon, seguindo lorde Eddard de perto, ouvindo seus conselhos, batendo espadas, caçando e atirando com bestas e arcos de flechas. Quando tinham aulas de histórias com o Meistre Luwin, onde Cordyra e Sansa suspiravam pelo amor entre a princesa Naerys e seu irmão, Aemon, Cavaleiro de Dragão, Robb percebia os erros de gestão e de governo em Aegon, o Indigno.

                Ele chegou tarde da noite. A vela que ela acendera estava quase se apagando, o pavio consumido a um quarto do total, e a cera se espalhando pelo candelabro como sangue vermelho, manchando a prata e ameaçando se derramar sobre a madeira. Ela estava bamboleando entre o dormir e o acordar, e, no sonho, os passos de Robb vindo pelo corredor eram os passos de um alto homem louro, de olhos violeta, cantando uma adorável canção em um alaúde.

                Mas então Robb abriu a porta e havia apenas ele, delineado pela luz dos fogos no corredor como um halo sobre seus cabelos vermelhos.

                Ele pareceu surpreso em vê-la, os olhos perigosamente brilhantes, mas, depois de um minuto de hesitação, entrou no quarto. Não foi na direção dela, mas na cama. Robb sentou-se na beira, e o peso fez com que o colchão e as peles cedessem embaixo dele. O garoto então colocou o rosto entre as mãos. Cordyra deslizou pelo quarto com passos rápidos e sentou-se ao lado dele. O peso dele na cama a fazia se inclinar naturalmente em sua direção. Ela deu três tapinhas em sua mão com um dedo ligeiro.

                Robb respirou fundo, como se segurasse a respiração há tempo demais. 

—Diga-me o que fazer. –Pediu ele. –Sinto que faço tudo errado. Rickon e Bran precisam de mim, e eu não sei o que oferecer a eles. Devo alimentar ou podar as fantasias de Bran? E quanto a Rickon? O distanciamento de seus pais fará dele um garoto forte, ou amedrontado de tudo? Como posso ser o seu marido quando não sei do que precisa?

                Ao invés de responder, ela colocou a mão nos ombros dele, e o obrigou a virar-se na cama, de forma que o peso dele se apoiava sobre ela, ao invés do contrário. A cabeça de Robb sobre seus ombros era mais pesada do que ela se lembrava. O rosto perdera parte da suavidade de garoto, e ficara mais afiado nas bordas. Os olhos, sempre alternando entre a dureza de lorde e a doçura de ser irmão, pareciam mais cansados nos cantos. Não era uma posição confortável, mas Cordyra a segurou mesmo assim, os braços ao redor dele.

—Você deve se apoiar em mim. –Ela disse, finalmente. –Também deve continuar sendo corajoso. Você tem sido tão corajoso.

                Robb começou a balançar a cabeça, mas ela o apertou com mais força, forçando-o a parar o movimento, mas ele insistiu até estar livre de seu aperto. Ele colocou as mãos em seus braços, e ela podia sentir a firmeza de seu aperto mesmo sob as roupas.

—Os Lannister não podem sair ilesos disso. –Ele rosnou. Seus olhos ainda brilhavam, mas agora de fúria. –Levaram meus pais, e minhas irmãs. Eu não devia ser lorde ainda.

                Não é sobre você, ela pensou, mas não disse, porque era sobre ele. Quando se tinha uma família, qualquer maldição caída sobre ela também é sobre sua cabeça. A matilha apenas sobrevive o inverno se permanece unida, mas metade dela estava no Sul.

—Seus pais estão cuidando disso. –Cordyra conhecia Robb; ele era impetuoso, e não acreditava de fato ser capaz de perder nada, porque nunca perdera. –Quanto a Bran... Robb, ele é o herdeiro de Winterfell depois de você. Espero que nada nos aconteça, mas, se acontecer...

—O que devo dizer a ele? –Robb perguntou, inseguro.

—Leve-o para suas reuniões com Hallis Mollen e Theon. –Sugeriu ela. –Ele pode ser útil. É um menino inteligente, e sempre foi criativo.

—Você é inteligente e criativa, e sempre vai às reuniões. Bran é jovem. Se algo acontecer comigo, você estará lá para ele. –Ela não o corrigiu, mas não via assim. Como algo poderia acontecer apenas a ele, quando ele era parte intrínseca dela? Robb continuou. –Quanto aos dragões... alguém saberá, em breve. Vão crescer.

—Podem demorar anos para crescer. –Ela disse, sem esperanças. –Mas, sim. Vão vê-los voando. As notícias, porém, vão viajar devagar. E mesmo quando chegarem ao Sul, ninguém vai acreditar até pôr os olhos neles.

—É mais que isso. –Robb passou a mão pelos cabelos. –Recebi uma mensagem de Howland Reed. Um corvo. Não comentei com mais ninguém, além de Meistre Luwin. Diz ele que a ilhas flutuantes no pântano dos cranogmanos estão mais suscetíveis, mais voláteis.

—O que isso tem a ver com meus dragões? –Cordyra não compreendia.

—Meistre Luwin diz que a magia foi embora do mundo quando os dragões se foram. –Robb respondeu cuidadosamente. –Em seu retorno, a magia começa a fluir novamente.

                Cordyra fixou os olhos no fogo da lareira do quarto. Estavam falando baixo, sussurrando, embora ninguém os pudesse ouvir ali. O segredo era grande demais para ser dito em voz alta, ela supôs. Além de assustador. Ela tentava não pensar muito sobre as implicações práticas de ter dois pares de dragões, mas precisava encará-las. Os homens viriam até ela, a procura de favores, como aliada de guerra. Cordyra não era guerreira alguma. Esse era o bom cenário. O mais provável era que a acusassem de ser uma Targaryen, e matassem seu tio como traidor. O rei havia parecido ser seu amigo, mas era uma revelação grande demais para ser suportada.

