JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 50
Capítulo 50




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Justo quando havia decidido largar a vida deletéria e beber da fonte do juízo perfeito, via a sua candidatura ser ameaçada por um…por um… um bode fedorento?! O animal berrava e dispensava bolotas de cocô durante os seus comícios que mais pareciam esquetes surreais de humor negro, dada a falta de nexo e propósito. O povo ria e sacudia a bandeira com o número e a cara do bode, onde o par de chifres formava o número onze. O animal parecia se governar, já que não tinha dono conhecido, e todos na cidade faziam questão de acariciá-lo ou balançar o sino que ele levava no pescoço. O cabrão era um político nato, além de um reprodutor de primeira grandeza. Cada descendente dele em idade de abate, tinha a sua carne distribuída entre os mais pobres. Aos olhos do povo, a mulher era inapta para o cargo, dada a popularidade do caprino.

 

Foram noites em claro tentando alertar o povo em vão, que eleger um ser quadrúpede, irracional, e que andava berrando nu pelas vias públicas, poderia levar a administração do município à ruína, mas existia uma nuvem tóxica de fanfarronice a circular sobre suas cabeças. Até as crianças passaram a andar de quatro nas ruas imitando o candidato. A cidade corria o risco de se transformar em uma fazenda de mamíferos ruminantes. Ao passar em frente ao melhor barbeiro da cidade, lá estava o candidato sentado sobre almofadas de veludo, enquanto o profissional do ofício estava agachado aparando sua barbicha desbotada. A coisa estava ganhando proporções tal, que logo ela seria ridicularizada após a contagem dos votos. Precisava fazer alguma coisa, e urgente.

 

Não tardou para que colocasse o seu plano em ação. Lamentava o fato de ter que apelar, mas se o jeito de evitar a tragédia fosse aquele, então que o coração dos eleitores fosse amaciado, em grande parte composto por homens brutos com a testosterona derramando pelos olhos. Antes de ir para o comício, mandou seus cabos eleitorais espalharem pela cidade que a candidata estaria no palanque como veio ao mundo, apenas com o microfone a lhe ornar uma das mãos. A notícia logo se alastrou, causando uma aglutinação na praça duas horas antes do horário marcado. A crise precisava ser contornada, e para problemas complicados, soluções drásticas. Ou dramáticas.

 

O rebanho de carneiros bípedes se espremia numa praça onde comportava apenas a metade do público presente. O cheiro de testosterona que emanava já sinalizava que todos os homens daquela cidade pacata não estavam ali para ouvir promessas de campanha, mas para testemunhar a transmutação das suas intenções de voto. E foi com apupos acalorados que ela subiu ao palco, coberta por uma manta de tule, que deixava entrever detalhes do seu corpo nu. Assobios e palavras de ordem foram gritadas para que as luzes se acendessem, mas antes, ela falou ao povo.

 

— …segurança pública, um ensino melhor para as nossas crianças, médicos nos postos de saúde noite e dia, prestações de contas da prefeitura, blá, blá, blá, blá..

 

Bocejos foram vistos pelos seus assessores, que logo cessaram quando ouviram as palavras mágicas.

 

— …e diferente de um bode, posso prometer, e vocês podem me cobrar tudo o que prometi..- Disse, livrando-se do manto transparente no momento em que as luzes do palanque se acendem.

 

Em meio a catarse coletiva que paralisou os presentes, metade deles com a boca escancarada, Patrícia viu um rosto conhecido na multidão. O homem se aproximava, abrindo caminho com desenvoltura na sua direção. O rosto dele não era de satisfação, e carregava algo em uma das mãos. Ela aproximou-se da beirada do palanque para identificar a figura, e logo os seus olhos confirmaram os seus temores, quando Zé Osvaldo gritou a pouca distância, empunhando um revólver.

 

— Não é nada pessoal, apesar de eu não gostar da ideia de ter uma rampeira à frente da prefeitura da cidade. Mas negócios são negócios, docinho, e a turma do bode velho paga bem - Disse, mirando no mamilo esquerdo, entumescido de medo, e disparando.

 

Patrícia acordou banhada em um suor gelado, olhando para o relógio de cabeceira do quarto de hotel, e pulando da cama direto para o banheiro. O dia logo amanheceria e ela precisava chegar nas imediações da redação antes do dia amanhecer. Sabia que o salafrário chegava cedo no escritório. Quanto menos gente a visse circulando, tanto melhor.

