JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 5
Capítulo 5




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Foi preciso que uma vizinha batesse à sua porta para perguntar se o mau cheiro provinha lá de dentro. No início achou se tratar de uma brincadeira daquele ser desprezível que vivia a espalhar mentiras a seu respeito. Mas depois que pôs a cabeça pra fora da janela e viu uma meia dúzia de inquilinos da sua vila caminhando pelo beco de nariz tapado, decidiu abrir a porta.

 

— Já farejei o beco de cima abaixo, e essa carniça vem daqui. Não fosse a certeza de que se trata de peixe estragado, eu diria que devido a sua profissão, o senhor estava escondendo um corpo aqui - Proferiu a idosa, de corpo mirrado, empinando a cabeça e fazendo um biquinho petulante, ressaltando os lábios crispados.

— Quem fareja é cachorro, Dona Vilma. E antes de mais nada, bom dia - Disse com a voz roufenha de quem acordava de uma ressaca de aguardente barato, batendo a porta na cara da mulher e indo abrir a geladeira com o motor queimado há três dias. Lá dentro uma sacola com sardinhas apodrecidas jazia na prateleira morna aguardando o seu enterro num saco de lixo qualquer.

 

Sabia que a sua promoção como chefe dos coveiros não tinha sido pela sua destreza em cavar sete palmos, ou pela habilidade em lidar com subalternos. O seu olfato era nulo, e qualquer exumação cadavérica, ou eventos que tivesse que lidar com corpos em avançado estado de decomposição, ele era o homem para a tarefa. O único que não precisava usar máscara, que não tinha engulhos, e que não reclamava em ver a desnatureza de restos mortais decompostos. Graças a um traumatismo craniano na infância, nunca soube distinguir o aroma do feijão que a sua mãe depositava meio dia, com amor, no seu prato, e as fezes que ela depositava à noite, com ódio, no vaso sanitário. Tanto fazia. Ele não tinha olfato.

 

Embrulhou os peixes em decomposição numa sacola, sorveu um último gole de pinga que havia sobrado no copo, comeu uma banana passada e leu os jornais do dia. Um dos seus poucos luxos. Estava de café tomado. Meteu-se num macacão surrado da prefeitura, também clamando por uma lata de lixo, e saiu. Defuntos não julgavam aparências, e como ele não era muito sociável, tinha o emprego perfeito. O beco que estava apinhado, começou a abrir-lhe passagem com ele segurando o saco de sardinha podre a frente. Ele e gente viva, eram como pólos iguais de um ímã. Isso o fez pensar na única pessoa que queria atrair para perto e que aos poucos estava conseguindo. Arremessou o saco no monturo de detritos, arqueou as sobrancelhas fartas, endireitou um pouco a corcunda da escoliose fazendo uma careta de dor, e aumentou o ritmo das passadas.

 

 

A NOITE DO LEILÃO 3

O terror estava estampado no rosto da menina, que pulou no pescoço da mãe para abraçá-la, assim que ela entrou no quarto. Antes de girar a chave na porta às suas costas para trancá-la novamente, sentiu algo gotejar sobre o seu pé. Ela retribuiu o afeto e deu alguns tapinhas desajeitados nas costas da filha que estava nua e lhe agarrava como um amuleto. Aos poucos, Dinorá foi levando a filha para o banheiro da suíte, olhando o rastro de sangue que uma menarca poderosa produzia. A menina ficou menstruada pela primeira vez e assustada com a hemorragia.

 

Ainda atarantada, sem saber o que fazer, a cafetina ouviu o mesmo código na porta e correu para abrir. Sua salvação seria a sua cocota decana, Janice, que trabalhava na profissão com o manual debaixo do braço. Já entrou no quarto avisando que Samira precisava de um banho e explicações. Ela mesma daria os dois, enquanto a patroa voltava para o salão, onde a sua ausência de poucos minutos já era motivos de questionamentos. A rufiona rearranjou as expressões faciais, forçou-se a sorrir, e como uma estrela, iluminou o salão que já exalava os hormônios dos varões ávidos por diversão.

 

— Bem vinda ao mundo adulto, Samira! - Disse, com o seu melhor sorriso, enquanto ligava o chuveiro, observando a expressão confusa da garota.

— Como assim?

— Sua mãe não conversou com você sobre isso? - Perguntou, apontando para o sangue que escorria pelo ralo, enquanto apontava para o sabonete.

— Hum, hum - Balançou a cabeça negativamente.

— Pois deveria. Mas não vamos falar sobre as omissões da sua mãe. Todas nós passamos por isso. Eu também sangrei, e ainda mais cedo que você. Hoje é um dia de festa, de alegria e de novidades na sua vida.

— Você sabe porque eles pulam tanto em cima da cama? - Perguntou, mais calma,  olhando para a parede do banheiro, no instante em que gemidos e rangidos de molas de colchão se faziam ouvir.

— Não se preocupe, querida. Você está bem perto de descobrir. Mas para isso, precisamos terminar o seu asseio, e avisar a sua mãe de que talvez precisemos adiar a festa.

