O tempo é misterioso, rápido, e às vezes até traiçoeiro.

Já se passaram dois meses desde meu primeiro encontro com o mundo sobrenatural. Seguindo o conselho da Aika, treinei todos os dias usando aquela imagem mental ridícula de válvulas e tubos para que eu pudesse ter melhor controle sobre minha energia divina. Ao invés de treinar por apenas 1 hora como ela instruiu, eu me sentaria por pelo menos 3 horas dentro da escuridão do meu quarto. Quando meus pais notaram este hábito, eu lhes disse que comecei a praticar meditação para reduzir o estresse que eu sentia em minhas tarefas escolares. Para meu alívio, ambos caíram nessa.

Como combinado, eu vou regularmente à casa da Aika depois das aulas para praticar, e geralmente até vamos juntos. Isto é uma coisa que Ren e Tatsuo perceberam e, para me irritar um pouco, os dois sempre me enviam sorrisos sugestivos antes que eu me separe deles quando é hora de partir. Bem, eu estou acostumado com as brincadeiras deles e por isso não presto muita atenção, mas Aika ainda fica um pouco alvoroçada, o que eu acho engraçado já que ela é sempre tão brincalhona e confiante.

Nós lutamos por uma ou duas horas todos os dias. Normalmente nossas batalhas sempre terminam em um empate, exceto quando ela decide usar magia, seja para jogar bolas de fogo fracas como distração ou, como acabei de descobrir, para mudar os componentes de seu próprio corpo para transformar uma parte dele em outro material, como, por exemplo, na luta contra o Daeva, quando ela transformou seus braços em metal.

Segundo ela, isto se chama [alquimia interna], algo que eu já tinha ouvido ou avistado um título desses antes em um dos muitos livros em sua casa, mas não tinha ideia do que era ou como funcionava.

Claro que não fui imediatamente derrotado, afinal, descobri como fortalecer pelo menos meus braços, abdômen e tórax com minha energia divina, conseguindo algumas proezas sobre-humanas, mas ainda não foi o suficiente para derrotá-la quando ela entrou no que eu chamo de "modo sério". Nesta etapa, eu sempre me fodia, mas isto tem mudado ultimamente, pois agora o número de vitórias dela diminuiu enquanto as minhas aumentaram.

O que é realmente frustrante para mim é ter conhecimento de que não importa o quanto eu treine, não posso usar aquele ataque de luz branca que eliminou o Daeva e me garantiu a sobrevivência.

Aika pediu para não estressar tanto sobre isso, dizendo que essa habilidade foi despertada por minha força de vontade combinada com a adrenalina, raiva e meu forte desejo de não morrer naquele dia. Em suas palavras "Se você quiser usar esse ataque leve, basta estar à beira da morte novamente".

Mencionando coisas como "à beira da morte"....Às vezes esta mulher diz algumas coisas pavorosas.

Quanto à busca da Aika pelo mestre do Daeva...lamentavelmente não está dando nenhum resultado. Ela disse que qualquer ser que possa usar mana ou energia divina sempre deixa um ligeiro traço dessa energia para trás, semelhante a um fogo que deixa um rastro de fumaça depois que é apagado. É possível seguir estes resquícios para encontrar seu alvo, mas de acordo com o que ela me disse, há itens que podem ajudar a esconder os vestígios persistentes, tornando a busca mais desafiadora.

Em algumas ocasiões, Aika também usa familiares para observar quaisquer eventualidades peculiares, algumas vezes, eles avistaram o Daeva, mas quando ela finalmente chegou ao "local do crime", tudo já estava acabado e a única coisa que restava era uma poça de sangue.

Pondo de lado o fantástico, as coisas entre a Aika e eu melhoraram muito. Posso dizer com certeza que agora somos bons amigos e passamos um grande período de tempo juntos, não apenas para discutir sobre treinamentos ou caça a monstros, mas porque realmente gostamos da companhia um do outro e nos divertimos juntos (no caso dela, seu maior prazer é me provocar).

Sinto que se eu continuar assim, num futuro próximo serei capaz de conversar e expressar meus sentimentos para ela, mas por enquanto, tê-la perto e sorrindo tão lindamente para mim é suficiente.

