JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 6
Capítulo 6




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A pequena sala já dava sinais de que logo não teria como suportar a água que  açoitava o chão caso ela não intervisse. Fechou a janela, passando o trinco e analisando no escuro o seu estado. Ela estava molhada, mas não ensopada. Tirou o sapato de salto e colocou junto com a bolsa sobre o braço de um sofá velho que parecia estar ali apenas para preencher o cômodo, já que não havia qualquer outro móvel. Talvez esse fosse o motivo da despreocupação em deixar a casa aberta, não havia o que ser roubado, a não ser o mármore bruto da oficina contígua de onde estava. O povo da periferia era supersticioso e entrar na casa do artesão que produzia lápides, talvez trouxesse mau agouro.

 

Explorou com rapidez o que restava da moradia, o quarto, a cozinha quase portátil, mas impecável na limpeza, assim como o banheiro, para onde foi se despir e achar um lugar para pendurar as roupas. Não deixou de notar, que tudo ali levava a crer que viviam duas pessoas. Duas camas de solteiro, dois pares de talheres na mesa, duas toalhas no banheiro, apesar de não ter detectado qualquer sinal feminino. Entendeu melhor quando viu a vela de sete dias bruxuleando na oficina num pequeno altar improvisado para os santos gêmeos. Uma imagem de São Cosme e São Damião repousava sobre uma prateleira, com um jarro de flores ornando uma mesa abaixo deles.

 

Por todo lado eram cortes de mármores ganhando forma para se tornarem cabeceiras de túmulos. Um deles parecia estar pronto com os dizeres: ‘’Não me tragam flores, e sim brinquedos’’. Fez as contas da data do nascimento e morte entalhados na pedra e chegou aos sete anos de idade. Pensou em Lindinha e aquilo a assustou. Precisava ligar para a menina um dia e ouvir a sua voz. Escutou o barulho da enxurrada lá fora, e custava a crer que aquela água não conseguia invadir as casas daquele bairro. Parece que todos já estavam preparados para um evento como aquele, já que as autoridades não pareciam tê-los como habitantes do município somente até mandar a cobrança dos impostos.

 

Enrolada em uma das toalhas que estavam no banheiro, foi para o quarto, guiada pelo clarão dos raios e deitou no colchão fino, que com o passar do tempo parecia derreter por entre o estrado da cama de tão gasto. Queria que tudo fosse espontâneo e não planejou nenhuma abordagem para quando ele chegasse. Ela simplesmente estaria ali, nua e a disposição. Apenas para satisfazer o seu ego, sua vontade de ser possuída por aquele Zumbi dos Palmares. Não era por nada, nem por mais ninguém, a não ser por ela mesma. Quando as pálpebras começaram a pesar, embaladas pela chuva que caía no telhado, e o sono parecia encantá-la como o sorriso da filha nas fotos que a sua mãe mandava, despertou com o ranger da porta da rua.

 

Tentou fazer uma pose mais sensual e abrir a toalha deixando o seu corpo nu todo exposto, mas antes que ele entrasse no quarto, conseguiu apenas espremer os olhos para vê-lo com uma expressão de espanto, paralisado na porta como uma assombração que percebe tarde demais que nem sempre é ela quem consegue assustar.

— Mas o que…o que é que você… - Gaguejou, sem saber o que fazer, esperando algum som vindo da jovem madame, completamente despida na sua cama, que abria um sorriso luminoso na penumbra.

 

Mesmo exausto pelas horas de amor com Samira, e ensopado pela travessia do rio que estava a sua rua, o seu corpo reagiu à visão da mulher de poucas curvas, mas de resultado perfeito. Acaso ela fosse um quebra cabeças, todas as peças estariam encaixadas, tudo no lugar certo. Aquilo era uma equação complexa resolvida, um catalisador que acendia o pavio do irracional e o transformava num ser primitivo. O ogro desta vez tinha acordado, mas não para mijar. E era dessa maneira que ele explicaria uma traição no juízo final. Enquanto não era colocado frente a frente com São Pedro, arrancou as roupas do corpo, bateu no peito como um gorila avisando aos outros quem mandava no pedaço, e exibiu para a platéia o tamanho do seu dote em posição de sentido. Há muito estava privado do corpo de uma mulher, e a sorte de possuir dois no mesmo dia, ele não iria desperdiçar, sem saber que o mesmo tinha ocorrido com ela.