 

Trafegou com o seu carro por vias secundárias até o quarteirão onde ficava a sede do jornal. Estacionou o Monza entre dois veículos na calçada oposta, de modos que ela conseguisse vigiar a entrada sem ser notada. Ainda não tinha decidido que tipo de abordagem lançaria mão, mas qualquer uma delas incluía violência. Abriu o porta luvas e retirou uma peixeira que afiou especialmente para a ocasião. A intenção inicial era sangrar o porco sem matá-lo, mas se durante o ato atingisse alguma região vital, paciência. Ela estava sendo procurada pela polícia por vilipêndio de cadáver, e estava a um passo de alterar esse status. Notou que alguém estava parado atrás do poste do outro lado da rua, bem na sua direção. A pessoa se esforçava para não ser vista, e não parecia ser um mendigo ou morador de rua. Apurando melhor as vistas confirmou que se tratava de uma mulher. Era estranha a sensação de que conhecia aquela silhueta. Resolveu descer do carro e se aproximar com cautela.

 

O dia estava amanhecendo, mas ainda restava uma nesga de penumbra que a protegia. Atravessou a rua deserta, dando a volta pela esquina para abordar a mulher por trás. Antes que pudesse tocar o seu ombro, a mulher virou-se na sua direção assustada.

 

— Patrícia?!

— Mãe? O que você está fazendo aqui?

 

—-----

 

A onda de calor causada pela explosão fez com que o pára brisas da viatura que liderava o comboio estourasse e cegasse o policial que estava ao volante, fazendo-o perder a direção e capotar próximo do camburão em chamas. Peixoto desceu do seu veículo ainda em movimento e correu para socorrer os dois colegas que estavam desacordados, sendo acompanhado pelo delegado.

 

— Você acha que ela têm tutano pra armar tudo isso? - Perguntou o delegado, enquanto arrastava um dos policiais para longe do fogo.

— Para isso e muito mais. Ela é ardilosa e impetuosa. Imagino que exatamente por isso deveremos ter notícias dela em breve - Respondeu o investigador, percebendo que o ferimento nos olhos do colega era grave, e gritando para que os outros chamassem uma ambulância.

 

Enquanto o camburão e a viatura ardiam em chamas, espalharam-se pelo perímetro atrás de provas, encontrando pegadas que davam direto na porta de entrada e saída dos funcionários.

 

— Não entendo. Essas pegadas não condizem com o tamanho dos pés da moça - Pensou alto, coçando a cabeça e olhando para um policial que se aproximava com um rapazola que carregava um estilingue em uma das mãos.

 

— Chefe, o moleque aqui tem umas coisas interessantes pra contar. Ele estava caçando passarinho aqui perto e viu uma moça fardada chegar dirigindo o camburão. Como achou estranho o tamanho da roupa que ela vestia e a beleza da moça, a seguiu até ela entrar em um táxi. Ele decorou a placa e voltou para ver de perto a viatura quando se deparou com o talzinho que fez aquela bagunça lá no asilo. Ele reconheceu o sujeito e viu ele incendiar o veículo.

— É isso mesmo rapaz?

 

O garoto franzino afirmou com a cabeça e recontou os fatos para o investigador que tomou nota da placa do táxi, acionando a central pelo rádio para levantar informações sobre o motorista, e pedindo que o delegado verificasse com o diretor do Instituto para Menores Infratores o motivo pelo qual Montila estava solto. Quando a ambulância chegou, e as informações também, saíram em diligências em carros separados. O delegado faria uma visita a um certo Dr Eliseu no fórum criminal, e ele a um ponto de táxi no centro da cidade, enquanto não apareciam informações ou rastros deixados por Zé Osvaldo, que tinha desaparecido com Jonas depois do banho de sangue na estrada do presídio.

 

Com a vida pondo à prova todo o seu conhecimento da psique humana, era cada vez mais visível que a mente diabólica de alguns podia desafiar a sua experiência. A filha do coveiro e o moleque sabiam o que estavam fazendo, e ele podia adivinhar o que eles iriam fazer em seguida. Por mais que você desafiasse o óbvio, em algum momento o caldeirão da vingança atingia o seu ponto de fervura. Depois de tomar o depoimento do taxista, que não acrescentou muito, rumou para onde ela voltaria por instinto. Tentou falar com o irmão do delegado, sem sucesso. Queria alertá-lo sobre a hipótese de ser pego desprevenido. Achava o homem insuportável, mas era o seu dever como agente da lei salvaguardar vidas.

