Dinastia 3: A Rainha de Copas escrita por Isabelle Soares


Capítulo 3
Capítulo 3




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22 Maio de 2048

Esme observava encantada os belos bosques que haviam na estrada de Genove. Na verdade, sempre achou tudo por lá muito bonito. Belgonia tinha uma mistura de paisagens que podiam impressionar. Ela achava incrível a diversidade que havia no pequeno país, praias, florestas, pântanos, grandes cidades, era como viver em vários lugares ao mesmo tempo. Genove, por exemplo, trazia um clima temperado das montanhas e a magia do passado com suas construções antigas dos séculos XVIII e XIX.

Porém, Brocken Hall trazia uma beleza a mais. Tinha que dar créditos aos Lamb por transformarem a propriedade num verdadeiro paraíso. Os belos campos verdes que circundavam a estrada que levavam ao grande casarão trazia uma sensação de grandiosidade, mas, sobretudo de paz. Ela abriu o vidro do carro e deixou a brisa entrar em seus pulmões.

Lembrava de algumas vezes ter comparecido algumas festas por ali. Era sempre necessário que a família real fizesse a política da boa vizinhança com a nobreza local. Então, incontáveis vezes teve que ir com Carlisle a eventos que muitas vezes nem queriam comparecer. Mas agora, Brocken Hall trazia um aspecto muito diferente do ar esnobe de antes. Era o lar de sua neta e sua família, tudo havia outro significado.

O carro parou em frente à porta principal do grande casarão e Esme estranhou o fato de ninguém irem recebê-los. Mas ao ouvir ao longe a voz de sua filha mais nova, soube imediatamente onde todos estavam.

— Está ouvindo, mãe? – Edward perguntou enquanto estendia o braço para ela. – Vamos antes de Alice assassinar a todos.

A rainha mãe assentiu sorrindo. Ainda era cedo de manhã e nem imaginava que horas Alice teria chegado para começar a organizar os preparativos da festa do primeiro aniversário da pequena Isabella. A ideia era que fosse um almoço com poucos convidados. Renesme não queria que fosse nada grandioso, pois a sua filha não lembraria de nada daquele dia. Queriam apenas celebrá-la com as pessoas que mais a amavam. Porém, claramente Alice tinha outra opinião.

A primeira visão que Esme teve quando chegou ao jardim, foi da filha pendurada num banco enquanto tentava pregar a fita com vários balões rosa na parede. Naquele momento era como se o tempo não tivesse passado e ali estava a sua pequena arteira Alice novamente. Sorriu.

— Desça daí Alice! – Edward pediu com um sorriso brincalhão. – Você não tem mais idade para fazer essas coisas.

Alice deu a língua exatamente como uma criança de cinco anos e amarrou a fita no lugar onde queria colocar o cordão com os balões. Renesme observava tudo acariciando a barriga, com uma cara de quem dormiu pouco a noite. Esme se preocupou com aquilo e resolveu apurar o que tinha acontecido.

— Olá, meu bem. – a saudou enquanto trocava beijos na bochecha da neta.

— Olá vovó!

— Você não está com cara de festa. O que aconteceu, querida?

Renesme apenas balançou a cabeça e mudou os movimentos carinhosos em sua barriga, era como se tentasse acalmar o bebê que estava dentro dela. Então, imaginou que o motivo fosse seu novo bisneto que não estava deixando sua mãe descansar. Ela bem sabia qual era a sensação. Quando estava grávida de Emmett, ele mexia tanto que muitas vezes tirava seu ar.

— É Bebela. Está nascendo um de seus dentinhos e isso está a incomodando. Passou a noite chorando, tadinha.

— Nossa! Mas ela teve febre?

— Apenas febril, Graças a Deus! Pensei até em fazer a festinha dela em outro dia.

— Não se preocupe, querida. Ela vai ficar bem.

A princesa apenas assentiu e continuou observando Alice destilar ordens para os seus ajudantes de decoração. Edward se aproximou da filha e a saudou timidamente. Mesmo depois de um ano de reconciliação, os dois ainda não tinha recuperado totalmente os laços de antes.

— Onde está a nossa aniversariante?

— Está com William lá dentro. Ele está tentando distraí-la.