...... Isto parece terrivelmente sentimental, eu sei, mas é como me sinto e não tenho vergonha de admitir isto, bem, pelo menos quando é assim, só na minha mente, onde ninguém além de mim pode ouvir estes pensamentos, você sabe.

De qualquer forma, tudo está bem (tanto quanto as circunstâncias permitem) e as coisas estão nos procurando. O sol brilha luminosamente no céu azul lá fora conforme eu vou em direção ao meu armário em ritmo acelerado com a Aika trotando junto. A maioria dos estudantes já deixou o prédio, Ren e Tatsuo foram para casa antes de mim também, eles disseram que tinham um encontro duplo com duas garotas de uma escola famosa só de meninas que conheceram há um mês. Bem, é bom testemunhar que esses caras obtiveram uma chance como esta, os dois vêm dizendo desde os dias de escola fundamental que o sonho deles era desfrutar ao máximo sua vida de colegial e sair com algumas garotas bonitas.

—Alegre-se Ikuto, pois eu sou a porta-voz de boas notícias!

Abrindo meu armário, troco meus sapatos durante a conversa com a linda garota de olhos azuis.

—O que seria a tão a chamada "boa notícia"?

— Nestes últimos dois meses que estivemos juntos, você evoluiu tanto que eu não te considero mais um peso morto, então é com grande alegria que anuncio que você pode finalmente começar a patrulhar as ruas de Tóquio comigo!

Ela abre seus braços e, por mais absurdo que pareça, eu juro que vi vários pontos brilhantes voando ao seu redor.

''..........''

—O quê? Você não está surpreso?

—Não exatamente, eu sabia que isso iria acontecer mais cedo ou mais tarde, afinal você me pediu ajuda.

Aika não me permitiria ficar ocioso para sempre, e por mais que a garota conhecida como Omori Aika não o admitisse, minha companhia tiraria um peso de seus ombros.

Ela mordeu os lábios e fez um beicinho. Por que ela parece sempre tão sedutora em cada ocasião?

Guhhh! Olhe para mim tendo estes pensamentos novamente! Controle-se homem, você não se orgulha de não ser um animal pervertido como seus colegas de classe? Faça jus a isso.

—Tu é um baita desmancha-prazeres.

—Estou ciente, e eu lhe digo que tenho orgulho de ser um.

Seu beicinho aumentou e eu sinto uma vontade crescente de rir, mas eu consigo controlar o impulso.

—Quando eu começo?

—Hoje à noite.

—Depois de nosso treino diário?

—Não estaremos treinando hoje, quero que seu corpo esteja bem descansado, se precisarmos lutar, um corpo cansado só vai atrapalhar.

—Tenho que concordar com suas palavras sábias.

—Temos ainda três horas antes do anoitecer, que tal pararmos no Starstruck para tomar um café?

—Se você quiser, por mim tudo bem.

—Resposta maravilhosa! Os cafés são por sua conta.

—Ei! Não jogue a responsabilidade na minha carteira!

Assim que estou começando a formular mais reclamações para mostrar como estou indignado, Aika me golpeia quando minha guarda está abaixada ao me contemplar com olhos grandes e lacrimejantes.... parecendo um gatinho desabrigado. Esta é uma das muitas técnicas especiais que as mulheres têm, e a pior parte é que 99% das vezes, nós homens não conseguimos resistir.

—Por favorzinhooooooo~~~.

—Jesus Cristo, mulher! Está bem, eu pago! Feliz agora?

Aika sorriu presunçosa. Sua face vitoriosa está me enervando, mas admito que seu contentamento é contagioso.

—Claro que estou.

—Você é realmente uma loba em pele de cordeiro, sabia disso?

—Sim, sou uma loba, e bem orgulhosa em ser uma .

.....

Touché.

Suspirando, eu deixo a escola, Aika me seguindo. Passamos pela entrada, onde uma estudante está de pé e mexendo no seu celular. O cabelo avermelhado dela balança com a brisa amena. Acidentalmente esbarrei meu ombro com o dela, foi um toque suave, difícil de notar e certamente não a machucou, então eu continuei andando sem dizer uma palavra.

—Pare imediatamente!!!

Volto-me para a pessoa que acabou de gritar e, para minha surpresa e imensa frustração, não é outra mulher senão Kurihara Keiko.