 

Com uma selvageria pouco vista, quebraram primeiro o estrado da cama em que dormia, depois o da cama do seu irmão, para então alcançarem o apogeu em meio aos pedaços de madeira espalhados pelo chão, emitindo sons animalescos e suando em profusão. Se tocavam mutuamente com violência, o cabelo dela era puxado para trás, enquanto a penetrava com frenesi e espalmava as suas nádegas, deixando nelas os seus dedos estampados. Ela mordia o peitoral de carne dura ao ponto de arrancar-lhe sangue, com as unhas cravadas nas suas costas, arqueando o corpo esguio com ferocidade. Patrícia urrava em consonância com as trovoadas, sentindo o rio de hormônios que invadia suas veias e o cheiro do suor do homem bruto que lhe possuía como uma criatura primitiva. Eram animais acasalando na selva, e como um vulcão adormecido por mil anos, ele liberou a sua lava quente no mesmo instante em que ela tremulava e se contorcia em êxtase. Ele poderia fazer somente aquilo para o resto da vida. Ela pensava o mesmo.

 

 

O salário mal pagava a sua sede por aguardente, e o seu maior luxo era comer um PF todo domingo no Bar do Freitas, que tinha samba ao vivo e umas mulatas distintas balançando o derriére na sua cara. Não fosse os bicos que surgiam de vez em quando, não podia se dar ao desfrute de deixar comida estragar. Endireitou a postura quando viu a madame surgir no corredor onde a menina estava enterrada e se apoiou na pá para aliviar a coluna torta. Partes do cemitério ainda estavam alagadas com o temporal da noite anterior, mas o sol tinha vencido a queda de braço assim que o dia amanhecera. Ele sabia que poderia ser demitido e até mesmo preso ao aceitar aquele trabalho. Mas precisava daquele dinheiro para dar continuidade ao seu plano de se aproximar dela. Comprar uma roupa que não fizesse vergonha em lugar nenhum e um perfume barato que cheirasse como caro.

 

Pediu que ela colocasse o dinheiro no bolso do seu macacão, pegou a sacola na mão da jovem senhora de rosto encovado, cuja dor era visível, de onde retirou uma pequena urna branca. O anjinho estava enterrado ali havia duas semanas, e mesmo alertando a mãe que o que ela veria não seria sua filha, ela insistiu em ver o corpo sendo exumado e transferido. Iria cometer uma violação de sepultura, mas o sofrimento daquela mulher o compadeceu, assim como a grana que ela tinha trazido. Mudaria de cidade com o marido e queria a filha em um cemitério próximo dela. Queria perguntar como ela transportaria o corpo ainda em processo de decomposição, mas acreditou que ela já tinha tudo planejado para o traslado, vide os dois homens que a seguiam a distância.

 

Depois de lhe mostrar a certidão de óbito e comprovar ser a genitora, ele se pôs a cavar. Não demoraria muito, já que costumavam enterrar crianças em covas mais rasas, e como estava no lote de expansão do cemitério, estava mais longe da secretaria e dos olhos gordos. Logo a ponta da pá tocou na tampa do caixãozinho e ele pulou para dentro do buraco, cavando com as mãos ao redor da urna e forçando-a para cima. Levantou-a com as mãos e colocou-a próximo a lápide, saltando para cima novamente. Olhou para a mãe, aguardando sua anuência para abrir a tampa. Aquele era um momento delicado. O parente sempre tinha a imagem do defunto quando ainda vivo nas suas mentes, e nunca esperavam encontrar um esqueleto.

 

— A senhora toma algum remédio? Quer que chame alguém pra ficar perto? O que a senhora vai ver não é muito agradável - Ponderou o coveiro, olhando a mulher se debulhar em lágrimas, e balançar a cabeça negando.

— Quero terminar logo com isso. Por favor, coloque a minha filha na urna nova e queime essa aí.

 

Ele bateu na aba do boné concordando e começou a desparafusar o caixãozinho feito com ótima madeira. Talvez desse um trato nele, deixasse limpinho e vendesse com a ajuda de Franchico da funerária. Era mais um trocado que entrava. Forçou um pouco a tampa e a retirou. Para seu espanto a menina de três anos estava quase intacta. Mesmo com pouco tempo de sepultada já era pra estar no estágio de esqueletização. A mãe não pareceu se assustar mais que ele.

 

— Deram muitos antibióticos para a minha pequena Alice - Disse a mãe quebrando o silêncio, se aproximando da menina de joelhos, e sem qualquer resquício de que estivesse sentindo fedor de metano, cadaverina ou putrescina. Esse era um assunto que ele não tinha conhecimento.

 

O corpo minguado trajava um vestido branco de batizado feito de organdí com babados e uma fita vermelha ao redor da cintura. Seus olhinhos estavam fechados e a pequena boca estava arroxeada, porém fechada, o que era anormal. Estava um pouco inchada, mas estranhava o fato dos mosquitos já não estarem por ali fazendo um carnaval. Com um pouco de cerimônia, passou as mãos enluvadas por baixo do tórax e a ergueu com cuidado e com medo que soltasse algum líquido ou deslocasse algum membro. No entanto, ela estava mais flexível que o normal. Parecia estar retirando uma boneca da caixa.