No mesmo instante pôde-se ouvir o choro da pequena menina. William a embalava nos braços, mas ela não parava de chorar. Ele estava com a mesma expressão cansada da esposa.

— Mommy! – A menina chamava a mãe enquanto apontava o dedinho para ela.

— O que foi meu anjinho? – Renesme falou depois que William se aproximou dela.

— Acho melhor, meu amor, você dar o peito a ela para ver se a acalma. Ela precisa descansar um pouco.

— Vocês deram algum remédio a ela? – Edward perguntou com preocupação.

— Não há remédio para dentes nascendo, pai.

— Vamos lá para dentro, querida. – Esme sugeriu já conduzindo as duas. – Tenho um segredo que vai te salvar.

As duas seguiram para dentro do grande casarão, deixando William e Edward sozinhos no jardim. Esme queria também que os dois tivessem a oportunidade de conversarem. Assim como o relacionamento com Renesme tinha esfriado, com o marido dela era quase como uma nevasca. Ela queria que os dois começassem a se entenderem para o bem de todos.

A rainha acompanhou a neta até o quarto da sua bisneta. Tudo era exatamente como imaginava que Renesme queria. Nada de cores de padrões femininos e que indicavam gênero. Tudo era simples e bonito. Certa vez, ela tinha dito que até as tintas eram veganas. Tinha orgulho da neta por ter pensamentos tão altruístas!

Ela acompanhou a princesa sentar-se na cadeira de balanço com a filha e colocá-la para mamar. A menina parecia tão ansiosa que sugava o peito com força. Renesme fazia uma careta toda vez que isso acontecia. Esme acariciou os cachinhos da bisneta, a acalmando.

— Calma, meu bebê! Vai ficar tudo bem. – sussurrou.

Renesme olhava para ela agradecida.

— Você ainda a amamenta?

— Estou tentando fazê-la se acostumar a não mamar mais. Pensei que o leite secaria com a nova gravidez, mas não. Ainda bem! O peito ainda a acalma. Não quero que ela se apegue a chupetas.

— Faz bem. Não sei como você e William estão conseguindo sem uma babá. Não tem um dia se quer que não a vejo em Belgravia em compromissos oficiais.

— Estamos tentando encontrar uma. Está difícil, sabe como é. Eu e William somos exigentes, mas vamos ter que encontrar uma até o início do mês que vem.

— Sei como é sim. Carlisle e eu não queríamos que nossos filhos fossem criados por babás, mas os compromissos oficiais são como uma avalanche. Acaba sendo necessário.

— Sei disso. Temos sorte de William passar bastante tempo em casa e poder cuidar dela, mas agora ele vai passar um mês em turnê para divulgar o livro dele, então... Nós sempre tivemos boas babás em nossa família. Papai amava a dele e eu a minha. Vou chamar a Anne para nos ajudar na escolha.

— Não se preocupe! Tudo vai dar certo e qualquer coisa estou aqui para ajudá-la.

— Obrigada vovó!

Esme considerava uma de suas melhores qualidades era a sua habilidade com bebês. Era engraçado, pois não foi uma criança que gostava de bonecas. Sempre diziam que as futuras mães nasciam nas brincadeiras de infância. Sendo assim, ela fugira completamente dos padrões. Bonecas eram um dos brinquedos que ela menos gostava de brincar.

Lembrava com um tom irônico de certos comentários dos seus vizinhos do bairro relacionado aos seus hábitos. Tinha que admitir que em uma sociedade totalmente conservadora, fruto de sentimentos plantados na década de 50 que reprimiam totalmente as mulheres, tudo que era transgressor incomodava. Mas Esme tinha certeza que tinha nascido exatamente para isso.

— Um chazinho de Camomila vai ajudar e também picolé de leite materno.

— Picolé de leite materno?

— Sim, fazia muito isso com o seu pai e tios. Alimentos gelados ajudam a aliviar a inflamação e por que não leite materno?

— Você é demais, vovó!

Ambas sorriram e William entrou no quarto mais aliviado ao ver as duas assim. Se aproximou da filha, já adormecida, e tocou a sua testa para verificar a temperatura dela. Esme amava a adoração dele com a sua família. Poucos homens tinham essa devoção que ele tinha. Muitos jogam a responsabilidade para as suas esposas e tentavam “se safar”. Renesme e ele tinham muita parceria.