— Não! Eu quero que tudo aconteça hoje! Eu estou bem - Disse, ansiosa, segurando o braço de Janice, enquanto se enxugava.

— Mas com você nessa situação, não sei se vai acontecer - Ponderou.

— Colocando uns panos aqui embaixo, eu consigo pular sem sujar os lençóis da cama, veja! - Explicou, colocando a mão em concha no meio das pernas e subindo na cama antes de começar a pular.

 

Janice contemplava a pureza de uma menina prestes a perder a sua ingenuidade e se tornar como ela, uma mulher da vida, que da vida não levaria nada a não ser uma coleção de nomes que a possuíram na afobação do que o tempo lhes permitia. Se pudesse evitar aquele engodo, ela o faria, mas a casa precisava de reformas, e as cocotas necessitavam da comissão que o leilão daquele cabaço geraria para elas. Algumas tinham filhos, mães doentes, e uma delas sustentava um vagabundo que dizia que a amava. Ela própria. Precisava colocar um cabresto naquela jumentinha e estancar aquele sangramento a qualquer custo. Olhou o vestido manchado e foi buscar um collant no armário. Faria o negócio acontecer. Quando o vencedor do leilão visse aquele corpo cheirando a leite, nem daria importância ao detalhe. Talvez até achasse que fosse a prova da virgindade. Os homens eram ignorantes nessas questões.

 

 

Assaltos a banco eram corriqueiros e deixaram de ser manchetes de jornais, principalmente quando os ladrões deixavam uma rosa vermelha no cofre vazio, e nenhum rastro. Se ao invés disso, fizessem reféns, trocassem tiros, oferecessem resistência, tirassem a vida de alguém, explodissem algo, aí sim teria algo pra contar. Uma chacina era notícia. Um larápio irônico, não. Por isso, ele mesmo foi cobrir as fofocas a respeito de uma atriz famosa envolvida num triângulo amoroso. Aquilo vendia que nem algodão doce em matinê de circo. A dita cuja relatava de maneira cínica como aquilo tudo era um plano diabólico para acabar com a sua carreira. Ele fez questão de ir pessoalmente àquela coletiva para testar seu maior dom, detectar mentiras, já que quem as contava era uma atriz conhecida por incorporar seus personagens com um zelo exagerado. Um desafio.

 

Não fazia juízo de suspeição antecipado para não incorrer no erro de Otelo, que confundiu a expressão de medo de Desdêmona com traição. Se despia de pré julgamentos e simplesmente se deixava levar pelo instinto investigativo da sua profissão, que com o tempo ficava mais apurado. Para a sua decepção, a tal atriz era bem menos capaz do que ele imaginava, dada as reações caricatas inerentes ao seu último personagem, cuja novela fazia pouco que chegara ao fim. Peixoto levantou da sua cadeira, e saiu da sala antes do fim do convescote patético, satisfeito pelo seu diagnóstico pessoal. Escreveu a matéria para ser publicada, baseado apenas no que imaginava ter acontecido, e a segurou por alguns dias. Quando a traição foi comprovada por fotografias que chegaram às suas mãos pelos seus informantes, ficou satisfeito por não ter que mexer uma vírgula do que já havia escrito. Mais uma vez ele estava certo.

 

Acendeu um Pall Mall sentado na cadeira do escritório e viu o bilhete com a marca de batom. Pegou o papel preso ao porta retrato com a foto dela, e cheirou para sentir o resquício de perfume que ainda resistia. Aquela era uma brincadeira prazerosa de gato e rato que há muito não se permitia. Não sabia ao certo se o seu prazer provinha de deixar a pessoa achar que estava no comando da situação, ou masoquismo puro. Apostava mais no prazer que sentia em planejar vinganças de adultério, e quase todos eles eram encaminhados de propósito por ele mesmo. Provável que fosse uma miscelânea de tudo isso. Talvez superar o último caso fosse uma tarefa difícil. E já fazia bastante tempo.

***

A premissa era que ela fosse popular. E ser popular significava ser bonita, desejada e invejada, como Helen. Aquilo facilitava o desfecho. Nunca chegou ao cúmulo de contratar alguém para abreviar o processo, até porque não teria o mesmo simbolismo. Era natural do instinto humano, ser caça ou caçador. E sendo assim, escolhida a sua presa, ele passou a cortejá-la, recebendo de volta o seu desprezo, já que se tratava de objeto de cobiça de metade da faculdade e ele não era um galã de folhetim.

 

Nunca foi um homem charmoso, mesmo jovem. Seus óculos fundo de garrafa eram objetos refratários para ela, mas a sua astúcia, associada a facilidade de usar o bom linguajar, abreviava certos caminhos e angariava conquistas que até ele mesmo duvidava. E foi assim que onze dias depois de persistir, ela estava deitada ao seu lado, suada pela ginástica sexual imposta por ele, para a surpresa dela.

 

— Não dava nada por você, juro - Revelou, sem uma ponta de vergonha.

— O que tem valor não se acha no meio da rua - Disse, se fazendo de displicente, olhando para o teto, mas enlouquecido para olhar a expressão daqueles olhos azuis.

— Mas isso não quer dizer que eu vou chegar amanhã na faculdade de mãos dadas com você, certo?