—Vão matar seu pai por isso. –Cordyra o encarou nos olhos. No escuro, os olhos de Robb eram um céu sem estrelas. –Será minha culpa.

—Não vão mata-lo. –Robb disse com convicção. Mas foram palavras vazias, como no jantar, sobre o tio Ben. –O Norte inteiro se levantaria contra isso.

                Ela concordou com a cabeça. Então disse:

—Tem de escrever à Patrulha da Noite e pedir mais detalhes sobre o sumiço de nosso tio. –Avisou a ele. Os patrulheiros haviam dito que eles seriam bem-vindos em Castelo Negro, e parte da ansiedade de Cordyra com o casamento vinha da vontade de pegar seu castrado preto e se dirigir para o Norte, em direção ao Meistre Aemon.

                Robb acenou em concordância. A raiva ainda não deixara seu corpo com completo, mesmo com a mudança de assunto. Ele se inclinou sobre ela de novo, e respirou fundo, controlando-se.

                Ele era quente debaixo dela. No quarto de janelas abertas, tudo era frio, mesmo as peles sobre as quais eles se sentavam. Ela mesma sentia que era fria demais ali. Mas não Robb; ele era tão quente como se houvesse acabado de sair de um banho. Ele colocou sua testa na dela, e na luz escura, eles não pareciam tão diferentes entre si.

                Os lábios dele eram macios quando roçaram nos dela.

Ele a beijou. Talvez tivesse a intenção de ser um beijo rápido, mas ela não conseguiu se segurar: Cordyra beijou de volta. E foi como respirar depois de ficar soterrada por semanas, como emergir para a luz do sol depois da escuridão.

Robb a segurou pela cintura, puxou-a firme contra o corpo, sua boca se inclinando sobre a dela. Cordyra já o beijara antes, e sempre tinha sido intenso, uma experiência que destruía todos os seus sentidos. Mas havia algo de diferente naquele beijo. Ela nunca sentira um desespero tão descontrolado nele, uma chama tão arrebatadora de desejo e fúria e amor, um redemoinho que parecia girá-la até o alto da atmosfera, onde ela mal conseguia respirar.

Robb a beijou, e foi como se toda a vida de Cordyra fosse desmontada, e recomposta de uma forma nova e diferente.

Ele a girou gentilmente, uma mão na altura na cintura a empurrando contra a cama. Robb era ainda mais pesado por cima dela do que havia sido ao apoiar a cabeça em seu ombro, mas era prazeroso se sentir pressionada contra ele. Robb tinha um gosto metálico, mas também algo mais doce e encorpado, como mel. Ele se agarrou a ela, as mãos em seus quadris, apertando sua cintura, com desespero tal que era como se temesse que ela fosse desvanecer sob ele. Cordyra o agarrou de volta quando igual desamparado, segurando a frente de sua camisa e retribuindo o beijo, suas línguas se envolvendo, e os lábios se pressionando, com tanto ímpeto que ela achou que seu sangue e carne estavam se desfazendo e virando pó.

—Fique aqui. –Ele murmurou sobre sua boca, sem se afastar nem um pouco. Sua voz era rouca, rica com tons novos de desejo e calor. –Durma aqui.

                Um dia, a Septã Mordane a ensinara que jamais deveria ficar sozinha com outro homem que não fosse de sua família. E, no caso dela em especial, nem mesmo isso. Se houvesse o mínimo rumor de que Robb a deflorara de alguma forma –talvez nem mesmo com um ato, mas a insinuação –então sua reputação estaria arruinada, e a forçariam a casar com algum nobre rude, grosseiro e velho de uma Casa menor.

                Com a boca de Robb percorrendo sua pele por toda parte, porém, ela não poderia se lembrar da Septã Mordane de forma alguma. O mundo se resumia a isso: o roçar de lábios dele na base de sua garganta, a respiração quente em sua nuca, as mãos subindo e descendo em seu vestido, agarrando o tecido e a pele por baixo. Era ligeiramente doloroso, a urgência com que ele fazia tudo, mas de uma forma que a enviava arrepios pela coluna.

                Ela moveu o corpo, tentando o alcançar também. Se inclinou para cima para beijá0lo de volta no pescoço, da mesma forma como ele havia acabado de fazer com ela. Robb congelou, paralisado em seu lugar, enquanto ela explorou o espaço debaixo do colarinho da camisa dele com a boca, então com a língua.

                Ele fez um barulho vindo do fundo da garganta, e por um segundo pareceu mais lobo do que garoto.

                Então, para a sua surpresa, girou para longe dela com destreza. Tinha um rosto vermelho e afogueado, como se tivesse bebido, o rubor vindo de dentro da camisa, fazendo manchas escarlate em suas bochechas. Seus olhos brilhantes eram escuros como a noite quando olhou para ela, deitada na cama. Ele a bebeu por um segundo com os olhos.

—Você precisa ir. –Sua voz rouca era subjugada quando fez isso, e pareceu haver um enorme esforço envolvido na tarefa de pronunciar as palavras, como se elas fossem lâminas na garganta dele.

                Cordyra concordou com um aceno, jogou as pernas para fora da cama, e saiu sem olhar para trás.

                Quando chegou no corredor, ela sentiu as pernas moles, dormentes. Quis apoiar-se numa parede, e se deixar cair até o chão. Ao invés disso, ela correu. Correu como se houvesse alguma coisa atrás dela, quase mordendo seus calcanhares.


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