— Ainda bem que ela não está com febre.

— Ela parece melhor. Vou deixá-la ter o seu cochilo antes de descermos para a sua festinha. Ela precisa descansar.

— Você também, meu amor. Não dormiu direito à noite e no seu estado é bom um “stand by”.

— William, você quase não dormiu também.

— A prioridade aqui são vocês duas.

— Ok, vou dormir um pouco com ela no nosso quarto. Qualquer coisa me chama.

— Não se preocupe!

William deu um selinho em sua esposa e ficou observando ela sair com a filha adormecida nos braços. Esme mais uma vez ficou encantada.

— Posso confiar em Alice com a festa toda, hum?

— Claro que pode, querido. Minha filha nasceu para isso.

Esme bateu de olho para ele e viu um sorriso brotar em seu rosto cansado. Zara apareceu na porta do quarto e William bateu as mãos animado ao ver a sobrinha chegar.

— Majestade, deixe-me apresentá-la a minha sobrinha, Zara.

A rainha viu a bela morena entrar de vez no quarto, um pouco sem jeito e até um tanto surpresa, fez-lhe uma reverência e corou. Esme já estava acostumada a esse tipo de comportamento e muitas vezes preferia que as pessoas não a tratassem como estivesse num pedestal. Ela nunca quis essa adoração.

— Olá, meu bem! Olha, vou dizer que parece mesmo que os Lamb tem um gene muito bom. Só existem mulheres lindas nessa família.

— Obrigada, majestade. – Zara agradeceu ainda envergonhada.

— Devo dizer que o mérito todo é de Zambia, mãe da Zara.

— Seja de quem for, temos aqui uma mulher linda! O que você faz da vida?

— Sou jornalista, senhora.

— Como William? Interessante!

— Ele sempre foi minha maior inspiração. Nós no momento estamos trabalhando juntos num podcast.

— Oh sim! Agora reconheço sua voz. Claro! Adoro ouvi-los vez ou outra.

— Que honra, majestade! – Zara falou corando.

— Inclusive, senhora, acho que podemos temos uma oportunidade incrível aqui para falar mais sobre coisas sobre o seu passado para o livro. Zara ficou muito curiosa e cheia de vontade de fazê-la algumas perguntas.

— Eu adoraria!

— Então por que não vamos até o meu escritório para tomarmos um chá e falarmos mais a respeito?

Esme assentiu e seguiu os dois pelos corredores de Brocken Hall. Zara no caminho lhe contava sobre os seus trabalhos sociais. A rainha ficou muito curiosa pelo assunto. Muito lhe admirava uma mulher tão jovem ter tantos trabalhos como o dela. Zara não era apenas uma jornalista de podcast, também escrevia matérias sobre a história e vivências de mulheres, principalmente pretas e imigrantes, e fazia um trabalho muito importante na comunidade onde morava. Esme sentia como ela falava apaixonada sobre os seus projetos e a invejava enormemente. Sempre quis fazer trabalhos sobre essa temática, mas nunca lhe deixaram, pois a imagem que queriam para ela era da mulher santificada, o exemplo da moral da família real. Ela acabou se deixando levar no final das contas. Mas super apoiou Rosalie quando ela quis se enveredar nesse tipo de filantropia.

— Devo dizer, majestade, que fiquei um tanto pensativo com o que ouvi a respeito de sua juventude. – William falou enquanto todos se acomodavam no escritório.

— É mesmo? Sobre o que especificamente?

— O protagonismo feminino. Sua família é rodeada de mulheres e todas elas muito fortes dentro das decisões do seio familiar. Sua vó materna, de certa maneira, definiu os valores, sua mãe uma grande batalhadora e você com muita determinação. Isso não é algo que é muito vinculado na sua história.

— É aquela coisa, você é o que mostra para o mundo. Quando eu me casei com Carlisle, a primeira coisa que me orientaram era que eu não poderia aparecer mais do que ele. A minha função ali dentro era apenas ser a mãe dos filhos dele. As matérias que saíram no jornal ajudaram muito a criar essa versão de mim.

— Nossa! – Zara afirmou com horror. – E você não fez nada para que isso mudasse? Deixou que as pessoas decidissem pela senhora?