 

— Tenha cuidado, por favor - Implorou a mãe, pedindo que os homens se aproximassem para ajudar.

 

Testemunhou a saída do anjinho do cemitério, com a nova urna dentro de uma caixa de televisão. Fazia tempo que não ficava tão mole daquele jeito, a ponto de parar pra pensar na vida. Pensou no que sua ex-mulher lhe dissera ao telefone. Era algo a respeito de sua neta que ele não conhecia, mas ele só queria saber se ela tinha se casado outra vez. Não havia dado importância ao que realmente fazia a vida valer a pena. Quando começou a jogar terra de volta no buraco, viu o malandro se aproximando dele. Temeu que ele poderia ter visto tudo e estava vindo para chantageá-lo. Ele sabia que devia uma aquele mau elemento, mas aquelas contas não fechavam na sua cabeça. Ainda havia um crédito a ser colocado em conta que ele ficaria surpreso em saber o quanto aquele jogo poderia se inverter. Mas não naquele dia.

 

—-

 

A NOITE DO LEILÃO 4

 

O sinal era quando Edith Piaf cantasse La Vie En Rose. Dinorá pousou a agulha no vinil e se benzeu. Poderia ser a melhor noite da Maison, ou amanhã talvez tivesse que fechar as portas por proxenetismo e estelionato. Que Maria Madalena de onde estivesse, a protegesse. Suas cocotas já estavam trabalhando dobrado com a ausência de Janice que estava cuidando de Samira. E ela tinha que se desdobrar para servir bebidas aos convivas, com o teor alcoólico ideal para o abate. Temia que se passassem daquele ponto pudessem ir embora ou desmaiar bêbados antes de pagar a conta. Ela precisava deles ali bem despertos para levantar os dedos cobrindo os lances. Mas como contornar a situação delicada da sua menina? Assim que os primeiros acordes da música francesa ecoaram pela sala, a porta da suíte se abriu. Pediu atenção aos cavalheiros, que logo se viraram curiosos para o pequeno palco improvisado. O show ia começar.

 

Janice sorria maravilhada para a sua obra prima, que lhe sorria de volta.

— Não esqueça o que combinamos. Quando você se deitar com o vencedor e se despir, faça cara de surpresa quando ver o sangue. Faz de conta que não sabia de nada.

— Sim, sim, estou nervosa e feliz por finalmente descobrir os segredos de tudo aquilo que escuto. Não aguento mais roer as unhas de tanta curiosidade - Revelou ansiosa a menina, metida num collant de lantejoulas douradas e maquiagem a la Liza Minelli no filme Cabaret, e um chapeuzinho de Charlie Chaplin, que lhe conferia um ar pudico.

— Brilhe, menina! Faça tudo o que ensaiamos e dará tudo certo.

 

Janice a trouxe para fora do quarto tão logo ouviu os primeiros acordes da música e a colocou no início do tapete de veludo vermelho que levava a grande mesa do salão. Samira parou por um instante, e contrariando ordens da sua mãe, olhou os cavalheiros que já estavam prostrados aos pés da beleza da jovem manceba, e seguiu como uma Miss a caminho de receber a coroa e o cetro. Caminhou com vagar, saboreando cada momento, sob aplausos e assovios dos mais entusiasmados, e olhares circunspectos dos mais interessados em levar o grande prêmio da noite. Aquilo não significava somente romper um hímen intacto, mas prestígio entre os seus pares. Era como pagar para abater um animal em extinção. Não confiavam na pureza nem das freiras de um convento, mas na filha da Madame Dinorá, que mamou nos peitos de uma cabrita até os seis anos de idade e vivia reclusa como Quasímodo, sim. Era o mesmo que usar um cinto de castidade vivendo dentro de um bordel. Prostitutas também se davam o respeito e tinham a sua dignidade, ora bolas.

 

A menina subiu até a mesa, onde foi recebida pela mãe, que não cansava de olhá-la de cima a baixo. Janice tinha feito um ótimo trabalho, talvez pensando na boa reputação da casa, ou apenas em pagar as dívidas de carteado do amante vagabundo que arranjou e por quem andava toda derretida. A vida era um tabuleiro de damas, onde não se podia piscar o olho para não ser comido. Dinorá preferia o xadrez. E sabia que estava perto do xeque mate, ainda mais sabendo que a rainha não poderia fazê-lo sem a ajuda de um rei.

 


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