Vesti um sorriso vigoroso, tenho que pelo menos tentar ser educado, certo? Mesmo que seja mais por obrigação e respeito pela educação que recebi de meus pais do que por minha própria vontade.

—Sim?

—Você se choca comigo e é só isso que tem a dizer?

Eu respiro fundo, já estou sentindo uma dor de cabeça.

—Muito bem, desculpe ter esbarrado em você, satisfeita?

—Não, eu quero que você se ajoelhe, implore por meu perdão, rasteje até os meus pés e depois lamba meus sapatos!

Como se para demonstrar isso, ela pisou forte no chão à medida que sua mão direita chegava até os quadris e sua mão esquerda apontava um dedo para mim.

https://imgur.com/a/n2YIl1a

—Por que diabos eu faria isso?

Eu perco minha paciência e levanto minha voz, meu humor está definitivamente piorando. Eu olho para Aika, que está apenas observando a cena inteira bem ao meu lado, minha expressão praticamente grita por ajuda, mas ela apenas balança a cabeça e me dá um olhar divertido como se dissesse: "Eu não vou me envolver nisto, se livre por conta própria".

Esta mulher...aposto que ela só quer ver o mundo arder.

Kurihara levantou o nariz da maneira mais ostensiva que eu já presenciei em minha vida.

—Eu estou sendo generosa ao fazer um pedido tão simples e você nega? Qualquer homem nesta escola ficaria feliz em estar na sua posição e se aproximar tanto de mim, eles ficariam ainda mais contentes em poder sentir algo que tocou qualquer parte do meu corpo!

Quão arrogante e metida pode ser esta garota?

Mas a pior parte é que ela está certa, os estudantes masculinos certamente agradeceriam aos deuses por uma oportunidade como esta.

Saber que os rapazes da minha escola adorariam fazer isso me faz duvidar se eles têm um cérebro ou se jogaram sua dignidade no lixo.

—Não quero saber de sua autoproclamada generosidade e também não sou "um homem qualquer" nesta escola, já pedi desculpas e este é o ato máximo que você receberá por minha parte, estou cansado de ouvir suas baboseiras, então, se me derem licença, tenho outros assuntos para resolver.

Os olhos de Kurihara alargaram dentro de seu rosto enquanto seus lábios vermelhos gaguejavam palavras incompreensíveis . Sou um cara mau por sentir uma sensação de satisfação com sua reação? Sinto-me bem homem... estou despertando meu lado sádico?

Em vanglória, virei as costas para ela e segui meu percurso, deixando o recinto escolar com Aika ao meu lado. Lançando um olhar para a garota de olhos carmesim por cima do meu ombro, avistei Kurihara ainda de pé no mesmo lugar, seu rosto está ruborizado e ela está olhando diretamente para mim. Posso sentir um arrepio em todo o meu corpo, como se fosse um mau agouro. Espero que seja apenas eu sendo um pouco paranóico. Levantei a cabeça e me dirigi para a rua à minha frente em uma tentativa vã de ignorar o olhar fugaz da menina de cabelos vermelhos. Depois que estamos a uma boa distância da escola, ouço Aika rir tão histericamente que até assustou algumas mulheres grávidas que estavam conversando por perto, ela deve ter sentido seus olhares sobre nós, mas decidiu ignorá-los.

—Oh meu Deus, que hilariante! Definitivamente uma das coisas mais engraçadas que vi nesta escola no último ano e meio em que estudo aqui.

Fiz uma careta, parecendo como se tivesse acabado de comer um limão azedo.

—Não houve nada de divertido nisso! E sei que você notou meu pedido secreto de ajuda, então por que você não fez nada a respeito?

—Não fui eu que esbarrei nela, então não foi meu problema a resolver.

—É tão lindo ver o tamanho do apreço que você tem por mim! Caso você não tenha se ligado, eu estou sendo sarcástico.

Minha "querida" companheira finge que não ouviu uma palavra do que eu disse. Sério, me aborrece quando ela dá uma dessas.

—Mas tenho que dizer, Ikuto, estou abalada, acho que você é o único garoto de toda a escola que teve a coragem de falar assim com Kurihara. Creio que tenha noção que ela é a garota mais bonita da escola e todos estão sempre babando por ela e tal.