— Eu tentei. Quebrei muito as regras. Mas eu também não queria me indispor. Estava chegando agora e a minha sogra era uma líder muito forte. Eu mesma fui me deixando levar pelas situações que ela criava meio que organicamente.

— É sempre assim, não é? Monarquia ou não, a imagem da mulher sempre vai ser ligada ao lar, ao patriarcalismo.

— É verdade e eu realmente sinto muito por isso. Durante a minha juventude lutei muito para as coisas mudarem para o nosso lado. Acho que muito está melhor do que antes, mas ainda falta tanto, não é?

— Se me permitem, vou contextualizar.

William levantou e foi até a sua mesa grande de mogno. Esme o observou trazendo algumas fotos que ela conhecia bem. Lembrou da jovem revolucionária que participava de clubes artísticos e de passeatas ativistas, do seu jeito meio hippie, desengonçada que aparecia nas imagens. De repente sentiu saudade desse tempo, onde não haviam muitas regras e poderia simplesmente ser livre.

Do lado das fotos havia um recorte de jornal antigo que se encontrava bem protegido com uma capa plástica. A manchete dizia: “A namorada rebelde! É o fim da monarquia?”. Ela lembrava bem dessa notícia. Tinha sido lançada poucos meses depois que descobriram o relacionamento dela com Carlisle. Lembrava que rira horrores por que a criticavam por ela ter participado de uma caminhada anti-guerra e nem sonhavam que o próprio príncipe idealizado também esteve presente. Mas as mulheres sempre eram escolhidas para serem postas na cruz.

— Essa foi uma das poucas matérias que achei que falava sobre esse seu lado revolucionário. – afirmou William.

— Tenho uma desconfiança que foi a própria rainha Elizabeth que mandou me seguirem por que sabia que eu estaria nessa manifestação, sem desconfiar que o próprio filho dela estaria lá também. Mas como pode ver, ele não saiu em nenhuma das fotos. Enfim... Não seria interessante para eles continuarem me vinculando com essa imagem depois que o noivado foi oficializado.

— Eu estou simplesmente chocada! Como assim o próprio palácio era contra você?

— Bom... Eles queriam outro futuro para Carlisle. A princesa Stéfanie de Mônaco.

— Meu Deus! A gente não tem mesmo noção sobre absolutamente nada mesmo!

— É sobre isso que estou querendo discutir com Esme. Essa questão da imagem é algo muito sério. Esse livro é a oportunidade que ela tem para as pessoas a conhecerem de verdade, contextualizar momentos e discutir certos assuntos que jamais pôde fazer antes.

— Sempre a vimos representar a imagem da matriarca, da boa mulher, tem noção que as pessoas quase a santificam, majestade?

— Eu sempre fui verdadeiramente devotada a minha família. Acho que sou uma mãe, vó e bisavó muito presente. Faço questão disso. Mas isso é fruto da minha personalidade. Quando criança, eu sempre recebi muito carinho e isso me fez transmitir isso aos meus. O que você acabou de me descrever é algo que não tenho qualquer relação.

— Como assim?

— Na vida real, ao longo de nossa vida, construirmos várias versões de nós mesmas. Dependendo da ocasião podemos assumir muitos papéis, é natural do ser humano. Mas quando entramos para a vida pública, as pessoas criam personagens para nós. É como se fosse um escudo. Quem faz parte da família real não tem bem uma definição sobre o que é vida privada ou não, então, o estereótipo criado é meio que uma imagem construída para você tentar blindar um pouco sobre você mesmo.

— Então, a senhora está me dizendo que não é essa pessoa que conhecemos?

— Que tipo de mulher vocês conhecem?

— A senhora é a nossa vovó, se me permite dizer isso.

Esme soltou uma gargalhada que deixou Zara impressionada. William apenas se divertia vendo a cena. Tinha convivido muito com a rainha mãe para conhecer uma personalidade bem mais diferenciada do que aquela que estava estampada nas capas dos tablóides, mas entendia o espanto de sua sobrinha. Imaginava que o livro iria causar muito na mente dos leitores.

— Eu sou isso também. Mas sou muitas outras. Só que ao longo dos anos, eu tive que deixar algumas faces de mim para trás.

— E agora acha mesmo que está preparada para as pessoas conhecerem essa outra Esme?

— Estou mais curiosa para ver como as pessoas vão reagir, na verdade.

