Filha de Gelo e Fogo escrita por Dafne Guedes


Capítulo 10
Senhora e Criada


Notas iniciais do capítulo

Mais uma vez estou colocando a história no ponto de vista da Jocelyn. Farei duas postagens hoje, para compensar o capítulo curtinho.
XOXO
A música do capítulo é Exeunt, da banda The Oh Hellos.



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"I was all alone, we were young, you were like wine
Heady as the fog rolling in o'er the hillside
Lovely as the song in the air as the wind blows
Opiate as the cold of the frost on the windows
Lo, the rose is gone from my eyes, so deceiving
So, my little dove, I'm afraid I am leaving"

 

Jocelyn limpou o quarto; estava sempre beirando o sujo desde que os dragões chegaram. Eles lutavam pela comida, e espalhavam pedaços de carne esturricada pelo chão. A loba era menos ruim, mas tinha longos pelos hirsutos, que eventualmente cobriam o chão em fiapos ruivos como sangue. Então Jocelyn limpou; debaixo da cama, na escrivaninha, nas arandelas que adornavam as paredes e por dentro da lareira. Havia uma escrivaninha, cheia de cartas e listas e notas e livros, mas Jocelyn não os compreendia, então apenas limpou. Também havia uma penteadeira, com um pesado espelho de prata apoiado sobre ela.

                O frasco de perfume era roxo e dourado, vistoso como uma joia, com um borrifador lilás e macio. Jocelyn o apertou por um segundo, e o cheiro de flores de lavanda preencheu o quarto como se a senhora Cordyra tivesse passado pela porta. Culpada, Jocelyn guardou tudo rapidamente, espanando com eficácia.

Foi até o lado de fora, onde pegou lenha nova, e a levou para o quarto. Quando voltou, os dragões estavam lá, mas sem a senhora Cordyra.

                Já não tinha medo dos dragões como tivera à princípio. Reconheciam-na como amiga, e, às vezes, Cordyra fazia com que ela os alimentasse, para que se acostumassem com ela. Suas escamas tinha uma textura macia e estranha, mas era uma sensação que melhorava com a familiaridade. Agora, até mesmo os achava bonitos.

                O melhor de tudo era que a senhora Cordyra a estava ensinando a ler. Não tinha muito tempo para isso, mas disse que a criada da futura senhora de Winterfell devia ser capaz de ler suas cartas. Até agora, apenas estava ensinando a Jocelyn sobre cada letra, e os sons que fazia, mas nunca antes ela tinha pensado ser capaz de reconhecer a palavra escrita, e a ideia a excitava.

                Pensava nisso alegremente quando a porta do quarto se abriu com um estrondo e a senhora Cordyra entrou, o rosto avermelhado, os cabelos desgrenhados como se houvesse corrido uma milha, um sorriso de um canto ao outro do rosto. Pareceu surpresa em vê-la ali, embora não devesse estar, mas logo sua surpresa foi trocada por alegria, e ela abriu um sorriso ainda mais largo.

—Oh, Jocelyn! –Exclamou com o tipo de alegria inocente reservada às meninas nobres. –Abra a primeira gaveta de minha escrivaninha e pegue todos os papéis ali guardados. Amanhã vamos até a sala de desenho, temos milhões de planos a fazer, contas, pedidos, doces e decorações. Tudo deve ser nas cores do Norte, cinza e branco.

                O lugar de uma criada era ouvir e obedecer a sua senhora, mas Jocelyn esqueceu-se disso e riu.

—Qual o evento, senhora Cordyra?

                Cordyra não se importou com sua ousadia.

—Ora! Meu casamento com o senhor Robb. –Sorriu amplamente, consciente do peso do anúncio que dava. –A senhora Catelyn vinha planejando para que nos casássemos aos quinze anos. Mas, com o senhor meu tio longe, Robb será um senhor muito mais respeitável aos vassalos de Winterfell se tiver uma esposa. Já tive meu primeiro sangue alguns meses atrás. Robb está escrevendo uma carta para o seu pai, pedindo a permissão dele, agora mesmo. Talvez até possamos fazer a festa em Porto Real, para que as meninas participem. É pouco provável que voltem apenas para isso, afinal é uma longa viagem.

                A pequena senhora deu um suspiro exasperado antes de continuar:

—Sem a senhora minha tia para ajudar-nos, teremos o dobro de trabalho. Devemos cuidar da lista de convidados, com todos os senhores nortenhos, incluindo os Flint, os Liddle, Norrey e Wull das montanhas. Devemos encomendar flores, não da Campina, mas as Rosas de Inverno do Norte. Tudo deve ser bastante nortenho. O casamento deve ser perante os velhos deuses dos Stark.

—O outono é tempo de gelardentes, senhora. –Apontou Jocelyn, pensando que as belas flores vermelhas combinavam com a determinação na personalidade da jovem senhora.

                Ela pensou ter visto Cordyra murchar um pouco em seu belo vestido de lã azul-anis, mas poderia ter sido um engano. O rosto da senhora ainda era na maior parte do tempo um grande mistério; parecia só expressar o que ela queria que expressasse.

—Gelardentes são flores vermelhas. –Disse ela. –Na presente situação, talvez não seja bom lembrar a ninguém das cores do sangue e do fogo, ou podem fazer uma associação má intencionada.

                Às vezes, Jocelyn ainda se esquecia qual a importância do sangue para os nobres. Era uma bastarda, e isso significava alguma coisa, mas significaria muito mais para a senhora Cordyra ser filha de uma rainha deposta e morta com um Stark de sangue quente como todos diziam que havia sido o senhor Brandon.