—À diferença dos nossos colegas, não estou cego pela beleza e pelo corpo bem desenvolvido que Kurihara tem, a personalidade é o fator mais importante para mim, sem este critério, só a aparência da pessoa não vale nada.

Aika oferece um simples "umm" mas por qualquer razão, ela parece feliz e, devo dizer, até um pouco orgulhosa.

Depois de algum tempo passado a caminhar e a conversar, chegamos ao Starstruck e não duvidamos em entrar. O cheiro de café, biscoitos e outras iguarias ensoparam minhas narinas, levando-me a engolir em seco.

Este lugar abriu recentemente e não está longe da escola, mas por alguma razão desconhecida, não é um local muito famoso entre os colegiais. Felizmente para nós, hoje tem apenas alguns clientes, pelo que não teremos de esperar para eternamente para receber os nossos pedidos. O espaço é também muito agradável, posso ouvir as poucas pessoas conversando em alto astral. Com um ambiente tão relaxado, é improvável que alguém não consiga obter sequer o mínimo de prazer.

Passados alguns minutos, chegou a nossa vez de pedir.

—Boa tarde, caros clientes, o que posso servir-lhes?

—Um cappuccino de caramelo seria ótimo.

—Eu terei o mesmo por favor, soa delicioso.

—Muito bem, dois cappuccinos de caramelo então! Para efeitos de identificação das suas ordens, poderiam dizer quais são os seus nomes?

—Arai e Omori.

—Por favor, Omori-san e Arai-san, esperem no próximo balcão.

Soltando um ''claro'' de volta, entrego o dinheiro a atendente. As bebidas custam apenas oitocentos ienes, muito mais barato do que eu pensava. Agradecemos à mulher educada e saímos da frente do caixa.

Nem 5 minutos depois, os nossos nomes foram chamados e pegamos nossas bebidas. O serviço neste local é realmente rápido....gostei, creio que virei aqui mais vezes no futuro.

Consigo sentir o calor irradiando do copo de plástico, tornando as minhas mãos anteriormente frias, quentes. Tomo um pequeno gole e estremeço com a forma como o líquido quente quase me queimou a língua. Aika segue o meu exemplo e decide tomar um gole dela própria, mas ao contrário de mim, ela sopra a bebida para esfriá-la um pouco e traz o copo à boca, suspirando contente depois de experimentar o sabor e a cremosidade do cappuccino.

—Kuhaaaaaa! Que sabor mais gostoso!

—É uma delícia mesmo, acho que posso ficar viciado!

—Isso faz com que sejamos os dois.

Suavemente, também sopro a minha bebida para diminuir sua quentura.

—E para onde vamos depois daqui?

Aika toma mais um golinho do seu copo.

—Para a sua casa.

—Oh?

—Vamos fazer uma patrulha hoje, recorda? Não pode estar pensando em fazê-la com o seu uniforme escolar, ou pode?

Aika está certa, seria um deslize enorme, um erro fatal.

Se a pessoa que tem controlo sobre o Daeva nos pudesse vigiar de algum lugar durante a patrulha, ele ou ela provavelmente tomaria nota do uniforme e poderia ser capaz de descobrir a que escola pertenço, e se isto acontecesse as coisas correriam mal para o meu, quero dizer, para o nosso lado, como, por exemplo, um ataque surpresa à escola, uma iniciativa que colocaria em risco a vida de todos os alunos, professores e trabalhadores.

Esse é o resumo.

—Tem razão, é melhor irmos embora, afinal de contas, você também precisa vestir umas roupas diferentes.

Bebemos mais dos nossos cappuccinos, que agora estavam mornos.

—Já esqueceu que posso nos teletransportar para a minha casa?

—Quando diz "nós", quer dizer que eu estou incluído nisso?

—Claro! O que mais poderia significar, tonto?

—É que eu achava que todo esse seu lance de teletransporte só funcionava com você mesma.

—Não funcionaria com uma pessoa normal, uma vez que ela teria baixa mana ou energia divina, mas porque uma certa pessoa conseguiu despertá-la e aprender a usar (um pouco) de energia divina, não é problema nenhum.

—Super bacana

—Acabou a sua bebida?

Eu mostrei o recipiente vazio em resposta.

—Vamos partindo então.

Atirando os copos dentro de uma lixeira próxima, avançamos através das calçadas alaranjadas em direção à minha casa.