— Agora chegou a hora de resgatar isso, não acha?

— Acho sim. – Esme falou com o queixo erguido de determinação. Estava amando o fato de poder dominar um pouco a narrativa sobre sua própria história.

Esme: Sua Verdadeira História – Capítulo 3: Quem sou eu?

Até a minha adolescência, eu nunca me importei muito como as pessoas me viam. Aos 15 anos, eu era a diferetona, baixinha, um pouco a cima do peso, os cabelos rebeldes que nem os da minha mãe. Eu não sabia se era por que eu morava a anos em Orland e todos me conheciam exatamente desde que nasci e eu conhecia a todos a vida inteira, mas aquela personalidade nunca havia sido um problema.

Porém, comecei a ver que em Belgravia, eu seria um problema. Parece que está no DNA dos adolescentes ter implicância com pessoas fora do padrão estabelecidos por eles. De repente, eu era a caipira da escola. O meu sotaque era piada, o meu modo de falar, alto e acompanhado por algumas risadas, era um motivo de vergonha.

Pode-se até imaginar que tudo era muito liberal nos anos 70. Foi realmente uma década muito rebelde, mas no fundo, as famílias eram ainda muito conservadoras, se baseava na casa, marido, mulher, filhos e cachorro, então, mesmo na cidade grande, eu convivia com um monte de gente extremamente tradicional e que não aceitava o outro. Foi a primeira vez que me dei conta que existiam mundos diferentes da qual eu estava acostumada.

Até uma determinada idade, eu trazia ainda uma inocência em acreditar no melhor de tudo e de todos. Não via maldade nas pessoas até compreender que tipo de mundo eu vivia. Durante o período da faculdade é que realmente entendi tudo ao meu redor.

Poxa! Vivíamos anos complicados! Tínhamos uma crise econômica em Belgonia. A taxa de desemprego aumentava a cada ano. As coisas lá em casa eram um bom exemplo disso. Enquanto tudo girava numa guerra estúpida entre dois países que se achavam os grandões. Havia ditaduras em toda parte, violência e censura a tudo. Não era isso que a gente queria.

Por isso, não foi difícil me juntar à trupe, que assim como eu queria fazer umas mudanças. O jovem da década de 70 trazia isso como norte. Queríamos gritar, queríamos liberdade, furar barreiras. Eu me sentia bem dessa forma e no meio daquelas pessoas, eu voltava a ter esperança que as coisas estavam realmente entrando nos eixos por que lutamos por isso.

Eu lembro bem de entrar pelas portas da Universidade de Belgonia e ver que ali era o meu lugar. Claro que bateu um medo inicial. Tudo era muito grande e cheio de gente. Eu tinha vontade de explorar tudo. Começar a conversar com as pessoas. Agora em minhas recordações, me vejo como uma criança que vai ao parque de diversões pela primeira vez.

Dentro da universidade há alguns dormitórios para facilitar a vida dos estudantes. Já que o campus fica um tanto distante da cidade. Mas eu não podia pagar o aluguel dali, então eu tinha que passar um tempo maior dentro de um metrô. Saia de casa antes da sete da manhã e voltava quase seis da noite. Era extremamente cansativo, mas eu achava que tudo valia muito à pena.

Eu amava as aulas de desenho. Na época não tínhamos as tecnologias que existem hoje que facilita tudo. Um arquiteto de verdade tinha que se garantir na mão. Eu me sentia muito em poder me exibir com as minhas réguas gigantes e todos os materiais necessários para as plantas baixas.

Além das aulas destinadas ao exercício prático da arquitetura, eu também amava ouvir sobre a História em si. Estudar as grandes civilizações, a evolução das construções ao longo dos anos. Ficava sonhando e me inspirando em como eu ia desenvolver os meus próprios projetos. Nunca cheguei de verdade exercer a profissão. Mas o desenho nunca saiu da minha vida. Vez ou outra estou sempre pondo os meus sentimentos através das linhas desenhadas no papel.

Muito me perguntaram na época em que fiquei noiva de Carlisle se eu me arrependia de ter que deixar o meu futuro como arquiteta de lado para servir a monarquia. Bom, eu seria bastante hipócrita em colocar apenas uma versão romântica na história. É claro que eu fiquei com essa dúvida. Eu tinha me formado recentemente, estava louca para começar a trabalhar. Fiquei pensativa sobre como iriam ser as coisas depois que tudo fosse oficializado. Me tornaria uma esposa e mãe. Nada contra. Porém, por muito tempo considerei que esse não era o futuro que eu queria para mim.