 

Conduzindo uma viatura descaracterizada até a redação do jornal, soube pelo rádio que a esposa e a filha de Cândido, o assassino destroçado pela noiva do delegado, tinham chegado à cidade para liberar o que sobrou do corpo e fazer algumas perguntas sobre o caso, e a presença dele se fazia necessária, apesar de não ter tido qualquer participação no caso. Estava tentando alertar o seu chefe sobre a alta periculosidade da mudinha, mas o máximo que conseguiu foi uma encomenda para vendê-lo um filhote de doberman da próxima ninhada de sua cadela. Antecipando-se a um desastre que não queria ter qualquer participação, pensou em providenciar a laqueadura do animal. O delegado era um bom homem, carente de afeto é verdade, e nunca o havia feito mal. A não ser da vez em que surrupiou uma pequena estátua de Buda folheada a ouro do porta luvas do seu carro, quando lhe emprestou o veículo, e que roubou de volta numa festinha privê no apartamento do chefe. Óbvio que ele tinha colocado a culpa nas moças de má fama.

 

A verdade era que sabia demais a respeito dele e do irmão. Em uma noite de bebedeira ele revelou as suas origens, até então misteriosa para os seus pares. Ele e o irmão eram filhos de um bandoleiro escocês que tinha assaltado uma joalheria em sua terra natal e fugido para as terras mais ao sul dos trópicos. Aqui, engraçou-se com uma nativa e a emprenhou por duas vezes. Seu sobrenome Smith, deu lugar ao Peixoto da mãe para não despertar curiosidade sobre sua árvore genealógica, e os seus prenomes somente alguns poucos sabiam. O redator chefe do jornal foi batizado como Adam, e o delegado poderia ser chamado pelo pomposo nome de Donovan, caso ele não sacasse a arma, disposto a atirar em quem ousasse cometer tal desfeita.

 

Ao dobrar a esquina da redação, com o dia clareando, se deparou com o seu alvo acompanhado de outra mulher, entrando em um veículo estacionado quase em frente do endereço. Não gostava de contar com a sorte, mas algo lhe dizia que ela vinha sempre associada ao seu faro de perdigueiro. Parou em uma vaga alguns metros atrás, em um ponto cego, de modos que não fosse visto caso olhassem pelo retrovisor. Encostou um pequeno binóculo nos olhos e ajustou as lentes. Elas pareciam caladas e em vigília, com o olhar voltado para a entrada principal do prédio. Agitaram-se quando o alvo surgiu caminhando com um jornal aberto e um cigarro aceso na boca. Patrícia, que estava ao volante, deu partida no Monza e saiu da vaga com cuidado, em baixa velocidade na direção de Peixoto. O que se seguiu, surpreendeu o investigador, que não tinha conseguido prever aquele movimento. A porta do carona se abriu, e a mulher mais velha saiu com uma pequena arma em punho, encostando na nuca do redator, que entrou no carro sem resistência. Com a ação, iniciou uma perseguição à distância, até um endereço conhecido. Foi ali que tivera duas vezes para livrar o irmão do delegado de dois flagrantes envolvendo mulheres menores de idade. Se arrependimento matasse, ele estaria desencarnado a pelo menos dez anos.

 

Decidiu ficar do lado de fora e intervir apenas se fosse necessário. A casa era uma pequena fortaleza, com algumas poucas janelas que mais pareciam escotilhas de tão pequenas. O muro de pedra era alto demais para ser transposto, e ainda assim possuía uma cobertura colorida de cacos de vidro, que lhe conferia uma aparência de arcada dentária de algum monstro. Um observador mais atento poderia imaginar que aquele lugar protegia algo valioso, ou o morador prezava pela privacidade e silêncio tal qual um monge tibetano. De qualquer ângulo, era um caixote pardacento sem qualidades arquitetônicas. Quando abriu o papel de uma bala de hortelã, o rádio chiou chamando viaturas próximas ao endereço em que estava. Copiou a mensagem e avisou que estava nas cercanias do local e já se encaminhando. Destrancou a porta, e antes que pudesse abri-la para sair do carro, sentiu um cano metálico encostar no seu ouvido. Apenas pelo hálito pútrido, sabia quem estava pressionando aquela pistola em seu crânio.


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