—É claro, senhora. –Concordou Jocelyn. Havia muito a aprender, mas a jovem senhora Stark nunca a ensinava com um tom duro, como se fosse burra. Quando levantou os olhos, novamente, era encarada pelas brilhantes órbitas púrpuras de sua senhora.

                Esperou.

—Sabe se defender, Jocelyn? –Cordyra perguntou, parecendo ter real curiosidade.

                A bastarda pensou nos homens que tentavam subir em sua cama na calada da noite quando era ajudante de cozinha, e nos chutes que levavam. Às vezes, era preciso ir à Vila de Inverno junto com Gage, para ajudá-lo a trazer de volta os ingredientes. Voltavam a Winterfell com carroças carregadas de queijo fedorento, mel, vinho, frutas secas e frutas frescas, grãos, castanhas, carnes, cogumelos e frutos-do-mar. O lorde Eddard gostava de comprar do comércio local para encher os bolsos de seu povo. Porém, na Vila de Inverno, os homens não eram os velhos conhecidos de Winterfell e a descascavam as roupas com os olhos, embora as usasse feias e sem-graça.

—Os homens não chegam a me aborrecer, se é isso que pergunta, senhora. –Respondeu cuidadosa.

                Cordyra torceu a boca ligeiramente. Tinha uma boca de senhora; carnuda e macia debaixo de um nariz adoravelmente empinado. Nem todos os lordes eram apaixonados por suas senhoras, mas Jocelyn sabia que o senhor Robb a adorava. Jocelyn o compreendia por completo.

—Bom. –Cordyra pontuou, então andou para perto dela e segurou suas mãos. –Vou mandar que Sor Rodrik a ensine algumas coisas quando voltar. Por enquanto, já falei com Hallis Mollen. É um bom homem. Disse-me que a ensinaria a usar um machado. O casamento trará muitos homens a Winterfell, e a história de meus dragões se espalhará. Vão vir atrás deles, e vão encontra-la no caminho. Talvez pensem que é uma dádiva, mas você os provará que não. Teremos todos que ser mais cuidadosos em Winterfell a partir de agora.

                Jocelyn não podia negar a lógica de sua linha de pensando. Exceto...

—Senhora. –Interviu. –Não acho que o sr. Mollen vai treinar uma mulher.

                Cordyra riu; uma risada de verdade. Seus olhos brilhavam muito quando ela ria, e sua boca formava um bonito arco que rasgava o rosto de um lado a outro.

—Ah, Mollen vai fazer o que Robb disser. –Ela ainda tinha um traço de riso no rosto. –A não ser que você não queira, é claro.

                Jocelyn pensou nos cavaleiros e nos homens de arma, na calma tranquila com a qual eles se portavam, no modo confiante com que andavam, fosse nos castelos, nas estradas ou nas cidades. Pensou em como as mulheres olhavam-nos com admiração, sem pudor.

—Eu adoraria, senhora. –Se ouviu admitir, embora não tivesse pensando nas palavras. Depois se recompôs. –Mas, senhora, onde eu esconderia uma arma em meu vestido? Não seria digno de uma moça sair com uma espada amarrada às costas.

                O olhar violeta de Cordyra era divertido. Ela olhava para baixo, e seus cílios eram como pétalas de flores emoldurando os olhos.

—Ora, Jocelyn, não será uma maça! Arrumaremos algo discreto, que possa carregar entre as saias. –Sua voz era brilhante como seu rosto, cheia de alegria sem condições. –Talvez devesse também aprender a ler. Assim poderá me ajudar melhor com o casamento, escrevendo notas com pedidos. Oh, bolo de laranja e bolinhos de limão. Frutas da estação, amoras e framboesas nortenhas...

                Batidas fracas, mas audíveis na porta, encerraram suas fantasias. Jocelyn foi atender, pois estava aliviada. A ideia de aprender a ler e escrever era demais, embora pudesse aceitar se defender por conta própria. Não era permitido à sua classe social, e Cordyra provavelmente estava enganando a si mesma se achava que alguém a ensinaria, de fato.

                Do outro lado da porta estava o jovem Rickon, seu lobo atrás dele, parecendo agitado. Jocelyn instintivamente foi-se para trás. Não se incomodava mais com a companhia da loba Norte, ou dos lobos Verão e Vento Cinzento, mas o Felpudo era uma coisa escura, desgrenhada, de aparência abandonada.

                Cordyra surgiu por de trás dela.

—Meu bebê. –Ela foi à frente e pegou o menininho ruivo no colo, à despeito dos dentes de seu lobo, à mostra. –Ora, quem deixou você perambulando sozinho? A Velha Ama dormiu de novo? Bem, é verdade que ela já está mesmo velha e cansada.

                O trio entrou no quarto enquanto Jocelyn se espremia contra a porta para deixá-los passar. A senhora Cordyra andou até a cama, onde despejou o garotinho no meio das peles. A loba Norte também se aproximou, esfregando o focinho no do outro lobo, o maior e mais escuro.

                Os dois Starks se acomodaram na cama, puxando as peles grossas para cima de seus corpos. Jocelyn correu para apagar as velas do quarto, e estava indo na direção da porta quando uma voz macia se elevou no escuro, sussurrante e ainda rouca de excitação.

—Jocelyn. –Chamou. –É uma noite fria. Entre debaixo das peles conosco.

                Não era uma ordem, apenas um pedido.

                Jocelyn pensou nos dentes brilhantes e brancos do lobo Felpudo à mostra, invisíveis no escuro do quarto, mas certamente ali.

                Então pensou na pele de alabastro de sua senhora.

                Subiu na cama.


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