Minha mãe sempre foi o melhor exemplo de mulher. Aquela super heroína que batalha, que mostra para que veio na sua profissão ao mesmo tempo mostrava seu lado doce e maternal comigo e com Lily. Durante a década de 70 e era esse tipo de mulher que começava a se firmar na sociedade. Quando eu entrava na sala de aula e dividia a turma com uma colega ou até mesmo eu era única garota matriculada, mostrava pra mim que eu tinha que superar mesmo os desafios.

Foi nessa época ainda que comecei a me enxergar como mulher e como ser humano. Antes, tive inúmeras questões mal resolvidas comigo mesma. Tive uma fase meio introspectiva, sentia que as pessoas não me aceitava pelo que eu era. Tentava não levar isso para o coração, mas questionar muito sobre isso. Por mais que eu tivesse enfrentado todos os desafios intransponíveis, eu não conseguia me relacionar bem com as pessoas.

Tive poucos amores românticos. Me sentia insegura numa relação com os homens. Sempre que me via com eles e pensava se eu era suficiente. Olhava para as outras garotas e achava que elas eram mais bonitas, ideais para os padrões. Eu não conseguia me enxergar como alguém que poderia ser amada e desejada por não ter o corpo perfeito, que as pessoas insistiam em apontar em minha volta.

Aos 19 anos, conheci o cara que iria ressaltar ainda mais essas negatividades. Charles Everson era um dos homens mais bonitos da universidade. Todas as mulheres ficavam rodeando e sonhando com ele. Confesso que eu o ficava admirando também, mas sabia que não teria chance alguma.

Até que numa festa as minhas amigas ficaram me empurrando para ele, me desafiando. Não cai nessa, mas por incrível que pareça ele veio até mim. Ficamos conversando e antes do fim da festa nos beijamos. Ele me deixou em casa e eu achava que tudo não passava de um sonho bom. No dia seguinte, não esperava que ele viesse a falar comigo, mas foi o contrário. Ele parecia querer estar comigo. Andávamos de mãos dadas pelo campus e me exibia para os seus amigos. Eu não conseguia acreditar.

Namoramos por sete meses, acreditei realmente que ele gostava de mim pelo que eu era e comecei a ganhar mais confiança. Até que em uma noite tudo desmoronou. Saímos para uma festa de aniversário de um amigo e tudo parecia bem, mas eu o notava estranho. Tocava a minha perna, às vezes até fazia carinhos mais ousados. Eu não disse nada, tinha medo de estar sendo boba e não queria perdê-lo. No fim da festa seguimos para o carro e ele começou a me beijar de um jeito estranho. Me apertava com força e sussurrava palavras horrorosas no meu ouvido. Eu pedi para ele parar, mas foi em vão. Depois tive minhas roupas rasgadas e apenas fechei os olhos por que eu não tinha mais como revidar. Esperei o pior, até que encontrei voz e comecei a gritar. Um amigo ouviu, abriu a porta do carro e tirou Charles de cima de cima de mim antes que ele completasse o ato.

Aquilo me apavorou. Fiquei mal por meses, quase desisti da minha faculdade, a maior conquista até então. Eu pensava: por que comigo? Minha mãe e minha irmã foram às luzes que eu precisava no meio da escuridão. Me colocaram pra cima e me fizeram criar coragem de retomar a minha vida. Mas aquele acontecimento ficou marcado pra sempre na minha mente. Mesmo quando descobri que ele tinha ficado comigo apenas por conta duma aposta e que namorava há 5 meses outra menina mesmo estando comigo, não me deixou melhor. Achava que nunca iria me relacionar com alguém de novo até conhecer o amor da minha vida, que curou todas as minhas feridas e com a ajuda dele consegui seguir em frente e ter força para tomar a decisão que tomei sem me arrepender.