— Não sou homem de exibir troféu - Retrucou, seco.

 

Ela já tinha se beliscado um monte de vezes pra tentar saber o que havia acontecido. A mulher que tinha os homens mais lindos aos seus pés tinha acabado de trepar com o gordinho-ceguinho-felpudo da sala. O camarada tinha lábia, mas era bom desde já fazer as suas observações antes que ele saísse por aí espalhando os detalhes sórdidos daquela noite. Como que adivinhando os pensamentos dela, ele falou.

— Imagino que agora estamos namorando. E sendo isto um fato, a única exigência que faço é fidelidade. O resto não me interessa. Viu como sou cabeça feita? - Disse, caindo numa gargalhada sombria.

Entre achar que tinha sido uma brincadeira ou ameaça, ela preferiu se resguardar até achar uma maneira de se livrar daquilo.

 

O fato é que as tentações sobre ela foram muitas, e ele observava saboreando o sofrimento de Helen em se esquivar de investidas com medo da universidade inteira ficar sabendo que ela tinha dormido com o Mister Magoo. A presença dele era uma ameaça para ela e para alcançar o seu objetivo. Peixoto trocou o turno das suas aulas alegando priorizar o seu estágio. Com isso, ela se sentiu mais corajosa, e assim o inevitável aconteceu.

 

O primeiro beijo dela dado em outra boca ele perdeu, mas o segundo foi registrado à distância, com foco no rosto da moça loura. Das tres relações sexuais que tiveram, as duas últimas haviam sido gravadas com a tecnologia de última geração. Uma filmadora VHS Panasonic colocada displicentemente sobre um móvel do quarto que capturava os dois corpos nus em plena atividade e com nitidez de som e imagem. Durante o coito, fazia manobras para que os seus rostos fossem melhor focados e a fazia dar gritinhos apertando-lhe os bicos dos seios. Forçou-a a falar coisas que ficariam registradas naquela fita, de maneira que ela citasse o nome dele e exaltasse as suas qualidades de macho na cama, além de se autodepreciar com palavras de baixo calão.

 

Ele repassou aquela fita uma dezena de vezes para se certificar que podiam ser identificados facilmente nas imagens, além de se masturbar, o que lhe dava mais prazer do que a própria cópula. 

 

Um dia, ele apareceu de surpresa na casa dela, levando flores e uma bolsa a tiracolo. Sabia que aos sábados ela ficava em casa estudando pela manhã e cuidando da irmã caçula, muitos anos mais nova do que ela. O que ele também sabia é que ela não estava sozinha no quarto do primeiro andar. Apertou a campainha, e uma cópia mais jovem de Helen veio abrir a porta. Era uma ninfeta nabokoviana de treze anos, com os mesmo olhos azuis e cabelos ainda mais compridos. Logo ela lhe abriu um sorriso confuso.

 

— Vim ver a sua irmã. Meu nome é Nilton Peixoto, sou o namorado dela - Anunciou, cheirando as rosas vermelhas com naturalidade, já esperando a reação ainda mais confusa da menina.

 

Não esperou que ela dissesse qualquer coisa e foi entrando, avolumando-se no sofá.

— Onde está a minha sogra? - Questionou, sabendo que o pai, comandante de navio, passava meses a fio fora de casa, enquanto a mãe, médica, estava de plantão.

— Estão trabalhando.

— E Helen?

A menina gaguejou um pouco e ele interveio mais uma vez, chamando-a para sentar no sofá enquanto ele colocava uma fita no videocassete da sala para assistir um filme.

— Eu vou chamar a Helen - Disse a menina. Desta feita, com medo.

— Não se preocupe com isso minha cunhada. Ela vai aparecer já, já - Disse, sem parecer ameaçador e puxando-a de volta com firmeza para o sofá.

 

Aumentou o volume da televisão ao máximo, e começou a gritar em direção às escadas, enquanto começava a aparecer as primeiras imagens do filme pornográfico, para horror da pequena Deise.

— Heeellleeeennnn! Heeellleeeennnn! Heeellleeeennnn! - Ele gritava em direção ao teto da sala.

 

Ouviu passos apressados de dois pares de pés descendo as escadas, com Helen gritando pela irmã, que por sua vez, estava abduzida pelo conteúdo explícito das imagens. Quando o casal alcançou a sala, logo entenderam o que se passava ali, e se entreolharam. Ele paralisado e com nojo da atriz do filme com quem tinha acabado de ter intimidades, e ela correndo em direção a porta aberta para ver se os poucos minutos que restavam da sua vida antes de se enforcar no quarto tinha um rosto.

***

 

Encostou o papel com o beijo de batom de Patrícia nos seus lábios e sorriu. Tinha vários caminhos a seguir, mas ainda não fazia ideia de qual. Apenas sabia que o momento de sentir novamente aquele novo deleite estava próximo, depois de tantos anos. Precisava manter as antenas ligadas, ou melhor, os chifres. Se vingança era um prato que se comia frio, aquela já estava fossilizada em âmbar na Sibéria, mas que poderia alcançar o ponto de ebulição na hora que ele quisesse.


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