Depois desse episódio comecei a me juntar com uma galera legal que defendia os direitos das pessoas. Eu tinha em mente que somente fazendo algo por alguém, lutando para que a sociedade mudasse, para que as mulheres não passassem pelo que eu passei era que eu conseguiria aliviar a minha dor. Virei ativista mesmo. Participei de inúmeras passeatas e protestos. Me sentia bem, mas ao mesmo tempo refletia. O quanto nós mulheres iríamos ter que lutar pelo mais básico em nossas vidas? Será que ficaríamos sempre no impasse de o que é ou não o nosso papel? Quantas vítimas mais teríamos do machismo da nossa sociedade? São questionamentos que não ficaram velhos como eu. Infelizmente.

** *

William desligou o gravador do celular dele. Ainda havia lágrimas nos meus olhos. Zara me olhava com surpresa.

— Ual! – ela falou impressionada. – Isso foi muito interessante, majestade! Jamais pensei que isso pudesse ter acontecido com a senhora. Muitas mulheres passam por esse abuso psicológico, são silenciadas por serem quem são. Isso é realmente horrível!

— Está tudo bem, majestade? – William perguntou com preocupação. Observei ele se levantar e vir até mim com um pedaço de papel toalha.

— Está sim, querido. – Falei enquanto batia levemente na mão dele. – É por que essas lembranças estavam há muito tempo guardadas. Eu as guardei num lugar seguro demais e agora elas estão podendo vir à tona.

— Isso é bom para a senhora?

— É sim. Não é bom guardar as coisas, ainda mais por tanto tempo.

Alice chegou onde estávamos na mesma hora. Sempre com o seu jeito agitado, sem bater antes de entrar e falando rápido como se tivesse ligada no 220 volts.

— O que vocês estão fazendo aqui, ein? Todos os convidados estão lá fora.

— Renesme e a Bebela já acordaram? – William perguntou com o seu modo família ativado.

— Renesme perguntou por você. Ela está lá em cima ajeitando a nossa aniversariante.

— Então, vamos todos lá para fora, sim? – sugeriu ele. – Depois continuamos a nossa viagem ao passado.

— Acho melhor. – concordei. – Zara, quando William estiver trabalhando na turnê dele, gostaria que você conduzisse as perguntas.

Ela bateu as mãos com animação. Eu sabia que ela havia se encantado com tudo que contei e eu sabia que ela poderia me fazer perguntas que ninguém me faria por puro deleite de jornalista e amante de boas histórias. Eu não podia tirar esse prazer dela.

Seguimos até o saguão quando demos de cara com Renesme e a pequena Isabella no colo. A menina agora sorria e estava simplesmente divina em seu vestido lilás de aniversário. Ao ver William, ela estendeu a mãozinha e apontou para ele.

— Dada!

— Você quer o seu papai? – Renesme perguntou com uma voz doce. William já se aproximava das duas com uma cara de bobo.

— Vem cá pro colo do seu dadá.

— William, acho melhor falarmos as palavras certas perto dela.

— Relaxa meu amor! A nossa Bebela vai ser esperta o suficiente para aprender a pronunciar as palavras corretamente no tempo certo. No momento, estou amando ser o dadá dela. – Ele falou enquanto beijava a bochecha da filha. Esme sorriu.

— Pode haver bebê mais lindo? – Zara perguntou.

— Não há. Eu sou o pai da menina mais linda do mundo!

Todos nós seguimos para o jardim e nos encontramos com todos que já comiam e se divertiam. Boa parte era composta de familiares. As crianças corriam por toda parte. Meus bisnetos. Meus e de Carlisle. Não tinha como não pensar nele numa hora daquelas. Ele adoraria estar aqui.

Antony puxou a música de parabéns, Renesme, William e Bebela seguiram até a mesa principal. Alice acendeu a vela no topo do bolo. A menina não sabia para onde olhar, se era para o fogo da vela ou para as pessoas que sorriam para ela em volta. Renesme a ensinava a bater palmas, mas a menina ainda estava mais interessada na expressão das pessoas. Quando a música parou, William e Renesme se aproximaram do bolo com a filha e assopraram a vela, antes que ela colocasse suas mãozinhas no fogo.

Me sentei na cadeira mais próxima e olhei em volta. Passei por muitas mudanças bruscas em minha vida. Tive que deixar muita coisa para trás e começar do zero. Mas olhando assim para todas aquelas pessoas que saíram dela e de seu marido. Dava orgulho e a fazia pensar: sim, tudo valeu à pena.

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